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Toto Wanje: “Todos nós nascemos veganos”
O queniano Toto Wanje nasceu em uma pequena aldeia no Quênia, na África Oriental, onde vivia sem televisão, eletricidade e sem água encanada. Ele conta que a vida era simples e que a carne era considerada um item de luxo que fazia e ainda faz parte apenas da realidade dos ricos, ou pelo menos daqueles que podem pagar pelo seu alto preço no Quênia: “Em muitos lugares na África, a carne é dada apenas aos homens. As mulheres e as crianças seguem uma dieta vegetariana. Nem todas as aldeias no Quênia ou na África são assim. Na minha aldeia, as mulheres e as crianças sempre tiveram muito a dizer à sociedade, embora não sejam considerados tão importantes quanto os homens. Então os homens comiam carne e as mulheres e as crianças se alimentavam com vegetais.”
Toto cresceu rodeado de animais como vacas, galinhas, cabras e ovelhas, mas raramente eles comiam animais. A maioria era criado com a finalidade de ordenha, ou então para serem vendidos para pessoas de outras aldeias. Ainda assim, o destino desses animais não era tão auspicioso. Uma vez por mês um animal era morto para ser consumido em um casamento ou algum outro grande evento. Além disso, no Quênia há um costume antigo de presentear um convidado com uma galinha. Esse mesmo animal é abatido e servido no jantar. Os homens se alimentam das “melhores partes”, e as mulheres das sobras. Com “sorte”, as crianças ganham algum pedacinho para sentir o “gosto”.
Na infância, imerso nessa realidade, Wanje corria até a mesa onde seu tio estava reunido com outros homens e implorava por um pedaço de frango ou do bode que haviam abatido mais cedo. “Eu era travesso e aventureiro, e sempre queria sentir o gostinho do que as pessoas mais velhas estavam comendo. As outras crianças tinham que comer sopas de vegetais e arroz. Parecia um tratamento especial, e até encantador, receber um pequeno pedaço para saborear”, relata.
Mesmo vivendo em uma realidade bastante difícil, a família de Wanje conseguia cultivar milho, castanhas de caju, abacates, laranjas, mangas, tomates, páprica e repolho. A comida estava sempre ao alcance das mãos, bastando selecioná-la e prepará-la. Eles consumiam todos os tipos de comida vegetariana, mas principalmente sopas, saladas e feijões preparados de diversas maneiras. Não havia necessidade de muito dinheiro. Na realidade, o dinheiro só era usado na aquisição de três itens – açúcar, arroz e óleo. “Éramos uma comunidade autossustentável. Tínhamos diferentes papéis em nossa pequena comunidade. As garotas cuidavam dos vegetais, as mulheres cozinhavam, e os garotos se responsabilizam pelos animais. Brincávamos com as cabras, com as galinhas e sempre tentávamos montar no lombo das vacas”, narra.
Naquele tempo, nada incomodava mais as crianças da aldeia de Toto do que a presença de um açougueiro que vinha de outra aldeia quando chegava a hora de abater um boi, uma vaca, uma cabra ou uma galinha para uma festa ou outra ocasião especial. Com a chegada do açougueiro, as crianças fugiam e se escondiam atrás dos arbustos ou das cabanas de barro enquanto o ouviam matando um dos animais.
Segundo Toto Wanje, a princípio era horripilante, mas com o tempo acabaram se acostumando, porque a matança, mesmo que não tão frequente, fazia parte dos hábitos culturais do povo de sua aldeia: “Se nunca tivéssemos visto isso sendo feito, provavelmente nunca quereríamos carne [quando soubéssemos a verdade]. As crianças fazem o que os adultos fazem e querem o que os adultos têm. Se uma criança não for ensinada a matar e não for ensinada a comer animais, elas nascerão veganas e crescerão como veganas. Elas não iriam querer ferir qualquer animal ou qualquer ser vivo.“
Suas irmãs e primas jamais assistiam o abate dos animais, e simplesmente porque era chocante demais testemunhar um dos animais com quem eles brincavam e se divertiam no cotidiano ser morto brutalmente. “Mesmo que estivéssemos nos escondendo e observando de longe, como garotos, sentíamos que precisávamos ver como ele os matava. Quanto mais animais vimos sendo mortos, mais ficamos condicionados e acostumados”, reconhece.
Depois de adulto, Toto Wanje percebeu que aquele cheiro estranho do açougueiro da aldeia não era raro. Na realidade, era mais comum do que ele imaginava. Afinal, o mesmo cheiro poderia ser encontrado em qualquer açougue: “Se você é vegano há algum tempo, provavelmente sabe o que quero dizer. Quando você passa por algumas seções de carne, ou quando entra no açougue e passa pelo lugar onde eles cortam a carne, você reconhece que o cheiro é terrível. Você se pergunta como alguém pode comer essa carne morta. Era esse mesmo cheiro de morte, sangue e carne que o açougueiro tinha. Reconheço o cheiro e sei agora que era assim o seu cheiro, e era horrível. Ele estava sempre cercado de animais mortos e matava animais diariamente para ganhar a vida. Matar animais era a sua profissão. Hoje, acredito que quanto mais alguém mata e fere animais, mais ele ou ela perde um pedaço da sua verdadeira natureza humana e dignidade.”
Como Toto e sua irmã não tinham futuro vivendo em sua terra natal, eles foram adotados por uma missionária irlandesa enviada ao Quênia pela Igreja Católica. A mulher se tornou amiga da mãe de Wanje e se ofereceu para educá-los na Irlanda. Na Europa, o jovem queniano se surpreendeu em ver como as pessoas consumiam e ainda consomem muita carne. Logo no café da manhã, Toto e a irmã comiam bacon e ovos. No almoço, consumiam peixe, frango, carne vermelha ou costeletas de porco. Também nunca faltava carne no jantar. “Começamos a comer carne três vezes ao dia. Isso, com o tempo, mudou nossa maneira de pensar. Nos acostumamos a comer carne e literalmente nos apaixonamos pela carne. Tornou-se tão normal para nós que mal podíamos comer uma única refeição sem carne. Ainda me recordo de como eu não queria comer meus vegetais a menos que me dessem um pedaço de carne para acompanhar a minha comida”, revelou, em referência ao fato de que embora vivesse em uma realidade mais esperançosa, é estranho reconhecer que a matança de animais mais do que nunca fazia parte de sua rotina.
