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Tonho o boiadeiro
“Quando o céu sobre a terra desabar, o homem há de acordar. E todos vamos pastar pelo simples prazer de verdejar”
Tonho abriu os olhos, sentou na cama e observou através da janela o céu revolto e avermelhado na madrugada de domingo. Estranhou o silêncio do galo, mas não se importou. Levantou e caminhou até uma pia no canto do quarto. Lavou o rosto, umedeceu os cabelos, ajeitou a barba com as pontas dos dedos e manteve a cabeça baixa enquanto a água escorria. “Acho que o dia não quer nascer, o sol tá de teimosia. De quem deve ser a culpa? Sei lá eu!”, monologou coçando o peito musculoso.
Vestiu calça jeans e camisa azul, lustrou a fivela cintilante que trazia a letra T em destaque e calçou um par de botas de cano alto. Antes de sair para trabalhar, alinhou o chapéu sobre a cabeça, preparou o café, tomou uma caneca e limpou a barba com o dorso da mão direita. “Agora tô pronto!”, disse sorrindo, batendo solas no piso de tacos, e observando o próprio reflexo no espelho pendurado num prego.
Lá fora, Tonho assobiou e Atalante apareceu, um cavalo preto e robusto de 15 anos. Preparou a sela, subiu sobre o lombo do animal e cavalgou em direção à invernada. Nas primeiras horas da manhã, sem berrante e sem assistência, o rapaz mestiço, de origem caiuá e caucasiana, reuniu mais de mil bois cantando “Cabirúchichi”, uma canção que fala sobre a renovação do amor dos seres humanos pelos animais depois de 30 dias de trovoadas e tempestades.
— Quando o céu sobre a terra desabar, o homem há de acordar. E todos vamos pastar pelo simples prazer de verdejar. É o dia que chega, meus amigos!
O gado entendia as palavras de Tonho. Sempre que ele terminava sua canção e seu discurso, eles o observavam com atenção e complacência. E o silêncio de segundos era ofuscado por um coro de mugidos em direção ao céu. A reação da boiada fazia o pasto vibrar e a relva balouçar.
Aquela era a vida do boiadeiro há mais de 10 anos, e ultimamente seu trato com os animais começou a causar estranhamento nos outros peões. Durante a tradicional travessia do Riacho de Santa Luzia, ele tentava confortar a boiada.
— Fica assim não, Rufião. Você consegue! Olhe pra você, cara! Lindão e forte. Veja também quantos de seus amigos estão esperando você atravessar pra te seguir. Vamos lá! Confie em mim. Por favor!
Hesitante, com os cascos apoiados às margens do riacho, Rufião cedeu ao pedido de Tonho. A travessia de Santa Luzia sempre assustava o gado porque fazia parte do percurso final antes do confinamento seguido de abate. Eles pressentiam que o pior estava por vir. Do outro lado do riacho, a boiada pastava lastimosa, como se seguisse um cortejo fúnebre. Tonho tentava animá-los em vão. Nenhum boi queria enxergar nada além da grama queimada e das pegadas de seus irmãos que jamais retornaram.
Alguns escoravam a cabeça sobre os companheiros mais próximos, crentes de que isso poderia protegê-los e afastá-los da morte. Cansados, mugiam baixinho, até que desapareciam no horizonte ensolarado para nunca mais serem vistos por aquelas bandas. Uma semana depois da última travessia, Tonho pulou no Ribeirão Guararema para salvar um bezerro, filho de Rufião, arrastado pela correnteza.
Quando saiu encharcado da água, com o bezerro tremendo e gemendo em seus braços, notou três homens o esperando, sentados sobre a relva, fumando palheiro. Um deles, Cambuci, o mais velho, parou de furar a terra com um canivete de lâmina escura e disse:
— A gente percebeu que você tá diferente, Tonho. Parou de comer carne, ovo e beber leite. E ainda fica tratando bicho que nem gente. Até aí tudo bem! Tenho nada a ver com suas loucuras. Agora o que você fez foi demais. O patrão ficou sabendo de tudo e disse que isso não tá certo, que você traiu a confiança dele e precisa pagar.
