David Arioch – Jornalismo Cultural

Jornalismo Cultural

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Um animal sem nome sem espécie

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Único em seu gênero, repousa ao lado de uma macieira

Há um animal, sem nome sem espécie. Único em seu gênero, repousa ao lado de uma macieira. Um homem assiste. Parece boi? Porco também não. Frango, galinha? Menos ainda. É bonito, espadaúdo. Mais do que isso aos olhos do homem – carnoso, delicioso. A fome emana o que a gana encana.

Lindas e robustas maçãs caem entre as pernas do sujeito. Ele? As ignora. Não! “Quero ele”, balbucia roçando a ponta da língua no lábio superior. Desembainha a faca espigada e caminha até o animal que não corre – nem se move na inocência vituperada pela inexperiência.

O homem o abraça. Vra! Vra! Vra! Maçãs rolam ao seu encontro. Maçãs do amor, “caramelizadas” pelo sangue morno, basto. Brilham. O homem comemora diante do moribundo que não chora.





A caça

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Um homem encontrou um caçador acompanhado do filho na mata. Eles arrastavam com dificuldade o cadáver de uma onça-pintada.

— Querem ajuda?
— Sim, por gentileza.

Depois de percorrerem mais de um quilômetro, pararam ao lado de uma caminhonete. O caçador pediu que o homem fotografasse ele e o filho com a onça inanimada.

— Não posso fazer isso.
— Por quê?
— Pelo mesmo motivo que esse animal jamais exibiria o seu filho aos dele como se fosse um troféu.
— Você é louco? Isso é uma onça, não uma pessoa.
— O senhor tem razão. É justamente por não ser uma pessoa que ela não faria isso. Não goza dessa estranha capacidade. A propósito, por que mataram esse animal e o que farão com ele?
— Matamos porque é matreira. Já nos avisaram que ela tem invadido chácaras, sítios e fazendas da região.
— Quem disse ao senhor?
— Um sujeito que mora naquele sítio a leste.
— Isso é intrigante.
— Por quê?
— Porque é lá que eu moro. O que pretende fazer com a onça?
— Curtir o couro, fazer um tapete, um churrasco. Dizem que carne de onça tem gosto de lombo de porco. Vamos experimentar.
— O senhor tem comida em casa?
— Sim…
— Fartura?
— Sim…
— Então por que comer a carne desse animal? O senhor já viu outro ser vivo arrancar o couro de alguém para servir apenas para limpar-lhe os pés?
— Então farei um casaco.
— Imagino que o senhor tenha blusas e jaquetas em casa…
— Farei um cobertor.
— O senhor tem passado frio atualmente?
— Não…
— Imagino.
— Amigo, farei o que eu quiser. Não me interessa sua opinião. Só aceitei ajuda para carregá-la.
— Tudo bem. Mas o que o senhor ensina ao seu filho fazendo isso?
— Ensino que é importante estar preparado pra tudo.
— Humm…
— E o senhor pensa em viver em uma área de mata fechada?
— Não…
— Então em qual circunstância seu filho teria que matar um animal desses?
— Não interessa.
— O que você aprendeu com seu pai hoje?

O menino ficou em silêncio.

— Chega dessa conversa. Vá cuidar de sua vida.
— Tudo bem, senhor.

Entre as ramagens, um filhote de onça-pintada ameaçava se aproximar.

— O senhor tem uma dívida. Se um dia aquele filhote lhe cobrar, o senhor não poderá reclamar. 

O caçador riu, mas deixou a onça e partiu.





Written by David Arioch

October 19th, 2017 at 12:05 am

O homem e o cão faminto

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Arte: Maxim Kantor

No caminho para o veterinário, encontrei um cãozinho roçando o focinho já sujo em uma sacola rasgada de lixo rente ao meio-fio da Rua John Kennedy. Ao lado, restos de alimentos de outras duas sacolas estavam esparramados pela galeria. Perto do animalzinho acastanhado e sujo, um homem gritava e ameaçava golpeá-lo com o cabo de uma vassoura.

