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Idoso da Vila Alta precisa de ajuda para reformar a própria casa
O aposentado José Rodrigues, mais conhecido como Seu Zé, é morador da Vila Alta, em Paranavaí, e está passando por uma situação muito difícil. Com vários problemas de saúde e recebendo menos de um salário mínimo por mês, o idoso de 71 anos vive em uma casa que precisa de reforma urgente. Além de um telhado visivelmente comprometido, as vigas precisam ser substituídas. O banheiro, que há muito tempo foi construído de forma improvisada, já não pode ser utilizado devido a uma série de problemas.
As rachaduras nas paredes da casa também chamam a atenção, assim como os graves problemas de infiltração. Por isso, Seu Zé está fazendo um apelo para que as pessoas o ajudem na aquisição de materiais para a reforma da sua residência. José Rodrigues já tem garantida uma contribuição para ajudar na compra das telhas, mas ainda precisa de recursos principalmente para a aquisição de 20 metros de piso, cinco sacos de argamassa, quatro quilos de rejunte, um metro de areia, dois sacos de cimento, três sacos de cal, um conjunto de peças para o banheiro – vaso sanitário e lavatório e encanamento. Um pedreiro foi até a casa do idoso, avaliou tudo e cobrou R$ 2 mil pelo serviço.
Seu Zé também tem dificuldades para caminhar e a visão parcialmente comprometida. Outro problema é que como não há rede de esgoto, na entrada da casa há uma fossa aberta há quatro anos que já está cedendo. No geral, o idoso não tem uma boa perspectiva do futuro, mas gostaria que a sua realidade não fosse tão amarga. José Rodrigues não tem telefone fixo nem móvel, mas pode ser localizado na Rua E, a última rua da Vila Alta, onde não há asfalto, em uma residência sem número – sentido à Farinheira Cassava.
Saiba Mais
Você pode obter mais informações sobre a situação do Seu Zé indo até a casa dele ou ligando para (44) 99909-2513 (David) ou (44) 3062-1961 (Tio Lu).
Posso te fazer uma sugestão?
Posso te fazer uma sugestão? É a mesma que faço quando me convidam para dar palestras para crianças e adolescentes nas escolas. O que você sabe sobre seu pai? Sua mãe? Seu avô? Sua avó? Seu bisavô? Sua bisavó? Você tem alguma história da infância deles que pode me relatar neste momento? Você sabe como sua mãe era na adolescência?
Não estou falando de foto, mas de personalidade. E seu pai?
Você sabe de algum episódio marcante que ele viveu, por exemplo, na fase mais tenra da infância? Está estranhando minhas perguntas? Então, é que nossos familiares morrem e nós nem sabemos quem eles eram. Que tal descobrir quem eles eram? Para além do nosso parentesco. Afinal, todo ser humano, é mais do que irmão, pai, mãe, vô, vó…
Quando nasci, meu avô já era o vovô, e minha avó também já era a vovó. Sim, pra mim já tinham feições de velhinhos, era como tivessem nascido velhinhos. Não tinha como eu saber como eles eram antes de eu nascer, então eu pedia que eles me contassem histórias. Desde a minha infância, meu avô fazia isso por iniciativa própria, porque ele já nasceu um contador de histórias.
Ainda assim, nos últimos anos de vida dele, comecei a registrar as nossas conversas em um gravador; dezenas de horas. E mais tarde, mesmo sem saber quando ele morreria, coincidiu de eu produzir um pequeno documentário sobre a sua vida, registrando seu cotidiano, intercalado com histórias de sua infância, da mocidade, da família, do envelhecimento, e do que a vida representava para alguém perto dos 90 anos.
Admito que não tenho o costume de ir a velórios, não fui nem mesmo no velório do meu pai. Se me chamar para algum, provavelmente recusarei, mas por um motivo que nem eu mesmo sei explicar, compareci ao do meu avô. Ele estava deitado, com semblante sereno, a pele álgida e arroxeada, e eu me recordando de suas histórias. Eu sabia que ele não estava mais ali, mas quando o caixão foi lacrado, imaginei centenas de livros se fechando, livros que nunca mais serão lidos ou abertos.
A vida de Seu Zé
Publiquei hoje no YouTube um curta-metragem bem simples intitulado “Seu Zé”. Gravado com o celular, conta a história do idoso José Rodrigues que divide uma casa em situação extremamente precária com a esposa na Vila Alta, na periferia de Paranavaí. Morador da Rua E, a última rua do bairro, Seu Zé tem alguns problemas de saúde, como a visão comprometida e a dificuldade para andar, consequência de um acidente que sofreu há alguns anos. Ainda assim, se esforça para tentar levar uma vida mais digna.