Tonho colocou o bezerro na grama, deu um tapinha em seu lombo e o bicho correu para longe.
— Faça o que tiver de fazer, mas saiba que o mundo de hoje e o mundo de amanhã não há de ser o mesmo, independente da sua vontade ou do patrão. A terra sangra junto com os animais. Vai dizer que tu nunca percebeu? Olha o que isso aqui virou. Esse pasto queimado, castigado por mais de 100 dias de estiagem.
Enquanto falava, recebeu cinco balaços no peito e deitou às margens do riacho. Sem replicar, os três pistoleiros travestidos de peões viraram as costas e partiram. Tonho não chorou, gritou ou gemeu, só observou o céu mais claro do que nunca e sentiu uma porção de água acariciando suas orelhas e massageando seus cabelos.
Também assistiu o filho de Rufião lutando para empurrar seu corpo para fora da água com a cabeça. O bezerro gemia e fazia um esforço descomunal. De repente, um longo filete de sangue escorreu da boca de Tonho e se misturou à água, seguindo a correnteza como se tivesse vida própria. “Siga o sangue, siga o sangue, siga o sangue…”, repetiu antes de falecer.
O bezerro se jogou no Guararema e partiu com a aguagem, sendo arrastado por quilômetros. Estonteado e enfraquecido, foi lançado sobre um banco de areia, onde deitou choroso. Em poucos minutos, ouviu um mugido para além da mangueira. Era seu pai, Rufião, inquieto, tentando atravessar a cerca. Surpresa e emocionada, Mirela, namorada de Tonho, se aproximou e pediu que dois rapazes carregassem o bezerro. Batizado como Obajara aquele foi o primeiro dia do jovem sobrevivente no clandestino Santuário Parassú, para onde Tonho enviou centenas de animais nos últimos meses.
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Como o vegetarianismo entrou na vida de Franz Kafka
“Agora posso olhar para vocês em paz. Eu não como mais vocês”, disse aos peixes no aquário
Um dos escritores mais influentes do século 20, o tcheco Franz Kafka, famoso por clássicos intrapessoais como A Metamorfose, O Processo e Um Artista da Fome, é um exemplo de ser humano que, contrariando todas as expectativas, se tornou vegetariano ainda na juventude. Seu pai, Hermann Kafka, vinha de uma linhagem de açougueiros que comercializavam carnes kosher. E foi justamente por causa dessa herança cultural que em 1910 ele ficou encolerizado quando soube que o filho não se alimentaria mais de animais.
Um dia, depois de se tornar vegetariano estrito, Kafka passeava em Berlim acompanhado da namorada do seu melhor amigo – Max Brod. Ele observou alguns peixes em um aquário e disse: “Agora posso olhar para vocês em paz. Eu não como mais vocês.” Declarações como essa podem ser encontradas na biografia que Brod escreveu sobre o amigo e publicou em 1937, baseando-se em cartas e diários.
O escritor tcheco comparava os vegetarianos aos primeiros cristãos, destacando que eles também eram perseguidos e insultados na sala de jantar. Apesar dos infortúnios, ele anotou em seu diário em dezembro de 1912 que não poderia estar mais satisfeito com a sua digestão depois de um jantar vegetariano. Tudo indica que Kafka conheceu o vegetarianismo por meio do seu tio e médico Siegfried Löwy.
Inspirado no livro Mein System, do atleta vegetariano dinamarquês Jorge Peder Müller, que ministrou uma palestra em Praga em 1906, ele adotou outros hábitos saudáveis, como a prática de atividades físicas. Também aprendeu a mastigar corretamente, seguindo os ensinamentos do especialista em alimentação saudável Horace Fletcher, conhecido como “O Grande Mastigador”.
De acordo com Jan Stastny, que ministrou a palestra “Franz Kafka – Vegetarian Activist” no Congresso da União Vegetariana Internacional em Dresden, na Alemanha, em 2008, quem também ajudou Kafka na transição foi o alemão Moriz Schnitzer, da União Vegetariana Internacional, que recomendou que ele seguisse uma dieta vegetariana, tomasse ar fresco, dormisse com a janela aberta e trabalhasse com jardinagem nas horas vagas. Kafka seguiu todas as sugestões. Sempre que terminava o seu expediente como advogado, ele atuava como ajudante de jardineiro, e sem cobrar nada em troca.