Toto Wanje notou que enquanto pessoas com pouco poder aquisitivo se alimentavam com mais vegetais no Quênia, e normalmente alimentos cultivados por eles mesmos, na Europa, muitas pessoas viam como um retrato de uma vida próspera e digna consumir muita carne e produtos sobre os quais pouco conheciam a procedência: “Lembro-me de dizer, como outras crianças dizem, que odiava vegetais. A maioria de nós quando crianças empurra os vegetais para o lado do nosso prato e só come a carne, o arroz, as batatas ou o macarrão. Minha nova mãe irlandesa me faria sentar à mesa até que eu tivesse comido todos os meus legumes e verduras. Agora, como vegano, é engraçado pensar nesses dias em que me recusei a comer verduras e legumes, e mais engraçado ainda quando volto mais atrás e recordo-me que essa era a dieta padrão no Quênia.”
Toto, que hoje é um empreendedor vegano e ativista dos direitos animais em Upsália, na Suécia, cita os episódios em que implorava por um pedaço de carne ao seu tio como um exemplo comum do condicionamento vivido pelas crianças. Para o queniano, ser vegano é como nascer de novo, reconhecer um novo mundo.
“Ser vegano é ter meus olhos e meu coração abertos novamente para abraçar todos os seres vivos como iguais a nós mesmos. Ser vegano é reconhecer o espírito e o amor que eu tinha pelos animais quando criança. É reviver e abraçar mais uma vez a compaixão que eu tinha pelo mundo e por tudo que é belo na natureza. Um véu foi levantado dos meus olhos e do meu coração. Agora sou capaz de ver os verdadeiros espíritos e as almas dos animais mais uma vez. Acredito que todos nós nascemos veganos, exceto que de alguma forma ao longo da vida, nosso amor e compaixão pelos outros seres vivos são doutrinados e condicionados. ”
Referência
Wanje, Toto. We Are All Born Vegan (22 de novembro de 2016).
Susana Romatz: “Não é difícil ficar sem carne ou laticínios. Difícil é ver as pessoas presas a uma mentalidade em desacordo com seus valores morais básicos”
Susana Romatz conta que estava trabalhando em um PetSmart uma rede de petshop, quando conheceu Pinkie, uma pequena cadelinha preta com manchas brancas e olhos azuis. “Me apaixonei por ela e a adotei. Mas, infelizmente, os seus rins não se formaram corretamente e à medida em que ela crescia seus rins começaram a falhar. Ela viveu por apenas dois anos, mas naqueles dois anos aprendi o que era amar um cão. Fiquei devastada quando ela morreu”, explica.
O relato poderia ser apenas uma experiência comum de alguém amargando a perda de um animal doméstico. Porém, no caso de Susana, a experiência fez com que ela não conseguisse mais se alimentar de animais, embora não definitivamente. “Eu não conseguia ver a diferença entre a minha amada cachorra e os animais em meu prato. Comecei a assistir vídeos sobre bem-estar animal e doei dinheiro para grupos de ativismo animalista. Tentei ser vegana, mas não consegui por uma infinidade de razões, principalmente força de vontade e educação”, admite.
Quando se mudou para o Estado do Oregon em 2002, ela ouviu pela primeira vez alguém falando em animais “criados de forma humanitária”, em referência à carne e aos laticínios com “certificado humanitário”; e aquilo chamou a sua atenção, já que em Saginaw, Michigan, sua cidade natal, nunca ouviu tal termo, simplesmente porque as pessoas não pensavam em carne como partes de animais, mas apenas como algo para comer. “Tendo sido enganada pelo fascínio da carne abatida humanamente, vejo a grande ironia dessa estratégia de rotulagem. Os profissionais de marketing precisam trabalhar mais para dessensibilizar as pessoas que estão mais conscientes da verdade. Consumidores que têm alguma compreensão da injustiça de se matar animais, mas optam por pagar por isso, precisam trabalhar mais para rejeitarem a realidade de suas próprias escolhas”, diz.
Susana acredita que o asteísmo disso tudo é que as pessoas que optam por gastar dinheiro extra comprando produtos de origem animal que resultam do “abate com compaixão” são mais cúmplices da violência e da morte prematura de animais do que aqueles que nunca pensaram que seus hambúrgueres um dia foram indivíduos que desejavam viver: “No Oregon, comecei a comprar a mentira de que se pode matar um animal com humanidade para atender a preferência do paladar […] Claro, a voz mais suave da compaixão muitas vezes é difícil de ser ouvida.” Ela percebeu o próprio contrassenso vindo de alguém que não queria machucar qualquer ser vivo, nem mesmo pequenos insetos que se afogavam em poças.
Antes de se tornar vegana, Susana Romatz aceitou um emprego em uma fazenda de “cabras felizes” e na mesma época comeu o seu primeiro hambúrguer preparado com carne de um animal supostamente abatido de forma humanitária. Foi mais além. Passou a comprar peitos e bifes orgânicos de frango. Para aliviar a consciência, pagou bem mais caro em pedaços de bacon com “certificado humanitário”:
“É incrível o que você consegue bloquear quando coloca força nisso. Eu, que dez anos antes tinha me reduzido às lágrimas, observando vídeos secretos de como os animais de criação eram tratados – privados, violentados, esfaqueados, degolados, eletrocutados – agora estava trabalhando em uma fazenda de produtos lácteos onde recém-nascidos eram tirados de suas mães logo após o nascimento, e seus gritos de aflição eram ignorados.”
Para não ter um grande conflito de consciência, Susana se esforçou para evitar pensar a respeito. Mas às vezes uma compreensão lancinante do que estavam fazendo era inevitável. Enquanto trabalhava, ela acreditava que os animais tinham seus chifres removidos para a sua própria segurança, e que o processo era indolor. Até que uma vez testemunhou como isso realmente era feito. “Os cabritos foram capturados e seus chifres queimados com ferro quente enquanto eles gritavam e chutavam tentando escapar. Depois de libertados, ficavam tão abalados que tropeçavam e saíam balançando a cabeça violentamente, confusos e com muita dor”, narra. Alguns deles nunca mais permitiram que qualquer pessoa se aproximasse sem que demonstrassem um terrível pavor.
Um dia, quando chegou ao trabalho, ela percebeu que uma das cabras de quem ela mais gostava tinha sido morta porque estava com um abscesso e uma mastite. Alegaram que o abscesso era possivelmente contagioso e que ela não estava produzindo uma boa quantidade de leite: “Tentei não pensar sobre o fato de que ela era uma cabra engraçada e brincalhona que me fazia rir o tempo todo.”