— Suma daí, seu lazarento!
— Era só o que faltava. Arrastou todo o lixo. É um filho da…

Vendo a cena, encostei o carro, desci e caminhei até o homem.

— Boa tarde. Tudo bem com o senhor?
— Não tem nada bem aqui. Esse cachorro arrastou todo o lixo. Olhe essa porcaria toda. Vou ter que limpar essa bagunça. Desg….
— O senhor não precisa se preocupar porque eu limpo tudo.

O homem ficou em silêncio me observando.

— Como é?
— Eu limpo a bagunça do cachorro.
— E por que você faria isso?
— Sim. Farei isso para o cachorro não apanhar do senhor.

Silêncio novamente.

— Eu não iria bater nele — explicou visivelmente constrangido, com um sorriso amarelecido.
— Isso é muito bom, senhor. Porque eu realmente não gostaria de apanhar se estivesse faminto e de repente fosse obrigado a mexer no lixo de alguém. É triste, não? Tantos animais abandonados e desejando apenas um pouco de comida para não morrer de fome. Animais como esse não escolheram nascer, mas nem por isso desejam ou merecem sofrer. O senhor concorda?
— Hum…
— É…acho que talvez você tenha razão – respondeu coçando a cabeça.
— O senhor já viu esse cachorrinho por aqui?
— Não.
— Sabe se ele tem casa?
— Não tenho a mínima ideia.
— Essa vida de cão não é fácil, né?

Silêncio.

— Ah, tenho um pouco de comida pronta lá dentro. Acho que não tem problema dar um pouco pra ele.
— Muito gentil de sua parte.
— Que nada. Faço o que posso — comentou sorrindo.
— Não tenho dúvida de que já é mais do que muitos fariam.
— Você acha?
— Sim…
— Pensando bem, acho que posso cuidar dele hoje.
— Sabe, filho, meu irmão tem uma chácara na saída da cidade e acho que pode ser um bom lugar pra um cachorrinho agitado como esse.
— Sério?
— Ah, é sim. É um lugar muito bonito e espaçoso.
— Isso seria muito legal. O senhor vai fazer uma baita diferença na vida dele. Pode ter certeza.
— É…não custa ajudar de vez em quando.
— Se precisar de mim, moro algumas quadras acima, quase em frente ao Corpo de Bombeiros.
— Sei onde é. Já o vi.
— Bom saber. Muito obrigado.
— Disponha.

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Written by David Arioch

July 17th, 2017 at 10:29 pm

“Me vê um pedaço daquele cadáver ali”

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Vintage Poster – A Trip To The Butcher Shop

Um senhor, o primeiro da fila que se estendia por mais de 50 metros, se aproximou do açougueiro.

— Me vê um pedaço daquele cadáver ali.
— Como?
— Aquele pedaço de bicho morto pendurado no gancho. Gostei daquele – falou apontando para uma costela bovina bem visível sob a vitrine.
— Que absurdo! O senhor não tem a mínima educação com a comida – disse uma senhora.
— Que homem grosseiro! Nojento! – comentou uma moça.
— Quer aparecer, irmão? Amarre uma melancia no pescoço – criticou um rapaz.
— E o que vocês pensam que estamos comprando aqui? Nada mais do que bicho morto. Ou vocês acham que esses pedaços de carne brotaram da terra? São cadáveres, ora! Deliciosos, mas ainda assim cadáveres.

Durante a discussão, algumas pessoas se entreolharam chocadas e saíram da fila sem dizer palavra.

— Mas o senhor não precisa falar assim — reclamou outra mulher.
— Falo a realidade, minha senhora, só a realidade.
— Quanto o senhor quer? — perguntou o açougueiro.
— Não tenho certeza. Quanto custa o quilo dessa morte?

O açougueiro respondeu e o homem acenou com a cabeça.