Apesar de não existir nenhuma prova de que ele era um membro da União Vegetariana Internacional, o escritor aparece na edição de junho de 1911 da revista alemã Reformblatt como um doador de uma campanha antivivissecção. “Seis meses depois, o vegetarianismo, aliado aos exercícios físicos, não apenas curou o meu sistema digestivo como permitiu que eu não tivesse mais vergonha do meu corpo ao frequentar a piscina pública”, escreveu em seu diário.
Na comemoração de ano-novo de 1911, ele jantou schwarzwurzeln, um tipo de raiz comestível conhecida no Brasil como escorcioneira, com espinafre e 250 ml de suco de frutas. Era hábito comum de Kafka falar sobre a sua alimentação cotidiana em cartas enviadas a amigos e familiares. “Estou comendo repolho recheado, sopa de frutas e bebendo suco de oxicoco”, contou à sua irmã Elli em 1911. Sua empolgação aumentava a cada dia. Em 1912, ele revelou em seu diário que gostaria de fundar uma organização de cura pela natureza.
Quando entrava de férias ou precisava se internar para tratamento médico em algum sanatório, Kafka sempre escolhia lugares com opções para vegetarianos estritos. E por isso teve muitos conflitos com a família, principalmente com o pai. O novo estilo de vida incomodava tanto Hermann que por meses ele se negou a olhar para o filho durante o jantar.
Sobre o vegetarianismo, não há dúvidas de que a escolha do jovem Franz foi motivada pelo seu frágil estado de saúde. Mesmo assim, Kafka daria grandes demonstrações de que a sua ética também tinha peso sobre a sua decisão. A maior prova disso é que frequentemente ele escrevia sobre a natureza e o estado de consciência dos animais – cães, chacais, ratos, cavalos, bois e toupeiras, entre outros.
Um exemplo é o conto Ein Bericht für eine Akademie (Um Relatório para a Academia), de 1917, que conta a história de um macaco que aprende a se comportar como um ser humano para fugir do cativeiro. Nesse ínterim, o animal escreve para a academia sobre a sua transformação.
“Quando em Hamburgo fui entregue ao primeiro adestrador, reconheci logo as duas possibilidades que me estavam abertas: jardim zoológico ou teatro de variedades. Não hesitei. Disse a mim mesmo: empregue toda a energia para ir ao teatro de variedades; essa é a saída. O jardim zoológico é apenas uma nova jaula, se você for para ele, estará perdido”, narra em Ein Bericht für eine Akademie.
Entre as mais surpreendentes experiências vividas por Kafka está uma registrada em outubro de 1918, quando ele contraiu a nefasta gripe espanhola, epidemia que dizimou aproximadamente 100 milhões de pessoas no mundo todo. Enquanto jovens saudáveis de sua idade morriam às centenas, Kafka conseguiu se recuperar rapidamente e atribuiu a vitória ao seu estilo de vida vegetariano.
“O açougueiro pensou que podia ao menos se poupar do esforço do abate, e uma manhã trouxe um boi vivo. Isso não deve se repetir. Fiquei uma hora estendido no fundo da oficina com todas as roupas, cobertas e almofadas empilhadas em cima de mim, tudo isso para não ouvir os mugidos do boi que os nômades atacavam de todos os lados para arrancar com os dentes pedaços de sua carne quente. Quando me atrevi a sair, já fazia silêncio há muito tempo. Como bêbados em tomo de um barril de vinho, eles estavam deitados e mortos de cansaço ao redor dos restos do boi”, registrou no conto Ein altes Blatt (Uma Folha Antiga).
Outra característica intrigante de Kafka é que em muitas de suas histórias seus personagens comem carne crua e ensanguentada, talvez um recurso usado pelo autor para avultar a barbárie que envolve o consumo de carne. Idealista, o escritor tcheco confidenciou em um de seus diários o desejo de se mudar para a então Palestina e abrir com sua namorada Dora um restaurante vegetariano em Tel Aviv. “Eu trabalharia como garçom. Gostaria de servir as pessoas”, informou.
