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Comentário na entrevista “A trajetória de um homem do campo”

Entrevista fala sobre a história do ex-colono e ex-boia-fria José Alexandre de Freitas (Imagem: Reprodução)
Muito legal ver até que ponto o seu trabalho pode ser valorizado. Pra mim, esse tipo de comentário (publicado na minha entrevista “A trajetória de um homem do campo”) é mais recompensador do que qualquer dinheiro que eu ganhe desempenhando a minha função profissional.
“David, sua reportagem me foi muito útil. Agradeço a Deus todos os dias, por existir gente como você. Estou desenvolvendo uma monografia de mestrado, com o tema central “O homem rural (do campo)”, e seu artigo veio muito em conta. Parabéns! Continue ajudando acadêmicos como eu e outros desse nosso Brasil tão diversificado, principalmente em relação ao trabalhador rural. Abraços, Conceição.”
O valor de uma promessa
A história do homem que viaja sete léguas com uma cruz nas costas para cumprir um voto
Lançado em 1962, O Pagador de Promessas, do cineasta Anselmo Duarte, é um dos maiores clássicos do cinema nacional. A obra inspirada na peça de Dias Gomes conta a história de um homem do campo que viaja sete léguas (42 quilômetros) com uma cruz nas costas para pagar uma promessa.
No filme, Zé do Burro (Leonardo Villar) chega à cidade machucado pelo peso da cruz sobre o ombro, resultado de um voto que fez à Santa Bárbara para que o seu fiel companheiro, um burro, fosse curado de uma grave enfermidade. Mas o grande problema surge quando o agricultor tenta entrar na Igreja de Santa Bárbara com a cruz, sendo impedido pelo Padre Olavo (Dionísio Azevedo) ao saber que Zé fez uma promessa à santa em um terreiro de candomblé.
Tenta justificar o episódio falando que não havia nenhuma igreja ou capela próxima. Intransigente, o sacerdote não aceita a explicação de Zé e pede que o homem saia das imediações do templo. O pagador de promessas se recusa e decide ficar na frente da igreja até conseguir entrar, honrando o compromisso feito à Santa Bárbara.
Aproveitando-se da inocência do matuto homem do campo, uma infinidade de pessoas tentam se aproximar com as mais diversas intenções. Um exemplo é o inescrupuloso personagem Bonitão, um cafetão que finge ajudar Zé apenas com a intenção de conquistar Rosa, a mulher do pagador de promessas.
Outra figura digna de destaque é o jornalista interpretado por Othon Bastos que explora com sensacionalismo e inverdades a figura de Zé como um revolucionário messiânico. A repercussão da publicação atrai visitantes, líderes religiosos, patrocinadores oportunistas e até mesmo a polícia que começa a encarar o produtor rural como um contraventor e agitador social.
É trágica e cômica a cena do comerciante estrangeiro pedindo para o fotógrafo do jornal mostrar ao fundo o seu comércio enquanto em primeiro plano aparecem Zé, a cruz e Rosa. Anselmo Duarte aborda com riqueza visual e informacional a relação conturbada entre o catolicismo e as religiões afro-brasileiras, avaliadas pelo padre como “práticas demoníacas”.
A beleza de O Pagador de Promessas está na simplicidade, objetividade e linguagem canhestra do protagonista, alheio ao materialismo e malícias da modernidade. Em alguns aspectos, o filme lembra a crítica social das fases mexicana e espanhola do cineasta Luis Buñuel e também o cinema neorrealista de Pier Paolo Pasolini, principalmente a passagem da mercantilização da fé do clássico Uccellacci e Uccellini.
No início da obra, símbolos religiosos europeus e africanos se misturam no mesmo ambiente, evocando uma ideia de unidade da fé sustentada em amor incondicional e livre de preconceitos. Ao mesmo tempo, a percussão arcaica e dissonante da cena introduz o espectador ao caos que ainda vai ser vivido por Zé do Burro. Outra característica marcante do filme é o contraste entre o barulho e o silêncio total, além da aridez do cenário e a fotografia angustiante que em vários momentos aspira ao desconforto e ao derrotismo.