Em outra ocasião, Susana encontrou uma cabra grávida deitada e com os olhos fechados. Logo suspeitou que havia algo de errado. A cabra estava morta. Abriram-na com uma lâmina de barbear e tiraram três cabritos pálidos. “Eu podia sentir seu coração batendo tão rápido sobre a minha mão. Todos eles morreram. A mulher [proprietária da fazenda] começou a chorar balançando a cabeça e lamentou: “Oh, minha melhor provedora. Meu belo prêmio.” No entanto, não foi esse episódio que levou Susana definitivamente para o veganismo. Mais tarde, ela resgatou um chihuahua e a sua namorada disse que não poderia mais continuar se alimentando de animais. Então as duas fizeram a transição para o veganismo.
Susana Romatz era viciada em queijo. Para se ter uma ideia, ela consumia mais de dois quilos de cheddar por semana. “Experimentei alguns queijos veganos e eles eram realmente bons, mas decidi fazer o meu próprio, encontrar uma receita diferente usando ingredientes mais acessíveis. Estar no Oregon foi uma benção por causa das incríveis avelãs que crescem em todos os quintais e cantos. Os queijos ficaram tão deliciosos que decidimos criar um negócio. Como amamos a palavra latina para avelãs, Avellana, assim nasceu a Avellana Creamery”, revela em referência à sua pequena fábrica de queijos veganos baseados em avelãs orgânicas e cultivadas localmente.
Depois que se tornou vegana, Susana passou a refletir com mais clareza inclusive sobre os sinais que recebeu na infância, indicando que havia algo de errado em explorar animais. Com 10 ou 11 anos, ela testemunhou quando sua tia comprou uma máquina brilhante para a ordenha mecânica das vacas:
“Eles colocaram os tubos e a ligaram. Ela [a vaca] era bastante serena, mas me lembro de uma sensação de tristeza em sua situação. Parecia-me errado forçá-la a entregar o seu próprio leite. Embora não tenha ficado visivelmente ferida, isso me marcou profundamente. Demorei para fazer a conexão com o leite que acompanhava o meu cereal matinal. […] Em nossa cultura, temos o hábito de afastar-nos de coisas que nos trazem dor. Estou aprendendo que se afastar não ajuda em nada. Encarar de frente o que nos aflige nos dá a oportunidade de transformar o que é prejudicial em algo bonito. Não é difícil ficar sem carne ou laticínios. Difícil é ver as pessoas presas a uma mentalidade em que suas decisões diárias estão fundamentalmente e violentamente em desacordo com seus valores morais básicos. Nós podemos e devemos fazer o melhor.”
Referência
Como Nora Barnacle inspirou James Joyce
Camareira de Galway influenciou o dublinense a escrever Ulysses
Foi a partir de um encontro com a camareira Nora Barnacle, de Galway, na Irlanda, que o escritor James Joyce teve a ideia de criar o seu icônico Ulysses, obra tão influente que os irlandeses decidiram instituir em 1954 o Bloomsday, um dia dedicado ao personagem Leopold Bloom, protagonista do romance.
Celebrado no dia 16 de junho, o evento ganhou popularidade mundial. Já foi comemorado nos Estados Unidos, Hungria, Itália, Austrália, Canadá, República Tcheca, Reino Unido e França. “Acredito que se o encontro entre James Joyce e Nora Barnacle não tivesse acontecido, provavelmente não teríamos o Bloomsday nem mesmo Ulysses. Ainda assim há pesquisadores que até hoje discutem até que ponto Nora é ou não é Molly Bloom”, diz o escritor canadense e professor de literatura Steve King.
Apesar das controvérsias levantadas em livros como Nora: The Real Molly Bloom, de Brenda Maddox, e também no filme Nora, de Pat Murphy, uma verdade irrefutável é a de que James Joyce teve com ela um relacionamento insubstituível. Ela era a única que podia chamá-lo de Jim.
Quando se conheceram nas ruas de Dublin, Joyce era um beberrão de 22 anos com um discurso cativante que o deixou conhecido em círculos de poetas e em inúmeros pubs. Nora, uma camareira de 20 anos que buscava um futuro melhor na “cidade grande”, não tinha a mínima ideia de quem ele era ou o que fazia.
“Naquele encontro em 16 de junho de 1904, durante uma caminhada ao longo do Rio Liffey [no Condado de Wicklow], quem causou a maior impressão foi ela. Nora disse algumas coisas que o sabe-tudo Joyce desconhecia. Após quatro meses, eles retornaram ao porto e viajaram juntos pela Europa”, relata King.
Ao saber que seu filho favorito fugiu com uma jovem de Galway, John Joyce comentou o seguinte: “Barnacle? Ela nunca vai deixá-lo!” Logo que James Joyce terminou de produzir Ulysses, Nora se recusou a ir além das primeiras páginas, o qualificando como um livro nonsense. “Ela não era uma companheira do tipo tranquila”, comenta o professor de literatura. Ainda assim, Nora Barnacle foi quem conseguiu preservar a lucidez de Joyce. Ela era um ponto de equilíbrio em sua vida.
Décadas de pobreza, rejeição literária, um filho alcoólatra e uma filha considerada louca, tudo isso Nora suportou ao lado do marido que também se sentia frustrado por considerar a si mesmo como um expatriado, alguém sem raízes. “Ela foi a âncora na vida de um errante”, define Steve King.
Não foram poucas as vezes que Nora teve de buscar Joyce tarde da noite em um pub enquanto ele conversava, ouvia algum medley de baladas irlandesas e esperava outra garrafa de vinho branco. Quando não conseguia convencê-lo a partir, ela ameaçava abandoná-lo. Porém, assim como o pai John Joyce previu em 1904, Nora nunca o deixou.
A origem do Bloomsday
James Joyce sempre falava de seu desejo em ficar longe de Dublin. O fazia como um filho magoado com o pai que nunca deu-lhe o devido valor. Ao longo de décadas, a considerou a cidade das injustiças, do rancor e da infelicidade. E ela talvez o visse de forma similar, já que seu livro foi menosprezado por tanto tempo. Entretanto, tudo começou a mudar em 16 de junho de 1954, quando um grupo de escritores irlandeses se reuniu na torre de Sandycove, a nove quilômetros de Dublin.