“Seu Zé” mostra a difícil realidade do casal, que é obrigado a se alimentar muito mal em decorrência da falta de recursos, já que a única renda deles são os R$ 630 recebidos por Seu Zé. Na residência de três cômodos, há furos por todo o telhado, tornando a casa um alvo fácil em dia de chuva. Quem assiste ao vídeo de um minuto e meio logo percebe que todo o cenário destaca a difícil e degradante situação do ex-boia-fria.
Como não há rede de esgoto, na entrada da casa há uma fossa aberta há quatro anos que já está cedendo. No geral, o idoso não tem uma boa perspectiva do futuro, mas gostaria que a sua realidade presente não fosse tão amarga. É um pequeno vídeo bem cru, inclusive não interferi no ambiente. Mostra a vida de Seu Zé em seu estado natural, sem qualquer artificialismo. Ele é o narrador da sua própria história.
A barba e o menino Yusuf
“Nunca imaginei que um dia o veria falando português. Surpreendente, filho!”
Quando eu era bem mais jovem, jamais tinha cogitado deixar a barba crescer. A verdade é que nem mesmo sabia se havia uma barba a se desenvolver. No entanto, desde muito cedo fiquei intrigado com a quantidade de pensadores e escritores barbudos até o início do século 20.
Dentre os brasileiros, minhas primeiras lembranças da época do colégio envolvem autores como Machado de Assis, José de Alencar e Gregório de Matos. Não sei se o fato de cultivarem barba era uma preferência com motivação estética ou se tinha relação com o zeitgeist. Ademais, reconheço também que antigamente era costume manter os pelos faciais para velar imperfeições e cicatrizes provocadas por doenças como a varíola.
Pensando internacionalmente, Platão, Chaucer, Melville, Victor Hugo, Ibsen, Tolstói, Dostoiévski, Whitman, Bram Stoker, Hemingway, D.H. Lawrence, Bernard Shaw e Ginsberg são alguns barbudos que me veem a mente no momento. E analisando períodos, é justo dizer que desde os primórdios da filosofia e da literatura, a barba se fez presente, e aqui não falo como forma de distinção social, e sim como um recurso de construção pessoal. Porém, hoje, diferente de outros tempos, barbas volumosas e longas são quase sempre associadas a hipsters, terroristas e fanáticos religiosos. E claro, partidos políticos.
Pensando nisso, me lembrei de uma singular experiência após me tornar barbudo. Um dia, saí de manhã, por volta das 8h, e fui até a casa de um senhor chamado Francisco que chegou a Paranavaí em 1944. Ele concordou em me conceder uma entrevista sobre os tempos de colonização do Noroeste do Paraná. Em frente à sua casa, toquei a campainha e observei um cãozinho rolando dentro de uma casinha de madeira.
Não demorou e alguém gritou da distante varanda: “Entre, meu filho. Venha até mim.” Abri o portão, subi alguns degraus e atravessei o jardim. Lá estava ele, alto e magro, sentado numa confortável cadeira acastanhada de madeira com estofado bege. Sob seus pés, havia uma porção de areia lavada dentro de uma caixinha. “Legal esse senhor!”, pensei depois que nos cumprimentamos com um firme aperto de mão. De repente, ele olhou nos meus olhos com atenção e comentou: “Aposto que você entende mais disso do que eu.” Não captei a mensagem e notei seus pés afundando lentamente na areia.
“Areia é vida, não é mesmo? Quantos tons de areia você consegue reconhecer?”, questionou. Fiquei confuso e ri, suspeitando que o homem estivesse alcoolizado ou sob efeito de forte medicação. Ainda assim, respondi: “Depende da incidência do sol, dos fatores de ação e reação. Hum…pensando bem, acho que consigo identificar 25 a 30.”
— Esplêndido! Eu já imaginava algo assim. Desconfiei logo que vi – declarou.
E a conversa tomou um rumo completamente diferente, me deixando por vezes hesitante. Pouco falamos sobre a sua vida porque a maior parte das perguntas era feita por ele. “Nunca imaginei que um dia o veria falando português. Surpreendente, filho!”, assinalou nos primeiros dez minutos com um sorriso dúbio.