Perto do fim da vida, e sofrendo em decorrência de uma tuberculose laríngea que o acompanhava desde 1917, ele foi pressionado a voltar a consumir carne. Desesperado e sentindo-se impotente, fez um acordo com a irmã Ottla, pedindo que ela se tornasse vegetariana para compensar sua iminente falha jamais concretizada. “Um de nós precisa continuar salvando os animais”, argumentou ele. A irmã manteve a promessa por toda a sua vida, até que foi executada em um campo de concentração nazista em 1943.
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Frank Kafka nasceu em Praga em 3 de julho de 1883 e faleceu em 3 de junho de 1924.
Seu pai também possuía uma loja de presentes para homens e mulheres em Praga.
Referências
Brod, Max. Franz Kafka, eine Biographie. Berlin S. Fischer Verlag (1937).
Kafka, Franz. Ein Landarzt – Ein Bericht für eine Akademie/Ein altes Blatt. Stroemfeld Verlag. (1920).
União Vegetariana Internacional. Stastny, Jan. Franz Kafka – Vegetarian Activist (2008).
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William Blake, entre a pobreza e o anonimato
Assumiu um semblante justo, seus olhos brilharam e ele cantou sobre as coisas que viu no céu
No dia 12 de agosto de 1827, o poeta inglês William Blake faleceu aos 69 anos na pobreza e no anonimato. Seu velório em Bunhill Fields, na região norte de Londres, passou despercebido e só pôde ser realizado através de um empréstimo de 19 xelins. Sepultado em um túmulo sem qualquer inscrição, o corpo de Blake foi colocado sobre outros três e seguido por mais quatro falecidos.
Sua esposa, Catherine, revelou a uma amiga que durante o casamento ela não teve tanto a companhia do marido quanto gostaria. “Ele estava sempre em seu próprio paraíso”, declarou. Apesar da saúde fragilizada, Blake parecia não se preocupar tanto com a morte. “É a imaginação que deve viver para sempre”, comentou quando já estava próximo do falecimento.
Nos últimos dias de vida, o poeta gastou os seus últimos xelins comprando um lápis que usou para homenagear a esposa. “Fique, Kate! Mantenha-se exatamente como você é. Por você ter sido um anjo para mim, vou desenhar o seu retrato”, declarou. Pouco antes de morrer, William Blake assumiu um semblante justo, seus olhos brilharam e ele cantou sobre as coisas que viu no céu”, escreveu um amigo.
O inglês que amargou décadas de pobreza se via mais como escultor e pintor do que poeta. Ele esperava que em uma exposição realizada em 1808 o seu trabalho pudesse trazer-lhe tanto retorno financeiro quanto reconhecimento por seu estilo original, baseado em temas a frente do seu tempo.
Na exposição que recebeu o nome de “Afrescos de Invenções Poéticas e Históricas”, Blake reuniu 16 de suas pinturas. “Aos que foram informados de que o meu trabalho se resume a obras não científicas, excêntricas ou nada mais que rabiscos de um louco, façam-me justiça e examinem tudo antes de tomar uma decisão”, pediu. Naquele dia poucas pessoas prestigiaram o evento.
Ainda assim ele não hesitou em dizer que não desistiria do seu sonho de ser reconhecido. “Ignorantes insultos não me farão desistir do meu dever para com a minha arte”, informou. Infelizmente ninguém comprou nenhuma de suas obras e a única resenha publicada sobre a exposição definiu William Blake como um lunático que só não corria risco de ser preso porque era inofensivo demais.
A recepção da poesia do inglês também seguiu na mesma esteira de suas pinturas e esculturas. Poucos viram ou leram pelo menos um de seus livros escritos e ilustrados à mão. Em 1811, dois anos antes de se consagrar como o poeta laureado, o britânico Robert Southey, leu “Jerusalem”, uma das obras mais famosas de William Blake. “É um poema perfeitamente louco”, sintetizou Southey.
Catherine continuou a imprimir e divulgar as obras do marido depois que ele morreu, o que deixou claro que a parceria dos dois envolvia tanto amor quanto trabalho. Com a ajuda de poucos amigos e fãs de William Blake, ela conseguiu sobreviver por mais quatro anos. Nesse período afirmou ter visto o marido muitas vezes, chegando a sentar-se junto dele por duas a três horas diárias.