Partiram de lá com o objetivo de refazer a trajetória de Leopold Bloom, ou pelo menos ficar bêbado tentando. A iniciativa voluntária deu origem ao Bloomsday, que hoje se tornou uma comemoração com duração de vários dias. É praticamente uma Bloomsweek, e o evento está entre as celebrações que mais levam turistas à Irlanda. Em meio ao mercantilismo, o mais importante é que a causa essencial ainda sobrevive. No Bloomsday, as pessoas continuam lendo Ulysses em voz alta, como Joyce sempre quis. É a maior prova de que o livro pertence às ruas, não ao meio acadêmico.
Saiba Mais
James Joyce e Nora Barnacle se casaram em 1931.
Em 1924, James Joyce narrou e gravou um trecho de quatro minutos de Ulysses em áudio.
James Joyce nasceu em Dublin em 2 de fevereiro de 1882 e faleceu em 13 de janeiro de 1941 em Zurique, na Suíça, após uma cirurgia para úlcera.
Nora Barnacle nasceu entre 21 e 24 de março de 1884 e faleceu em 10 de abril de 1951.
Ulisses, página 909
Em Ulisses, um mergulho no mundo íntimo de Molly Bloom nos revela as suas reações extremamente femininas, provocadas pelas últimas palavras de Bloom antes de adormecer. De fato, ele pede a Molly que lhe traga o café da manhã na cama, fato inusitado que não ocorria desde a morte do filho Rudy, havia onze anos. Durante todo aquele tempo, fora ele que se incumbira dessa tarefa. Revela ainda este episódio que, embora não seja o modelo de virtude conjugal do original grego, Molly não é aquela mulher devassa e desonesta, decantada por alguns. É, na verdade, acima de tudo, uma criatura espontânea, romântica, extrema e inconformadamente solitária, assim como sedenta de carinho, que não receia dizer sim à vida e ao amor.
Referências
http://www.todayinliterature.com/
Ellman, Richard. James Joyce (1959).
Maddox, Brenda. Nora: Biography of Nora Joyce. Hamish Hamilton (1988).
Joyce, James. Ulisses. Círculo de Leitores (2010).
William Blake, entre a pobreza e o anonimato
Assumiu um semblante justo, seus olhos brilharam e ele cantou sobre as coisas que viu no céu
No dia 12 de agosto de 1827, o poeta inglês William Blake faleceu aos 69 anos na pobreza e no anonimato. Seu velório em Bunhill Fields, na região norte de Londres, passou despercebido e só pôde ser realizado através de um empréstimo de 19 xelins. Sepultado em um túmulo sem qualquer inscrição, o corpo de Blake foi colocado sobre outros três e seguido por mais quatro falecidos.
Sua esposa, Catherine, revelou a uma amiga que durante o casamento ela não teve tanto a companhia do marido quanto gostaria. “Ele estava sempre em seu próprio paraíso”, declarou. Apesar da saúde fragilizada, Blake parecia não se preocupar tanto com a morte. “É a imaginação que deve viver para sempre”, comentou quando já estava próximo do falecimento.
Nos últimos dias de vida, o poeta gastou os seus últimos xelins comprando um lápis que usou para homenagear a esposa. “Fique, Kate! Mantenha-se exatamente como você é. Por você ter sido um anjo para mim, vou desenhar o seu retrato”, declarou. Pouco antes de morrer, William Blake assumiu um semblante justo, seus olhos brilharam e ele cantou sobre as coisas que viu no céu”, escreveu um amigo.
O inglês que amargou décadas de pobreza se via mais como escultor e pintor do que poeta. Ele esperava que em uma exposição realizada em 1808 o seu trabalho pudesse trazer-lhe tanto retorno financeiro quanto reconhecimento por seu estilo original, baseado em temas a frente do seu tempo.
Na exposição que recebeu o nome de “Afrescos de Invenções Poéticas e Históricas”, Blake reuniu 16 de suas pinturas. “Aos que foram informados de que o meu trabalho se resume a obras não científicas, excêntricas ou nada mais que rabiscos de um louco, façam-me justiça e examinem tudo antes de tomar uma decisão”, pediu. Naquele dia poucas pessoas prestigiaram o evento.
Ainda assim ele não hesitou em dizer que não desistiria do seu sonho de ser reconhecido. “Ignorantes insultos não me farão desistir do meu dever para com a minha arte”, informou. Infelizmente ninguém comprou nenhuma de suas obras e a única resenha publicada sobre a exposição definiu William Blake como um lunático que só não corria risco de ser preso porque era inofensivo demais.
A recepção da poesia do inglês também seguiu na mesma esteira de suas pinturas e esculturas. Poucos viram ou leram pelo menos um de seus livros escritos e ilustrados à mão. Em 1811, dois anos antes de se consagrar como o poeta laureado, o britânico Robert Southey, leu “Jerusalem”, uma das obras mais famosas de William Blake. “É um poema perfeitamente louco”, sintetizou Southey.
Catherine continuou a imprimir e divulgar as obras do marido depois que ele morreu, o que deixou claro que a parceria dos dois envolvia tanto amor quanto trabalho. Com a ajuda de poucos amigos e fãs de William Blake, ela conseguiu sobreviver por mais quatro anos. Nesse período afirmou ter visto o marido muitas vezes, chegando a sentar-se junto dele por duas a três horas diárias.
No dia 31 de outubro de 1831, Catherine chamou por Blake como se ele estivesse no quarto ao lado. “Meu William…meu William…”, repetiu ela até o momento de sua morte. Com o falecimento de Catherine, os direitos sobre as obras de Blake foram transferidos para Frederick Tatham, um artista inglês de pequena expressão que fazia parte de um grupo de seguidores do poeta, conhecido como Shoreham Ancients.
Segundo o livro The Stranger From Paradise, publicado em 2001, e de autoria do biógrafo G.E. Bentley Jr, Tatham vendeu a própria herança ao longo de 30 anos e por bom preço. Depois que se tornou um religioso fanático, destruiu muitas gravuras e poemas de Blake. Chegou a declarar que se livrou delas porque acreditava que o artista tivesse sido inspirado pelo diabo quando as concebeu.
Saiba Mais
Entre as obras mais importantes do poeta inglês se destacam “The Marriage of Heaven and Hell”, “Jerusalem”, “And did those feet in ancient time”, “Songs of Innocence and of Experience”, “Milton” e “The Four Zoas”.
William Blake nasceu em 28 de novembro de 1757 e faleceu em 12 de agosto de 1827.
Catherine Blake nasceu em 25 de abril de 1762 e faleceu em 31 de outubro de 1831.