Ele divagava bastante, e ocasionalmente pedia para ver a palma da minha mão. “Você pode não ver, só que os traços da sua mão dizem muito sobre a sua barba. E tolo daquele que resume a barba a pelos sobre a face. Ela diz muito a respeito dos caminhos da vida do homem. Ela, na sua sinuosidade, é como uma extensão física da própria mente. Sei disso porque cultivo barba há quase 60 anos”, defendeu, tocando a barba branca e já rala que cobria o queixo. Então lamentou que aos 86 anos não tivesse mais a barba de 20 anos antes.
Também notei seus olhos úmidos quando ele se curvou e deslizou o dedo indicador dentro da caixinha de areia. Algumas lágrimas pingaram dolorosas, como se saídas de um conta-gotas. Vendo aquilo, me desculpei e sugeri que talvez fosse melhor marcarmos a entrevista para outro dia. Trêmulo, Francisco se levantou e pediu para me dar um abraço.
— Claro, Seu Francisco – respondi.
Quando suas mãos enrugadas e translúcidas me envolveram, ouvi seus refreados soluços e seu coração palpitando. “Agora eu até poderia fazer a barba”, sussurrou, fragilizado. Logo ele esmaeceu. Gritei e sua esposa apareceu. Pediu que eu o colocasse na cama. Desmaiado, preservava expressão serena e sorriso delgado. Em respeito, não pedi explicações, me despedi e caminhei até a varanda, onde encontrei ao lado da cadeira uma foto de uma criança de sete ou oito anos sentada sobre os ombros de Francisco ainda jovem.
Na semana seguinte, fiquei sabendo que o garotinho sorridente da foto era um órfão egípcio que seria adotado por Francisco, um ex-soldado do Batalhão de Suez. Em 1957, o menino chamado Yusuf morreu em seus braços, depois de ser alvejado na cabeça por um soldado israelita em missão em Porto Said. “Nunca mais vou fazer a barba na minha vida, nunca mais! Juro por tudo neste mundo, a não ser que Yusuf retorne à vida”, teria gritado Francisco aos prantos naquele dia.
O fim que não precisa parecer tão fim
Todos os dias observo um senhor alto, com mais de 70 anos, próximo à minha casa caminhando com um olhar melancólico e a cabeça desconfortavelmente afundada entre ombros largos e frágeis. Seu corpo é tão teimoso quanto uma criança travessa. Sei disso porque sempre o percebo titubeante ao se deparar com um meio-fio.
A ele parece um exercício doloroso o ato de se locomover. Sinto que se exaspera um pouco quando atravessa a rua em horário de grande movimento de veículos. Sei que ele não teria destreza para fugir caso um automóvel ameaçasse sua integridade física. E sempre me questiono:
“Ele um dia foi jovem, como terá sido sua juventude?” Não tenho como afirmar, mas suponho que não era um grande adepto de atividades físicas. Se o foi, desistiu muito cedo. Talvez não se preocupasse com a alimentação – o que não posso afirmar.
“Será que tinha vícios?” Também não sei, restando-me inferências, embora aquele senhor seja de uma época em que o consumo de álcool e tabaco simbolizava galhardia. Ademais, suponho que em algum momento da vida gozou de prazeres simples como subir em árvores e correr pelas ruas enquanto o vento lhe acariciava a face.
Penso que o fim da vida não precise parecer tão fim se não o desejarmos, se nos empenharmos para que a mente não se torne alheia ao corpo.
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A maldade também envelhece
Um dos passatempos de Adamantino era pesar as porções de comida servidas aos empregados
Andando pelas ruas, sempre fiquei intrigado ao notar como as pessoas se sensibilizam quando veem algum velhinho arciforme ou maltrapilho caminhando sozinho. Mesmo sem interagir com o personagem, dizem à distância segura: “Coitadinho do velhinho… Cadê a família desse senhor? Meu Deus! Como podem deixá-lo nessa situação?” Claro, uma reação natural e previsível, até porque temos tendência a sentir comiseração pelos desamparados.
Curioso, um dia decidi me aprofundar na história de um idoso que vaga pelo centro da cidade e pelos bairros centrais recolhendo materiais recicláveis. Para preservar sua identidade, vou chamá-lo de Adamantino, não por acaso, mas sim por uma questão criteriosa de significação. Adamantino tem o perfil ideal para despertar inclusive a maviosidade dos mais empedernidos.