No dia 31 de outubro de 1831, Catherine chamou por Blake como se ele estivesse no quarto ao lado. “Meu William…meu William…”, repetiu ela até o momento de sua morte. Com o falecimento de Catherine, os direitos sobre as obras de Blake foram transferidos para Frederick Tatham, um artista inglês de pequena expressão que fazia parte de um grupo de seguidores do poeta, conhecido como Shoreham Ancients.
Segundo o livro The Stranger From Paradise, publicado em 2001, e de autoria do biógrafo G.E. Bentley Jr, Tatham vendeu a própria herança ao longo de 30 anos e por bom preço. Depois que se tornou um religioso fanático, destruiu muitas gravuras e poemas de Blake. Chegou a declarar que se livrou delas porque acreditava que o artista tivesse sido inspirado pelo diabo quando as concebeu.
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Entre as obras mais importantes do poeta inglês se destacam “The Marriage of Heaven and Hell”, “Jerusalem”, “And did those feet in ancient time”, “Songs of Innocence and of Experience”, “Milton” e “The Four Zoas”.
William Blake nasceu em 28 de novembro de 1757 e faleceu em 12 de agosto de 1827.
Catherine Blake nasceu em 25 de abril de 1762 e faleceu em 31 de outubro de 1831.
Referências
http://www.todayinliterature.com/
G.E. Bentley (2001). The Stranger From Paradise: A Biography of William Blake. Yale University Press.
Blake, William and Tatham, Frederick. The Letters of William Blake: Together with a Life. 1906.
Gilchrist, A. The Life of William Blake, London, 1863, 405.
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Saboteur e o antinazismo de Hitchcock
Um filme-propaganda lançado pelo mestre do suspense em 1942
O thriller Saboteur (Sabotador) é um filme do mestre do suspense Alfred Hitchcock. Ele soube muito bem aproveitar a Segunda Guerra Mundial para criar uma obra que ressalta a antipatia aos nazistas e a exaltação aos norte-americanos. Lançada em 1942, a película é a reação do cineasta inglês de 42 anos que, como não podia ir para o campo de batalha por diversos fatores, decidiu usar o cinema como ferramenta de combate.
A obra conta a história do operário Barry Kane (Robert Cummings) que testemunha o bombardeamento da fábrica de aviões onde trabalha. Na explosão, o melhor amigo do protagonista morre e Barry é injustamente acusado pelo crime. Na tentativa de provar a inocência, Kane inicia uma busca pelo verdadeiro criminoso. Durante a jornada, conhece a bela e desconfiada Pat (Priscilla Lane) que ameaça denunciá-lo, mas depois muda de ideia.
O filme tem um forte caráter de propaganda, além de uma abordagem, por vezes, maniqueísta. Como é ambientado nos Estados Unidos de 1942 aproveita por explorar a rejeição aos nazistas e exalta tendenciosamente as qualidades dos norte-americanos. Há uma supervalorização ficcional que se alinha ao idealismo e se distancia do realismo. Um grande exemplo é a exagerada solidariedade recebida por Barry enquanto viaja pelo país.
Em Nova York, a cena mais eletrizante acontece no topo da Estátua da Liberdade, quando o operário confronta o sabotador. É sempre destacável a maneira como o cineasta manipula luzes e sombras para despertar dúvida, apreensão e expectativa, além de outras emoções e pensamentos.
Com preciosismo e rigor técnico, Alfred Hitchcock conseguiu transmitir o ideal estadunidense da época; o triunfo hollywoodiano como prelúdio do fim da guerra. Embora não menos importante, a obra é uma das produções mais subestimadas do cineasta, até pelo caráter propagandístico que tornou o filme muito popular nos Estados Unidos e Inglaterra, mas nem tanto em outros países.
Uma metamorfose social
Lord of the Flies mostra como a necessidade de sobrevivência transforma as pessoas
Lançado em 1990, Lord of the Flies, inspirado no livro homônimo de William Golding – vencedor do Prêmio Nobel de Literatura, é um filme do cineasta inglês Harry Cook que chegou ao Brasil com o título O Senhor das Moscas e mostra como a necessidade de sobrevivência transforma os seres humanos. Na obra, um grupo de crianças resiste a uma queda de avião no oceano e encontra abrigo em uma ilha.