Referências
http://www.todayinliterature.com/
G.E. Bentley (2001). The Stranger From Paradise: A Biography of William Blake. Yale University Press.
Blake, William and Tatham, Frederick. The Letters of William Blake: Together with a Life. 1906.
Gilchrist, A. The Life of William Blake, London, 1863, 405.
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Porianna, nascimento e morte de um jovem neonazista
Não o reconhecia. Defendia crimes contra migrantes, imigrantes e falava em limpeza étnica
Conheci Piero pessoalmente quando tínhamos 17 anos. Ele era um adolescente comum. Estatura mediana, magro, cabelos e olhos castanhos e uma exímia vontade de existir e ser notado para além dos cravos e das espinhas que o exasperavam. No final dos anos 1990, nos tornamos amigos por meio da música. Eu já gostava muito de heavy metal e ele também. Então começamos a fazer trade em Maringá, onde ele visitava familiares. Eu saía de Paranavaí e ele de São Paulo. Nos encontrávamos na Musical Box, na Avenida Brasil, onde trocávamos CDs e cópias de fitas de shows em VHS.
Piero era mais tímido do que eu. Falava pouco e não saía sozinho, pelo menos a maior parte do tempo. Me parecia sempre inseguro com seu olhar enviesado e vacilante que fortuitamente mirava o chão ou a parede mais distante. “Depois de mais de dois anos trocando ideias, é legal te conhecer, velho!”, eu disse apertando sua mão tão escanzelada que me dava a impressão de que eu estava segurando pés de galinha. Ele deu um sorriso fragilizado e acenou com a cabeça, em concordância, retomando uma postura que se esforçava para velar uma precoce hiperlordose.
Meu primeiro contato com Piero foi pela internet, em um canal de fãs de heavy metal da velha rede social Brasnet, acessada pelo programa mIRC, muito usado pela geração anos 1980. Tínhamos um grupo de dezenas de pessoas e passávamos pelo menos duas horas por dia tentando expandir nosso canal, fazendo brincadeiras e trocando informações sobre música. Era divertido. Eu era um dos operadores do canal, assim como Piero. Na internet ele se soltava mais. Se sentia mais livre e seguro para manifestar suas opiniões, anseios e inclinações. Nessas horas suas mãos não suavam ou tremulavam porque não havia contato físico. Pessoalmente, Piero só perdia a inibição em shows, quando o álcool e a música em volume extremamente alto o livravam das amarras da excessiva ponderação.
Ficava sorridente, falava com estranhos, perdia o medo de se aproximar de garotas e até trocava números de telefone. Sóbrio, continuava vivendo em um mundo que distante da realidade eletrônica parecia-lhe visceralmente acinzentado e taciturno. Mais tarde, descobri que Piero sofria de ansiedade e depressão. Nem mesmo seu pai sabia disso. A verdade é que se sentia feio, deslocado, magro demais e desprezado pelo mundo. Seu único orgulho eram os cabelos longos que movimentava com a destreza de um chicote amendoado nos shows que assistia motivado pela mais bucólica das empolgações. Sorria como criança vendo um pônei pela primeira vez.
A última vez que o encontrei pessoalmente foi em 2001, num festival de bandas de heavy metal no Tribo’s Bar, em Maringá. Ele tinha bebido bastante e estranhei quando percebi que sumiu em meio à multidão. Eram três horas da manhã e Piero estava lá fora, sentado sobre o meio-fio enquanto a aragem repentina fazia seus cabelos velarem seu rosto como uma máscara. Ele ajeitou os fios e vi seus olhos vermelhos e úmidos – vestígios de choro.
“Meu pai me expulsou de casa e agora estou sem rumo. E pra piorar, ele ainda fez eu perder meu emprego. Foi bêbado lá na loja de discos onde eu trabalhava e bateu no meu chefe, falando que ele estava usando a música pra me ensinar a venerar o diabo. Foi punk, mano! Minha sorte é que arrumei um quarto na casa da minha tia em Santo André”, desabafou.
A mãe de Piero faleceu em decorrência de câncer de mama quando ele tinha 13 anos. A convivência com o pai era muito conturbada. Ele não passava um dia sem ouvir críticas e ofensas à sua aparência e estilo de vida. Sempre que o pai bebia demais era obrigado a suportar as consequências. Muitas vezes teve de pular a janela e dormir em banco de praça para não ser espancado no próprio quarto. A hiperlordose de Piero também era resultado de chutes e socos desferidos pelo pai.
Quando se mudou para Santo André, Piero abandonou o nosso canal na Brasnet. O procurei por semanas até encontrá-lo em um canal secreto chamado Porianna. Consegui ingressar no grupo com um novo pseudônimo, me passando por outra pessoa. A liberação levou alguns dias. No grupo, Piero usava o nome de Globocnik, em homenagem ao austríaco Odilo Globocnik, general da SchutzStaffel (SS), a tropa de proteção do Partido Nazista.
Porianna era um grupo neonazista criado em 1999 e que contava com dezenas de participantes, talvez muito mais, principalmente das regiões Sul e Sudeste do Brasil. Alguns defendiam o racialismo pacífico enquanto outros pregavam o ódio contra raças não brancas, defendendo inclusive ações pontuais de violência que eram cuidadosamente articuladas. Muitas eram tão bem mascaradas que a polícia acreditava que eram casos isolados.
Acompanhando o grupo pelo canal da Brasnet, notei o embrutecimento e a transformação de Piero. Não o reconhecia. Defendia crimes contra migrantes e imigrantes. Falava em limpeza étnica e na aquisição coletiva de uma fazenda onde fundariam a sociedade Porianna, um novo país dentro do Brasil, onde pessoas armadas impediriam a entrada de pessoas não brancas.
“Estamos em todas as camadas da sociedade. Temos os boneheads na parte mais baixa da pirâmide, agindo junto ao proletariado, e juízes, advogados, médicos, engenheiros e jornalistas, todos bem preparados para influenciar a opinião pública. Não há como isso dar errado. Pode ser que não tão logo, mas um dia chegaremos lá”, declarou um homem, fundador do grupo que usava o pseudônimo de Plínio Salgado, em homenagem ao criador do movimento integralista ultranacionalista.
À época, registrei o discurso de uma mulher de 29 anos que se dizia juíza e era conhecida no Porianna como Vera Wohlauf por causa da sua simpatia pela esposa do oficial da SS Julius Wohlauf. O casal ficou famoso após passar a lua de mel assistindo e participando do massacre de judeus no gueto polonês de Miedzyrzec-Podlaski em 1942.