O Pagador de Promessas é uma obra antológica que apresenta um personagem ímpar com valores maiores que a própria vida. Extremamente atual, o clássico discute assuntos ainda controversos como o preconceito religioso, reforma agrária e má distribuição de renda. O elenco conta com outros grandes nomes do cinema e da TV nacional como Glória Menezes, Geraldo Del Rey, Roberto Ferreira, Norma Bengell e Antonio Pitanga.
O filme de Anselmo Duarte foi o grande vencedor do Festival de Cannes de 1962, recebendo a Palma de Ouro, título jamais conquistado por outra película brasileira. Também foi premiado em duas categorias no San Francisco International Film Festival, onde recebeu o Golden Gate, além de outras premiações no Festival de Cartagena, na Colômbia, e uma indicação ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1963.
A trajetória de um homem do campo
José Freitas fala sobre a experiência de fazer parte da primeira geração de boias-frias
O aposentado José Alexandre Freitas, 72, morador do Jardim Morumbi, em Paranavaí, é da primeira geração de boias-frias do Noroeste do Paraná. Hoje em dia não trabalha mais, mas carrega marcas que nem o tempo é capaz de apagar, como as mãos calejadas, de pele grossa, e o rosto enegrecido e manchado pela frequente exposição ao sol.
Da época em que atuava como trabalhador volante, Freitas herdou também um chapéu de palha que ele ajeita cuidadosamente várias vezes, mesmo sabendo que a entrevista não é para a TV. O aposentado é amistoso e sorridente, porém quando se recorda dos problemas de quando trabalhava no campo, o sorriso se mistura a um olhar mortiço, uma consequência natural que evidencia a relação de amor e ódio do boia-fria com o campo.
Na entrevista abaixo, compilada em tópicos, José Alexandre Freitas, o colono que virou boia-fria, sintetiza opiniões e experiências ao falar sobre colonato, êxodo rural, trabalho infantil, aposentadoria, mecanização e outros assuntos.
O pequeno produtor rural
Nas décadas de 1960, 1970, quem tinha um sítio teve que vender pra fazendeiro. O pequeno produtor não tinha chance nenhuma de disputar o mercado. Acontecia muitas injustiças que eu mesmo vi de perto. Isso melhorou só depois por causa das cooperativas.
O colono
Quando comecei a trabalhar de colono, tudo isso aqui era café. A gente recebia mesada do patrão. A colheita era unida, bonita de ver e de lembrar. Depois acabou e tive que virar boia-fria. Em 1964, 1965 e 1966, a gente recebia uma diária mixuruca, não chegava a ganhar nem um salário por mês. A coisa foi mudando na década de 1980.
O fim do colonato
Os colonos desapareceram. Vim em 1982 pra cidade porque os patrões não queriam mais ninguém na roça. Eu fui um dos últimos colonos a vir pra cá. Vim meio que obrigado, não queria muito, ainda gostava da roça. Cheguei nessa mesma rua [Avenida Domingos Sanches], onde a gente tá conversando agora. Hoje, penso diferente, se fosse pra eu trabalhar de novo na roça preferia morar aqui e ir de ônibus do que morar na fazenda.
Êxodo rural
Naquele tempo, a jornada era de 12 horas, então trabalhar na roça era terrível. Quem tinha a chance de vir pra cidade não pensava duas vezes. Imagine, você começar a trabalhar às 6h da manhã e parar só às 6h da tarde. Hoje em dia é diferente, ninguém trabalha na roça mais do que oito horas. Era cruel, o pessoal sofria muito.
A vida de boia-fria
A verdade é que boia-fria até hoje é um sujeito sem patrão. O mais próximo que ele tem de um chefe é o gato. No meu tempo, ninguém podia adoecer. Se ficasse um mês parado, passava fome. Lembro que a gente recebia 40, 50 centavos por pé de café, mas quando o patrão queria que o sujeito fosse embora por vontade própria, ele pagava 20 centavos. Mas nem todos eram assim. Tive patrão bom também que quando o boia-fria não conseguia ganhar o suficiente, ele pagava mais pela diária.