— O senhor deseja mais alguma coisa?
— Verei.
— Assassinaram esse leitãozinho aqui fora de época, meu amigo. Esse aqui deve ter uns dez dias pelo que vejo. Deu tempo de desmamar? Acredite, não deu. Coitado! Vocês compraram de quem?
— Não posso fornecer essa informação, senhor. Teria que ver isso com a gerência.
— Ok…obrigado.

Enquanto o homem deslizava os dedos pela vitrine levemente embaçada, observando outros tipos de carne, uma criança começou a chorar.

— Mãe, aquela carne na bandeja é bicho morto, cadáver? O que aquele homem disse é verdade?
— Não, filhinha, não é não. Ele estava brincando.
— Como, senhora? Brincando? Pra que mentir para as crianças? Se comemos, temos que comer com consciência, sem mentiras. Se compro e como é porque alguém mata a bicharada por minha causa, por sua causa, por causa de todo mundo nesta fila. Não temos porque iludir os pequenos. Os matadouros vivem lotados graças a nós.
— Seu velho grosso e sem noção!

Depois de tapar brevemente os ouvidos da filha, a mulher a pegou pela mão e a levou para longe do açougue, em direção ao setor de hortifruti.

— O senhor vai afastar toda a freguesia — comentou um rapaz.
— Amigo, desde que cheguei neste açougue só falei verdades. Não fui rude nenhuma vez. Fui honesto apenas. Não é culpa minha se tem gente que rejeita a realidade.
— Mas não tem porque se referir à carne dessa forma tão sombria…
— Não tem nada sombrio aqui, meu jovem. Sombrio é o que acontece nos matadouros. Mas o que os olhos não veem o coração não sente, não é mesmo? Ou até sente, mas não se importa. Afinal, depende de quem falamos, concorda?
— Sei lá!

Quando o homem deixou o açougue, havia poucas pessoas na fila, e um silêncio desconfortável tomou conta do lugar. Sem olhar para trás, passou na padaria, pediu alguns pães e caminhou até o caixa. No estacionamento, um segurança chamou-lhe a atenção.

— O senhor pode me acompanhar, por favor?
— Tudo bem!

Após uma curta caminhada, entraram em um escritório, onde foram recebido pelo gerente.

— Boa tarde. Tudo bem?
— Sim e o senhor?
— Estou bem também. Obrigado por perguntar – respondeu o cliente.
— Quero pedir um favor ao senhor.
— Diga.
— O senhor causou um alvoroço no açougue. Seria possível não fazer mais isso?
— Como?
— O senhor falando em cadáveres, bicho morto, matadouro, assustando a freguesia. Não trabalhamos assim e não aceitamos isso.
— Como assim? É apenas a realidade, sem eufemismos.
— Sim, mas isso é inaceitável, não está dentro dos nossos padrões, e as pessoas não gostam disso.
— Mas não falo dessa forma para que as pessoas gostem de mim ou do que falo. Não busco aplausos. Respeito sua política de trabalho, mas não sigo padrões. Afinal, sou cliente, não funcionário. Entenda, não desrespeitei ninguém.
— O que o senhor ganha agindo assim?
— Ao ser consciente das minhas ações, e dividir isso com os outros? Não sei…talvez um pouco de honestidade e menos permissividade. Afinal, refugiar-se na ilusão também pode ser uma forma de abraçar a exclusão.

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O homem e o urubu

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“Tens razão, e admito que sou comedor de carniça. Admitir isso é sensato”

Um humano ficou enojado quando viu um urubu comendo carniça na beira da estrada. Se aproximou e tentou bater no animal com um galho caído sobre o asfalto quente.

— Saia daí, seu carniceiro. Fique longe desse cadáver.

Para a surpresa do homem, o urubu continuou se alimentando do cãozinho atropelado. Até que incomodado com os berros do homem, virou-se em sua direção.

