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Lou Ferrigno, de vítima de bullying a campeão de fisiculturismo
Stand Tall, mais do que uma versão Pumping Iron do ítalo-americano
Embora muitos digam que o ex-fisiculturista e ator Lou Ferrigno foi ofuscado por muito tempo pelo também ator e ex-fisiculturista Arnold Schwarzenegger, a verdade é que o primeiro filme estrelado pela dupla, o documentário Pumping Iron, de 1977, de Robert Fiore e George Butler, serviu para alavancar ainda mais a carreira do ítalo-americano, mesmo que a película tenha se pautado mais na carreira e personalidade de Arnie.
Exemplos não faltam. Após o lançamento de Pumping Iron, Lou Ferrigno estrelou o filme The Incredible Hulk, seguido pela série homônima de sucesso que foi ao ar pela CBS até 1982. Depois, Ferrigno foi protagonista de The Incredible Hulk Returns, de 1988; The Trial of the Incredible Hulk, de 1989; e The Death of the Incredible Hulk, de 1990. Ainda trabalhando com a sétima arte, interpretou o mitológico Hércules em 1983 e 1984, além de Sinbad of the Seven Seas em 1989.
Dos anos 1990 para cá, o fisiculturista aposentado teve poucas participações no cinema e na TV. Os trabalhos mais populares incluem a voz do Hulk nos remakes mais recentes e muitas dublagens para os desenhos animados da Marvel. No Brasil, o filme Stand Tall, de 1996, do cineasta Mark Nalley, é desconhecido da maior parte do público aficionado por musculação e fisiculturismo.
Curiosamente, é o único que mostra quem é e quem foi o maior adversário de Arnold Schwarzenegger no antológico Mr. Olympia de 1975. Ainda assim, é preciso ressaltar que talvez por ser um docudrama com caráter de tributo ou homenagem, Stand Tall omite informações sobre o final da carreira de Ferrigno como bodybuilder, quando amargou em 1992 e 1993 as posições de 12º e 10º colocado.
O filme de Mark Nalley tem boa estrutura, em acordo com uma proposição humanista que visa despertar a identificação do público com um dos maiores ícones da era de ouro do bodybuilding. Na obra, Louis Jude Ferrigno é uma criança do Brooklyn, em Nova York, que aos três anos é diagnosticada com surdez causada por uma infecção. Restando apenas 15% da audição, o jovem Ferrigno cresce retraído. As cenas sobre a infância difícil do atleta são apresentadas em forma de vídeos caseiros registrados no final dos anos 1950.
Vítima constante de bullying, apenas anos mais tarde consegue ouvir e falar com clareza. São emocionantes as cenas de Lou contando como foi ridicularizado na infância por ser um garoto magricela surdo-mudo. Mas tudo começa a mudar aos 13 anos, quando descobre o fisiculturismo como forma de superar a timidez e a baixa autoestima. O amor pela modalidade é quase instantâneo, tanto que Ferrigno trabalhava como engraxate para comprar revistas de musculação.
Um dos momentos mais inesquecíveis de Stand Tall surge quando o ex-fisiculturista lembra dos episódios em que disse aos seus clientes que se tornaria um campeão mundial de bodybuilding. A narrativa vigorosa e a construção clara e objetiva do filme conquistam a atenção do espectador. Mesmo quem não gosta de musculação ou fisiculturismo começa a entender e respeitar a complexidade e o rigor da construção corporal, seja em nível competitivo ou não.
O filme que conta a história de superação do ítalo-americano também tem algumas semelhanças com Pumping Iron. No clássico de 1977 o adversário que o protagonista Arnold Schwarzenegger precisa superar é Lou. Já em Stand Tall, Ferrigno, com mais de 40 anos, tem de vencer o veterano Boyer Coe. A obra que levou um ano e meio para ser produzida tem bom material de pesquisa e apresenta entrevistas com familiares e amigos de Lou, além de Arnold, o maior ídolo do fisiculturismo.
Nalley quase desistiu de ter Schwarzenegger no filme por causa das dificuldades em convencê-lo a participar. Para o bem do cineasta, as regulares insistências garantiram um final feliz. Em troca da participação, Arnie pediu apenas uma caixa de charutos. “Sabíamos como seria determinante para o filme ter alguém famoso como o Arnold”, diz o cineasta Mark Nalley que precisou se desdobrar com um orçamento modesto de 200 mil dólares, considerado minúsculo para os padrões estadunidenses. Uma das poucas queixas sobre o filme diz respeito a iluminação. Há algumas cenas escuras que denunciam uma certa falta de cuidado e de recursos da produção.
Felizmente, nada disso é o suficiente para ofuscar o brilho do documentário sobre um dos atletas mais importantes da história do fisiculturismo. Se tratando de estatura física, Ferrigno, que tinha 1,96m e 130 quilos, ultrapassou os padrões do bodybuilding profissional e conquistou dois títulos de Mr. Universo em 1973 e 1974, além de uma terceira colocação no Mr. Olympia de 1975. Em síntese, Stand Tall é um filme feito para todos os seres humanos, amantes ou não de atividade física resistida. “Ele tinha tudo. Boas costas, bons ombros e sabia como posar”, comenta um admirador do atleta no filme.
O incompreendido e seminal Truffaut
Les quatre cents coups, uma autobiografia à François
Les quatre cents coups, que no Brasil ganhou o título de Os Incompreendidos, é um filme de 1959, do surpreendente François Truffaut. Ícone da Nouvelle Vague, a obra mostra os conflitos vivenciados por uma criança dividida entre uma existência pueril, alimentada por sonhos, e uma contumaz e gélida realidade doméstica.
A obra de François Truffaut, subjetivamente autobiográfica, mostra as belezas e as dificuldades que volatilizam o universo de um garoto em constante conflito familiar. O protagonista, Antoine Doinel, interpretado por Jean-Pierre Léaud, é uma criança que se refugia em livros para se sentir mais humana e mais viva, como se fizesse parte da casta dos literatos que tanto admira, entre eles o prolífico realista Honoré de Balzac.
Na história, o cineasta apresenta uma figura paterna impotente, fragilizada e subserviente. Em suma, às raias da insignificância. Já a materna, é alheia ao contexto familiar, rendida à superficialidade, egoísmo, egocentrismo e individualismo. No filme, François Truffaut rompe o paradigma de um mundo em que os pais vivem em função dos filhos, o que acidentalmente justifica o título brasileiro.
Para saturar a inexistência de qualquer distinção entre crianças e adultos, Truffaut mostra pais e professores conversando com seus filhos e alunos de forma igualitária, como se não houvesse distinção de faixa etária – o que também remete ao clássico Zéro de conduite (Zero de Conduta), de Jean Vigo, assim como a cena antológica dos estudantes correndo pelas ruas de Paris. A natureza bucólica e espontânea das crianças ganha espaço apenas nos momentos em que estão sozinhas, oclusas em um universo de complacência e liberdade.
Les quatre cents coups é um grande marco do cinema francês e dignifica de modo seminal a estética cinematográfica de Truffaut, autor que jamais precisou apelar para o sentimentalismo ou recursos sofisticados para encantar os espectadores.