Gato X fiscal
O gato e o fiscal agem da mesma maneira. Eles pegam uma área de empreita, contratam os trabalhadores e pagam um pouco menos do que o oferecido pelo dono da propriedade pra ter lucro. O ganho por dia equivale a duas diárias de um boia-fria. Trabalhei como fiscal e gato por alguns anos. Às vezes, tinha que dividir a turma. Era impossível dar conta de 100 peões ao mesmo tempo.
Trabalho infantil
Até a década de 1990, tinha muitas crianças trabalhando nas roças da região, já hoje é difícil de encontrar. Acho errado o menor não poder trabalhar, porque antigamente, quando a criança começava cedo na lida, ela aprendia a respeitar mais os pais e também a vida. Hoje, qualquer adolescente diz que não vai trabalhar porque está protegido pela lei, inclusive tem quem use isso pra desafiar a família. Na minha época, um rapaz de 18 anos já era independente, tinha a
própria vida.
Segurança x ajuda
Acidente de trabalho acontecia, mas ninguém era responsável. Hoje também não mudou muita coisa. A verdade é que sem registro não existe segurança. No tempo em que mais trabalhei, década de 1950, 1960 e 1970, quem mais sofria acidente era a criança. Caía e machucava o pé, quebrava braço, então quem tinha que se virar era a família. Quando alguém se feria, a gente se reunia e ajudava. Comprava comida, fazia vaquinha pra arrecadar dinheiro. O ruim é que empregado que se machucava no serviço era mandado embora.
Relação com os colegas de trabalho
Quando trabalhei como gato, nunca fui maldoso com ninguém, eu respeitava todos os boias-frias, até porque fui um deles, né? Tinha paciência, falava com educação. Por isso que os patrões gostavam de mim. Eu odiava estupidez.
Chuva na roça
Essa era a pior parte. Não tinha esse negócio de que porque está chovendo não ia trabalhar. A gente ganhava por dia, então não tinha como ficar em casa esperando a chuva passar.
Sindicato dos trabalhadores
Naquele tempo, o sindicato não era vigorado como hoje. Agora o trabalhador rural tem garantias e direitos. O sindicato garante salário-desemprego, 13º salário e ainda ajuda a receber os atrasados. Fazem um trabalho muito bom.
Entretenimento
A gente ocupava o tempo livre jogando futebol, até o patrão jogava, e de centroavante. Era o nosso grande lazer, além de outro que eu não posso falar (risos).
Aposentadoria
Trabalhei a vida toda na roça e nunca tive direito a nada. A única sorte que tive foi me aposentar com 60 anos. Hoje, pra se aposentar com essa idade, é muito difícil. Quase nenhum patrão quer ajudar o empregado que trabalhou na roça. Até dá pra entender, ninguém quer ser responsável se der alguma coisa errada. Conheço muita gente que trabalhou no campo e tenta se aposentar, mas não consegue. Na minha família tem gente nessa situação.
Experiência no corte de cana-de-açúcar
Há 21 anos, tive uma experiência no corte de cana, mas não consegui cortar 70 metros. Fui três dias, fizeram a minha ficha, mas daí não foi aprovada porque não cortei 70 metros. Disseram que não podiam me dar nenhuma garantia.
Mecanização
Sobre as máquinas, acho que a dificuldade maior é que ninguém sabe o que o governo vai fazer com esse povo todo. O serviço braçal ainda vai acabar, disso eu tenho certeza porque já conheci máquina que substitui o homem até em terreno irregular. Lá no interior de São Paulo mesmo, boia-fria é conhecido como cata-bituca, porque pra ele só ficam os restos deixados pela máquina.
O futuro dos boias-frias
A única saída ainda é a reforma agrária. O governo deve desapropriar e comprar essas fazendas onde ninguém planta nada e cortar em lotes. Se fizer direito, vai dar certo. Sei disso porque tenho um genro que mora numa fazenda no interior de São Paulo e lá ele conseguiu oito alqueires e hoje vive de forma mais digna.