— Os seus atropelam o cachorro por falta de atenção e indiferença, o que resta é somente a carne que jaz, sem vida, e você vem me dar sermão? Quem é você?
— Que isso! Que isso! O urubu tá falando!
— Estou sim! E daí?
— Pare de comer esse bicho aí. Deixe ele em paz. Vou enterrar ele naquele mato ali.
— Para quê e por quê? O que restou aí é alimento para os meus. Dependemos disso pra sobreviver. E a vida que existiu ali já se foi há muito tempo.
— Não! Não! Não posso deixar você fazer isso.
— O quê?
— Isso é muito nojento.
— Nojento?
— E a carne que vocês comem, não é? Deixe os animais apodrecendo sobre o solo e veremos se existe alguma diferença entre esse cachorro deitado sobre o asfalto e aqueles que vocês matam sem necessidade.
— Sem necessidade? Você é uma piada!
— Não, senhor. Somos realmente carnívoros, e não matamos animais e nos alimentamos deles para além da nossa necessidade. Comemos para viver, não vivemos para comer. Considere também o fato de que vocês são incapazes de se alimentar da carne em estado natural, o que é chocante para nós carnívoros. Isso não existe. Comemos o que está à nossa disposição e como nos foi ofertado, sem máscaras, ou seja, sem fogo, sem tempero. Respeitamos a natureza.
— Você é louco! Louco!
— Talvez, se estamos falando de um mundo onde ser normal é matar para agradar o paladar.
— Pelo menos não como nada do chão.
— O cachorro que morreu por uma fatalidade se incomodaria menos de ser comido por nós nessa situação do que os animais que vocês agradam para depois matar em atitude traiçoeira. Afinal, o que tem de glorioso em abraçar antes de golpear? Sejamos honestos, meu amigo.
— Não vou perder meu tempo discutindo com um comedor de carniça.
— Poderia dizer o mesmo de você, já que nós dois nos fartamos da carniça de seres que viviam.
— Eu não. Você! Você! Só você!
— Tens razão, e admito que sou comedor de carniça. Admitir isso é sensato. Mas por que levanta a voz, range os dentes e demonstra tanto incômodo e desconforto? Examine a sua consciência, pois a minha resplandece tranquila – disse o Urubu antes de continuar se alimentando do cãozinho.

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Um amor em forma de prosa

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Paulo Campos rejuvenesce o passado de Paranavaí por meio da literatura

Paulo Campos com as duas produções literárias que lhe renderam prestígio (Foto: David Arioch)

Paulo Campos com as duas produções literárias que lhe renderam prestígio (Foto: David Arioch)

Há décadas, o advogado e escritor regionalista Paulo Campos registra o amor a Paranavaí por meio da prosa. Produziu centenas de contos, poemas e publicou dois livros: “O diabo e o Homem na Brasileira” e “Memórias de Luta e uma História de Amor”. Tanta dedicação rendeu prêmios em várias regiões do Brasil e fez de Campos um ícone local na arte de rejuvenescer o passado por meio da literatura.

Paulo Campos começou a se interessar pela produção textual aos 18 anos, influenciado por histórias contadas pelos pais. Não demorou e surgiu o convite para produzir o primeiro texto – adaptação de uma peça do dramaturgo Martins Pena. “O fundador do Teatro Universitário de Paranavaí (TUP), João Batista Tirapelle, me pediu para trazer o conteúdo da obra para a nossa realidade”, conta Campos. A adaptação despertou no jovem Paulo Campos o desejo de resgatar o início da colonização em Paranavaí.

Anos depois, em 1986, o escritor publicou a primeira obra, “Memórias de Luta e uma História de Amor”, que sintetiza a história de Paranavaí sob um prisma artístico com requinte ficcional. Também participou da antologia poética “Assim escrevem os Paranaenses”, iniciativa do renomado escritor paranaense Domingos Pellegrini. Para a obra literária, Campos transferiu, de forma peculiar, fatos da década de 1950, como os muitos assassinatos cometidos à luz do dia, alheios aos transeuntes.