Logo nos primeiros dias, Ralph (Balthalzar Getty), o mais maduro dos garotos, demonstra aptidão para a liderança, deixando claro, apesar da pouca idade, que o melhor meio de sobreviver e manter o equilíbrio é seguindo um programa diário de direitos e deveres. Para Ralph, todos na ilha desempenham papel importante e insubstituível, o que remete à democracia.
Contudo, Jack (Chris Furrh) antagoniza o idealismo de Ralph. Assim como muitos líderes se aproveitaram de um momento de fraqueza de suas nações para instituir um sistema ditatorial, Jack faz o mesmo na ilha. Com a proposta de oferecer caçadas e brincadeiras aos comparsas, o garoto consegue persuadir quase todos os seguidores de Ralph, com exceção de Simon (James Badge Dale) e Piggy (Danuel Pipoly).
O primeiro é uma criança com uma essência mística que se destaca dos demais pela sensibilidade aguçada. O segundo representa a ciência, o juízo e a razão. Mas ninguém personifica melhor a metamorfose social do homem do que Jack. O garoto aparentemente amistoso se torna agressivo após formar um grande grupo de dissidentes. Embriagado pelo poder, se recusa a refletir sobre as propostas dos companheiros. O novo líder mergulha os passivos discípulos em uma realidade truculenta, chegando a perder a capacidade de ver a si e aos outros como crianças e adolescentes.
Jack cede espaço ao ódio indiscriminado e se isenta de culpa por todos os atos de injustiça, crente de que sacrifícios são válidos por um “bem maior”. O cineasta Harry Cook explora a transformação do personagem através de fortes expressões faciais, maquiagem pesada e vestimentas que se definham. Tudo se soma na construção simbólica da decadência do homem como ser social, marcado pelo retorno ao estado primitivo.
Curiosidade
O primeiro filme baseado na novela de William Golding, de 1954, foi lançado em 1963 pelo cineasta britânico Peter Brook.
Quando heróis são confundidos com vilões
O Preço da Paz aborda a controversa Revolução Federalista
Lançado em 2003, O Preço da Paz é um filme brasileiro do cineasta Paulo Morelli que tem o Paraná como cenário e aborda a controversa Revolução Federalista, em que heróis são confundidos com vilões e vice-versa.
Falar da Revolução Federalista é como falar do Sul do Brasil, do Paraná, um importante episódio da história mantido por muito tempo no obscurantismo. É justo dizer que O Preço da Paz tem um caráter revisionista e explora principalmente as características pessoais dos idealistas que se alinhavam a Maragatos e Pica-Paus. Na obra, Morelli expõe as contradições de vários personagens da revolução. Mostra que um herói pode se tornar vilão e vice-versa, dependendo do contexto.
O cineasta não transforma a obra em um instrumento de convencimento, mas sim de questionamento. O filme também não tem a intenção de ser melodramático ou transmitir uma visão romântica sobre os Maragatos. Na obra, o que mais chama atenção é a figura de Ildefonso Pereira Correia (Herson Capri), o famoso Barão de Serro Azul, homem-símbolo que representa um ponto de ruptura entre o idealismo e o realismo.
Com uma consciência pré-paranista, Ildefonso Correia é um dos poucos na história que se recusa a tomar partido de Maragatos e Pica-Paus. Em contraponto ao idealismo do barão está a pragmática e cética Maria José Correia (Giulia Gam), a Baronesa de Serro Azul, um ponto de equilíbrio e extensão da consciência de Ildefonso.
O filme traz no elenco outros famosos como Lima Duarte, José de Abreu, Camila Pitanga, Danton Mello e Alexandre Nero. Em 2003, o filme que foi produzido no Paraná ganhou os prêmios de melhor montagem, melhor direção de arte e prêmio do júri popular no Festival de Gramado. Paulo Morelli é autor dos longas-metragens Viva Voz e Cidade dos Homens, de 2004 e 2007.