“A democracia não funciona, só que devemos fingir que sim. O que precisamos é encontrar, forjar ou criar um ponto de ruptura que faça a população, até mesmo inferiores como pretos, amarelos, pardos e outros mestiços, acreditar que o melhor caminho é uma política austera e ao mesmo tempo flexivelmente reacionária. As pessoas precisam achar que existe liberdade demais e que isso está associado à libertinagem. Façamos de conta que a nossa política há de ser maleável e quando ascendermos ao poder colocaremos em prática o nosso segundo plano que é a instauração de um governo verdadeiramente estoico, de extrema direita, mas muito superior ao molde hitlerista e franquista. Pinochet também descambou para o fracasso. O segredo é fingir que todos estão incluídos em nossas propostas. Nossa propaganda deve ser voltar para isso, uma ilusão factível”, dissertou Vera.
Aproximadamente um mês depois de ingressar no canal, conversei com Piero. Ele parecia mais seguro de si. No entanto, eu não tinha a mínima ideia de como isso poderia ser bom, levando em conta que ele se tornou uma pessoa completamente diferente. Estava morando sozinho e me contou que era bem pago para produzir, distribuir e despachar o material de divulgação do Porianna.
“A nossa sociedade foi construída sob os preceitos da cultura branca, totalmente ocidentalizada, então por que devemos absorver uma cultura que não corrobora esses valores? O resto é irrelevante, meu amigo, não tem o mesmo peso, a mesma significância. E quem não aceita isso merece ser expulso do Brasil, nem que seja à base de chutes e socos. Ter a pele clara também não diz nada. O que vale é a sua origem, sua identidade racial. Se você tem sangue não branco, você não é branco, mesmo que sua pele seja a mais clara do mundo. Cor de pele não prova que você seja caucasiano. Os traços também dizem mais do que a cor da pele”, defendeu Piero numa noite de conversa privada.
Ele já não ouvia mais heavy metal, somente bandas nacionais e internacionais de hatecore e rock against communism (RAC), grupos que pregavam racialismo, racismo, xenofobia, separatismo, violência e intransigência política e social. “Pela primeira vez eu tenho família, cara! Sou amado de verdade. Sou Porianna até a morte!”, comentou em outra ocasião. Um dia, não resisti e falei a ele quem eu era de verdade.
O questionei sobre o seu sumiço e o novo rumo de sua vida. Deixei claro que era difícil crer que alguém pudesse mudar tanto e se tornar algo completamente avesso a tudo em que ele acreditava. “Você desprezava violência e preconceito, cara. Tudo aquilo que seu pai era te dava repulsa. O que houve nesse entrementes?”, disparei. Piero demorou a responder e fiquei em silêncio aventando o que me esperava. Talvez me denunciasse e neonazistas viessem atrás de mim. Quem sabe a poucos quilômetros de distância houvesse algum simpatizante do Porianna disposto a atear fogo em minha casa quando soubesse que eu não era um deles.
Mas isso não aconteceu, embora a probabilidade não pudesse ser desconsiderada. Isto porque na chamada mais baixa hierarquia, o grupo contava com pessoas sem perspectivas de futuro. Eram capazes de matar ou morrer por um propósito, mesmo que ruim. Confundiam a ficção com a realidade, crentes de que talvez fossem heróis, que a morte não era o fim e que talvez renascessem como um tipo mais contemporâneo de highlander.
“Você é um merda, David! Sempre com esse papo de tolerância e não percebe que a própria vida é uma guerra. Estamos aqui para mostrar que uns merecem mandar e outros nasceram para obedecer. Nem todo mundo deve ter direito à vida, e muito menos o direito de tomar decisões que exigem reflexão. O mundo deve ser comandado pelos fortes, pelos puros de sangue, que conhecem a sua própria história. Não quero um mundo que prega a mistura de raças, a extinção dos povos caucasianos. Brancos não devem ser influenciados por outras raças”, registrou sem velar a irritação.
Depois daquele dia, desapareci do canal e soube que eles migraram para a rede internacional Undernet, onde criaram um vínculo com neonazistas portugueses. Em 2004, Jonas, um amigo em comum com Piero, dos tempos de shows em Maringá, me informou que ele foi assassinado dentro de casa, em Santo André. Além de mim, havia outro jovem infiltrado no grupo e ele estava lá para preparar uma retaliação pela surra que um grupo de simpatizantes do Porianna deu em seu irmão, um sharp (skinhead contra o preconceito racial), perto da Praça da Sé, em São Paulo, o deixando paraplégico.
Piero, que desconhecia o episódio, ouviu alguém batendo palmas em frente à sua casa numa manhã ensolarada de verão. Assim que se aproximou do portão segurando um copo de café, um homem disparou um tiro certeiro contra seu peito. O copo se espatifou no chão e Piero caiu agonizando, ainda com vida. Porém não resistiu às coturnadas que recebeu na cabeça, causando afundamento craniano e morte cerebral. Sobre a estante na sala de Piero havia uma foto em que aparecia eu, ele e Jonas em frente ao Tribo’s Bar em 2001. Naquela madrugada, Piero imobilizou um ladrão, impedindo que um sharp que também estava no Tribo’s fosse assassinado a facadas por um ladrão no Terminal Rodoviário Urbano de Maringá.
Meu pai e eu, a despedida que não aconteceu
Quando segurava sua mão, eu a sentia fria e frágil. Queria apertá-la, mas temia lhe ferir os dedos
No dia 21 de setembro de 1997, domingo, uma semana antes do meu aniversário, eu dormia em um colchão no quarto do meu irmão Douglas quando ouvi minha mãe chamando. Olhei para a porta e a vi nos observando naquela manhã que nem a primavera antecipada garantiu o sol aquecendo nossa janela. As luzes estavam apagadas, assim como o sol que costumava invadir nossa casa com um esplendor enternecido e jubiloso.
Cães e gatos, que se engalfinhavam por brincadeira todas as manhãs, também endossavam um silêncio que ecoava um vazio inenarrável. “David, Douglas, preciso muito dizer uma coisa… É muito sério… Seu pai não resistiu e morreu…”, revelou minha mãe com olhos afogueados e um tom de voz aluído que denunciavam ter ensaiado aquele momento por várias horas. Nos calamos por segundos que pareciam minutos. Então ela se afastou, se esforçando para reprimir a emoção.