“Meus familiares viam muitos corpos ensanguentados próximos das valetas. Minha mãe pedia a meus irmãos que não olhassem”, relata o escritor. Dentre os textos que homenageia personagens da cidade, o destaque é “Orquídea Negra”, um poema sobre o saudoso Negão do Surucuá. “Ele teve uma morte relativamente misteriosa. Mesmo assim, sempre será parte da nossa história”, avalia Campos.

No acervo, o escritor tem centenas de contos e poemas, mas prefere guardá-los para fazer leituras mais críticas. “Escrevi bastante, tenho até material para publicar livros de contos, mas não me animo com a ideia. Inclusive ‘O Diabo e o Homem na Brasileira’ só foi publicado por incentivo e coordenação do Téia”, explica Campos, referindo-se a José de Arimatéia Tavares, um ícone do movimento cultural de Paranavaí.

Com a Barriguda (troféu do Femup), o reconhecimento de um trabalho em prol da arte e história local (Foto: David Arioch)

Com a Barriguda (troféu do Femup), o reconhecimento de um trabalho em prol da arte e história local (Foto: David Arioch)

Apesar de ter publicado pouco do que produz, conquistou grande reconhecimento. O escritor tem contos lançados no Brasil e em Portugal. Entre as conquistas mais memoráveis, destaca o Prêmio Macunaíma, em São Paulo, e Concurso de Contos da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de janeiro, além de vitórias no Festival de Música e Poesia de Paranavaí (Femup), evento que o estimulou a escrever.

“Muita gente cria um laço com a literatura a partir do Femup. Ganhei meu primeiro prêmio em 1973. Depois comecei a escrever com mais intensidade”, diz Paulo Campos.  Atualmente o escritor pensa em publicar um romance. “Até sou cobrado por isso. Tenho uma ideia em mente há muito tempo, mas ainda não comecei. Posso adiantar que é relacionada com Paranavaí que tem uma história muito rica”, confidencia.

Peça polêmica e reconhecimento

Das peças produzidas pelo escritor e advogado Paulo Campos, duas tiveram grande repercussão. A primeira, “Vila Montoya”, foi encenada no Festival Internacional de Londrina (Filo). Como tinha um caráter crítico e foi concebida durante a Ditadura Militar, o Teatro Universitário de Paranavaí, dirigido por João Batista Tirapelle, teve de substituir alguns diálogos envolvendo o presidente Getúlio Vargas.

“O Tirapelle acatou a ordem da censura, porém tivemos um ator com dificuldades em memorizar os diálogos. O resultado foi que o rapaz soltou toda a fala que tinha decorado, sem cortes”, relembra. Ao final, a Polícia Federal subiu ao palco e encaminhou o grupo para a coxia (bastidores), onde foi dada a ‘voz de prisão’ para os artistas. “Enquanto o público aplaudia de pé, nós explicamos a situação e tudo acabou bem”, lembra o escritor.

Outra peça que ganhou repercussão foi “Chão Bruto” ou “Nem o Pai, nem o Filho, nem o Espírito Santo”, classificada em um concurso promovido pelo Centro Cultural Teatro Guaíra, de Curitiba. “O presidente do centro gostou muito da história e me ligou perguntando se eu autorizava uma nova encenação. Concordei e fiquei uma semana com eles para fazer as adaptações necessárias”, revela Paulo Campos.

“Chão Bruto” consiste em uma reza para fechar o corpo. O personagem de destaque é um rapaz inconformado com o coronelismo e as desigualdades sociais em Paranavaí. “No período de colonização, era muito comum uma pessoa vender determinada propriedade e cobrar o valor pago outra vez. No conto, o personagem não aceita isso e faz um levante armado para acabar com as injustiças”, frisa.

Um fato curioso é que na peça há um barracão onde as armas são guardadas. O local realmente existiu na Rua Pernambuco, uma das vias mais conhecidas da cidade. Porém, como a arte imita a vida, o levante nem chegou a acontecer porque o líder da mobilização foi convidado para ir até a delegacia, onde o assassinaram em um ato covarde e traiçoeiro.

Literatura X Advocacia

Há 19 anos, antes de optar pela advocacia, Paulo Campos atuava como professor. Influenciado pelos irmãos ligados ao magistério, cursou letras almejando trilhar o caminho da literatura. Foi professor por muitos anos, mas como não tinha tempo para se dedicar à arte literária, resolveu cursar direito. “Já sabia que teria uma condição financeira melhor. O profissional poderia alimentar o escritor”, conta.

Os planos não se concretizaram como Campos vislumbrou. “Comecei a fazer direito, e a partir do segundo ano me apaixonei pelo curso. Em resumo, até hoje atuo como advogado. As duas atividades me satisfazem plenamente”, destaca, acrescentando que no início da profissão podia se dedicar mais à literatura. Com o passar dos anos, a advocacia tomou-lhe a maior parte do tempo. Hoje, Paulo Campos escreve esporadicamente.

Inspiração na história regional

Assim como o emblemático Guimarães Rosa, o escritor e advogado Paulo Campos também privilegia a linguagem prosaica na produção textual, beirando ao dialeto regional, herança que assume com prazer e honra. “Admito a influência do escritor mineiro. Pra mim, ele é o maior escritor de todos os tempos. Tem um grande poder de sedução”, afirma Campos. O regionalismo é o ingrediente mais importante das histórias do escritor paranavaiense.

O conto “Um Grito no Escuro”, por exemplo, é baseado em um fato que o escritor vivenciou há muito tempo, quando foi a uma farmácia. “Um ventríloquo chamou o balconista, mas o homem não percebeu a origem da voz. Curiosamente o atendente ficou desesperado e telefonou para a família. Na minha história isso acontece em um ônibus e desencadeia uma série de acontecimentos”, comenta.

Genocídio na década de 1920

Um altruísta pesquisador da história local, o escritor Paulo Campos sempre procurou informações sobre fatos não oficiais, principalmente do início da colonização, quando Paranavaí ainda era conhecida como Vila Montoya. “Na década de 1920, havia um foco de interesse anti-revolucionário aqui e acredita-se que um exército foi enviado para praticar assassinatos em massa, o que resultou na morte de muita gente”, relata.

Mais tarde, alguns sobreviventes decidiram viver na mata, instalando-se em buracos no interior das árvores, assim como fazem os animais. Cogita-se que os remanescentes do genocídio viveram em ostracismo por mais de dez anos. “Em pesquisas, descobri que viveram nus todo esse tempo”, informa Paulo Campos.

Outra curiosidade é que à época não havia estrada até a Vila Montoya. Mesmo assim, alguns pioneiros encontraram um piano no interior de uma residência. “O acesso a Paranavaí era pelo Porto Tigre, de Presidente Prudente, tinha que atravessar por um picadão. Ninguém sabe como esse piano chegou aqui”, declara Campos, que conhece também muitos outros fatos dignos de contos, não somente ligados a Paranavaí, mas também outras cidades.

“Em Querência do Norte tinha uma pessoa que morava em um sítio e vivia nu, apenas vestia roupa quando ia à cidade. Ele fazia pregações, era considerado louco, mas levava a vida normalmente. Era conhecido por praguejar os poderosos na época”, afirma.

Curiosidade

“Nem o Pai, nem o Filho e nem o Espírito Santo” era o pseudônimo do escritor Paulo Campos quando concluiu “Chão Bruto”. Só que durante a adaptação da peça em Curitiba, o grupo do Centro Cultural Teatro Guaíra perdeu a primeira folha com o nome do espetáculo, então usaram “Nem o Pai, nem o Filho e nem o Espírito Santo” como título. A diretora da peça e o presidente do CCTG gostaram tanto do nome que o escritor adotou definitivamente o pseudônimo como título alternativo.