Levei as mãos ao rosto e esfreguei os olhos que formigavam mais do que lã em eczema. “Poderia ser apenas uma alucinação, vai saber.” Prossegui com a fleuma, me negando a aceitar a gravidade da situação. Afinal, na minha concepção juvenil de finitude ninguém morria até que eu o visse morto. “Não, ele não pode ter morrido. É meu pai e pais não podem viver menos de 100 anos. Como ele tem 56, ainda restam 44. Não sei onde ele tá, mas tenho certeza que vai se levantar.”
Apesar da descrença no passamento, me sentei, aproximei os joelhos do peito e divaguei pelo passado recente. Lembrei das vezes em que fiquei de castigo sentado no chão ao lado da cabeceira enquanto meu pai lia um dos quatro ou cinco livros escolhidos a cada semana; um castigo que não era tão castigo porque me permitia ler junto. Recordei também das noites em que eu tinha de tocar polca no quarto. Com o passar das horas, parecia um martírio e eu só pensava em dormir. Criança que era, não tinha a mínima ideia de que um dia sentiria falta de suas cobranças, castigos, reprimendas, discursos bravios e das vezes em que simulou me bater e judiou da cama.
Algum tempo depois, me levantei, fui até o quintal e observei o céu. Apesar de tudo, ele continuava igual, na sua apatia que prenunciava a aurora primaveril. Até a pequena plantação de hortelã seguia galharda, exalando profuso frescor. Aquilo era uma ofensa pra mim que perdi meu pai na madrugada. “Vou lá fora!”, pensei. Abri o portão, coloquei os pés na calçada e notei que o mundo não mudou porque meu pai partiu. Crianças atravessavam a rua rindo e correndo. Cães de diversos tamanhos latiam e mostravam os dentes entre as grades dos portões, tudo para tentar intimidar os passantes.
Logo ouvi o sino da igreja simulado por um disco de vinil e dezenas de pessoas caminhando até ela, assim como se repetia todo domingo. A padaria a 50 metros de casa estava aberta, recebendo os fregueses. “Por que ninguém se importa?”, me perguntei enraivecido. Quando vi sombras e vozes em frente ao portão de casa, me afastei e retornei a passos rápidos para o quarto do meu irmão.
Deitei no colchão e fiquei por lá, aventando minhas voláteis conclusões: “Claro! Se tá tudo igual é porque meu pai não morreu. Deve ser algum tipo de engano.” Então mirei o teto com a visão ligeiramente difusa e pensei que talvez fosse uma boa ideia ir até o hospital vê-lo. Em poucos minutos, veio um novo choque de realidade. Minha mãe retornou e perguntou se preferíamos ir ao velório ou ficar em casa.
Ilusão desfeita, eu e meu irmão nos entreolhamos e hesitamos por alguns instantes. No entanto, numa situação como essa, a resposta era previsível. “Prefiro ficar…”, respondemos juntos. Ela entendeu e respeitou nossa decisão, pois desde sempre não tínhamos o hábito de ir a velórios nem a enterros. No caso do meu pai em especial, a ideia de jamais vê-lo morto não era simplesmente uma forma de preservar a imagem que tínhamos dele, mas também a esperança de que um dia ele poderia retornar.
Por um momento, fui até o quarto do meu irmão Juninho, contíguo ao da minha mãe, e o observei no berço. Balançava as perninhas rechonchudas com o vigor de uma pedalada. Seus olhos grandes, redondos e castanhos cintilavam como avelãs envernizadas. A agitação hasteava a camisetinha com estampa do “Tico e Teco”, expondo a barriguinha farta. Nascido há um ano, sorria com doçura, mostrando a vivaz gengiva nua e os poucos dentinhos enquanto apontava a mão para um móbile de animaizinhos que giravam sobre sua cabeça.
A vida me parecia um jogo de chegadas e partidas. “Mas por que a partida tinha de ser do meu pai?”, reclamava. E assim minha mãe assumia total responsabilidade sobre três crianças que sabiam nada ou quase nada da vida, do mundo e dos seres humanos. Apesar de tudo, eu e Douglas não choramos, não gritamos, não brigamos com ninguém. Seguimos nossas vidas em silêncio. Nem mesmo na escola tocamos no assunto. Entre nós a reticência também era imperativa. Por que deveríamos dizer algo a alguém? Era um mundo distorcido, tanto quanto uma pintura do Otto Dix.
Com o tempo a consternação se intensificou, despertada num rompante insólito. A ausência tinha consequências progressivas – fustigava e dava lições de vida e morte. Crescia aos poucos, abrindo espaços entre o coração e o cérebro, como se formasse raízes no cerne da existência. O vácuo deixado pelo meu pai amplificava a impressão de um mundo oco em que não é dado aos bons seres a oportunidade de corrigirem suas falhas e renascerem. Com 13 anos, concluí e amarguei no coração diminuto, como uma noz prestes a ser esmagada, a ideia de que o mundo nunca foi justo porque não cabe a ele fazer qualquer tipo de justiça. Apenas segue de acordo com o curso das nossas ações, independente do nosso estado de consciência ou passionalidade.
Tardiamente, me via na esteira da dualidade, interpelando: “Que seja! Por que a vida não poderia imitar um jogo de videogame? Continuar de onde paramos. A morte deveria ser sinônimo da vida, um reinício e não um fim.” Era impossível esquecer que durante um ano e oito meses vi meu pai definhando aos poucos. Ele se esforçou para tentar levar uma vida normal. Quando recebeu a notícia de que estava com câncer de pulmão, deu um sorriso e, com um olhar sereno, comentou: “Vai dar tudo certo. É só um probleminha passageiro.”
Em Maringá, acompanhei meus pais até o Hospital Paraná em muitas sessões de quimioterapia e radioterapia. No começo, tudo ia bem. Meu pai continuava se alimentando normalmente e fazia brincadeiras enquanto aguardava atendimento. Em meses, perdeu os cabelos, mais de 20 quilos e sua pele que era rosácea se tornou translúcida e esquálida. As maçãs do rosto se afundaram a ponto de abrir fendas nas laterais que raleiam o maxilar.
Ele continuava acreditando na própria recuperação, assim como nós. Após um ano recebemos a melhor notícia de nossas vidas. Meu pai estava curado! Saímos até para festejar. Era incrível! Então a doença voltou… Depois de buscar métodos alternativos que não funcionaram, ele começou um novo tratamento no Hospital Beneficência Portuguesa de São Paulo. O resultado foi ainda mais agressivo e o seu peso caiu pela metade.
Era difícil reconhecê-lo, e eu já não o via tanto porque precisava ir para a escola. Em casa, meu pai repousava em um quarto adaptado à sua situação. Quando segurava sua mão, eu a sentia fria e frágil. Queria apertá-la calorosamente, mas temia lhe ferir os dedos. Seus olhos estavam mais baixos do que nunca. Quebrantado, fazia poucos movimentos com a boca e seus lábios tinham de ser umedecidos constantemente para não ficarem ressequidos e sangrarem.
Seu corpo escanzelado ocupava pouco espaço em um colchão d’água que evitava escoriações na pele delgada. Era azul como o mar e o céu que contemplou tantas vezes com uma expressão enlevada. Um dia, quando eu estava ao lado da cama sentado em uma cadeira, me pediu, com a voz embargada e paulatina, para ler um trecho de “O Andarilho das Estrelas”, do Jack London.
“…Sorri para mim mesmo um imenso sorriso cósmico e mergulhei na imensidão da pequena morte que fazia de mim o herdeiro de todas as eras e o cavaleiro de reluzente armadura a cavalgar o tempo.” Meu pai me olhou, fechou os olhos e dormiu sem desfazer o terno sorriso. Foi a última vez que conversamos.
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Lou Ferrigno, de vítima de bullying a campeão de fisiculturismo
Stand Tall, mais do que uma versão Pumping Iron do ítalo-americano
Embora muitos digam que o ex-fisiculturista e ator Lou Ferrigno foi ofuscado por muito tempo pelo também ator e ex-fisiculturista Arnold Schwarzenegger, a verdade é que o primeiro filme estrelado pela dupla, o documentário Pumping Iron, de 1977, de Robert Fiore e George Butler, serviu para alavancar ainda mais a carreira do ítalo-americano, mesmo que a película tenha se pautado mais na carreira e personalidade de Arnie.
Exemplos não faltam. Após o lançamento de Pumping Iron, Lou Ferrigno estrelou o filme The Incredible Hulk, seguido pela série homônima de sucesso que foi ao ar pela CBS até 1982. Depois, Ferrigno foi protagonista de The Incredible Hulk Returns, de 1988; The Trial of the Incredible Hulk, de 1989; e The Death of the Incredible Hulk, de 1990. Ainda trabalhando com a sétima arte, interpretou o mitológico Hércules em 1983 e 1984, além de Sinbad of the Seven Seas em 1989.
Dos anos 1990 para cá, o fisiculturista aposentado teve poucas participações no cinema e na TV. Os trabalhos mais populares incluem a voz do Hulk nos remakes mais recentes e muitas dublagens para os desenhos animados da Marvel. No Brasil, o filme Stand Tall, de 1996, do cineasta Mark Nalley, é desconhecido da maior parte do público aficionado por musculação e fisiculturismo.
Curiosamente, é o único que mostra quem é e quem foi o maior adversário de Arnold Schwarzenegger no antológico Mr. Olympia de 1975. Ainda assim, é preciso ressaltar que talvez por ser um docudrama com caráter de tributo ou homenagem, Stand Tall omite informações sobre o final da carreira de Ferrigno como bodybuilder, quando amargou em 1992 e 1993 as posições de 12º e 10º colocado.
O filme de Mark Nalley tem boa estrutura, em acordo com uma proposição humanista que visa despertar a identificação do público com um dos maiores ícones da era de ouro do bodybuilding. Na obra, Louis Jude Ferrigno é uma criança do Brooklyn, em Nova York, que aos três anos é diagnosticada com surdez causada por uma infecção. Restando apenas 15% da audição, o jovem Ferrigno cresce retraído. As cenas sobre a infância difícil do atleta são apresentadas em forma de vídeos caseiros registrados no final dos anos 1950.
Vítima constante de bullying, apenas anos mais tarde consegue ouvir e falar com clareza. São emocionantes as cenas de Lou contando como foi ridicularizado na infância por ser um garoto magricela surdo-mudo. Mas tudo começa a mudar aos 13 anos, quando descobre o fisiculturismo como forma de superar a timidez e a baixa autoestima. O amor pela modalidade é quase instantâneo, tanto que Ferrigno trabalhava como engraxate para comprar revistas de musculação.
Um dos momentos mais inesquecíveis de Stand Tall surge quando o ex-fisiculturista lembra dos episódios em que disse aos seus clientes que se tornaria um campeão mundial de bodybuilding. A narrativa vigorosa e a construção clara e objetiva do filme conquistam a atenção do espectador. Mesmo quem não gosta de musculação ou fisiculturismo começa a entender e respeitar a complexidade e o rigor da construção corporal, seja em nível competitivo ou não.
O filme que conta a história de superação do ítalo-americano também tem algumas semelhanças com Pumping Iron. No clássico de 1977 o adversário que o protagonista Arnold Schwarzenegger precisa superar é Lou. Já em Stand Tall, Ferrigno, com mais de 40 anos, tem de vencer o veterano Boyer Coe. A obra que levou um ano e meio para ser produzida tem bom material de pesquisa e apresenta entrevistas com familiares e amigos de Lou, além de Arnold, o maior ídolo do fisiculturismo.
Nalley quase desistiu de ter Schwarzenegger no filme por causa das dificuldades em convencê-lo a participar. Para o bem do cineasta, as regulares insistências garantiram um final feliz. Em troca da participação, Arnie pediu apenas uma caixa de charutos. “Sabíamos como seria determinante para o filme ter alguém famoso como o Arnold”, diz o cineasta Mark Nalley que precisou se desdobrar com um orçamento modesto de 200 mil dólares, considerado minúsculo para os padrões estadunidenses. Uma das poucas queixas sobre o filme diz respeito a iluminação. Há algumas cenas escuras que denunciam uma certa falta de cuidado e de recursos da produção.
Felizmente, nada disso é o suficiente para ofuscar o brilho do documentário sobre um dos atletas mais importantes da história do fisiculturismo. Se tratando de estatura física, Ferrigno, que tinha 1,96m e 130 quilos, ultrapassou os padrões do bodybuilding profissional e conquistou dois títulos de Mr. Universo em 1973 e 1974, além de uma terceira colocação no Mr. Olympia de 1975. Em síntese, Stand Tall é um filme feito para todos os seres humanos, amantes ou não de atividade física resistida. “Ele tinha tudo. Boas costas, bons ombros e sabia como posar”, comenta um admirador do atleta no filme.