O protagonista da minha história tem baixa estatura, mais de 80 anos, cabelos brancos como algodão descaroçado, olhos graves e pele pintalgada pela frequente exposição ao sol. Também é corcovado – suas costas se elevam quase à altura do topo da cabeça. Ao longe, criam a ilusão de que ele transporta algo sobre a própria cordilheira.
Meu primeiro contato com Adamantino foi por acaso, quase em frente de casa. Ele estava revirando o lixo do vizinho e me aproximei com dois sacos cheios de latinhas. “O senhor quer essas latinhas?”, perguntei, observando suas costas disformes viradas para mim. Eram tão alterosas que só não encafurnavam sua nuca e suas orelhas por causa da sua baixa estatura. Me compadeci de vê-lo naquela difícil situação. Imaginei que talvez minha atitude lhe poupasse um pouco de tempo e quilômetros de infecundas pernadas.
Mesmo após ouvir minha voz, o idoso não mudou de posição. Manteve as mãos trigueiras, finas, calejadas, enrugadas e afoitas mergulhadas num lixo onde ele disputava espaço com tresloucadas moscas-varejeiras. O aroma pestilento em nada o incomodava. Talvez estivesse tão acostumado com a podridão que seu olfato fosse capaz de extrair perfume de chorume.
Enquanto eu segurava os sacos, ele olhou para mim rapidamente e disse: “Tá! Passa pra cá! O que mais você tem lá na sua casa?”, interpelou, agarrando os sacos com tanta firmeza que chegou a espremer com violência as latinhas. Respondi que iria ver. Sem dizer mais nada, mirou o outro lado da rua, ajeitou as latinhas dentro de um velho carrinho amadeirado e arrastou os chinelos até a próxima casa. Retornei em menos de três minutos para lhe entregar uma caixa com garrafas pet e questionei se ele também aceitava papelão.
“Quero papelão não! Isso aí não vale nada!”, respondeu com o cenho franzido – um olhar naturalmente agreste combinando com a boca árida que me lembrou chão sequioso em tempo de estiagem. O crispado das mãos e dos braços mirrados formavam caminhos que não se encontravam, traços que se perdiam na inexatidão, na sinuosidade descalabrada da sua própria vida, imaginei, incerto de coisa alguma.
Me despedi e, sem que ele dissesse nada, continuei o espiando de casa. Apesar de tudo, ainda me parecia uma figura miúda e triste. Fiquei pensando em como seus olhos castanhos e opacos eram enigmáticos. Em profundidade, eram como reféns da vacuidade. E logo percebi que ele não gostava que lhe olhassem diretamente nos olhos – desviava e se apoiava no carrinho com tanta força que as unhas riscavam o madeirite.
A barba por fazer, a roupa esfarrapada, saburrenta e encardida, os cabelos desgrenhados, o andar remansoso e a ausência de dois botões da camisa, que revelavam um peito ossudo e abissalmente avermelhado – coberto por micoses, são predicados que fizeram de Adamantino um querido desconhecido. “Oi! O senhor precisa de ajuda?”, perguntou uma moça encostando o carro ao lado do idoso. Ele levantou os olhos bruscamente e respondeu algo que não consegui entender. Ela fez um comentário e partiu. A cena se repetiu mais duas vezes com outros personagens.
Depois daquele dia, não resisti em investigar a vida de Adamantino antes de se tornar aquele velhinho por quem tantos se compadeciam. Descobri que ele viveu em Paranavaí nos tempos da colonização. Então se mudou e retornou somente quando virou um andrajoso. Chegou ao Noroeste do Paraná em 1950. Era jovem e cheio de sonhos, e o mais importante deles envolvia maquinação.
Com falsa escritura, envelhecida com excremento de grilo, se apropriou de um sítio a 20 quilômetros da área urbana. Em menos de cinco anos, comprou três fazendas. Conseguiu ampliar rapidamente o patrimônio. Fez amizade com cafeicultores e contratou um “quebra-milho” para assaltá-los, deixando os produtores à própria sorte, correndo risco de falência. Se postulando como amigo e salvador, aparecia nos momentos mais críticos emprestando dinheiro a juros baixos para que os beneficiados não precisassem abandonar a produção de café.
Assim que a soma era investida maciçamente no plantio, ele aguardava a maturação dos cafeeiros. Antes do início da colheita, pagava para que os “quebra-milho” invadissem os cafezais de madrugada esparramando estrategicamente centenas de brocas-do-café pelas plantações. Em pouco tempo, a praga dizimava os cafezais. Com o prejuízo, as vítimas não conseguiam honrar os empréstimos e eram obrigadas a liquidar a dívida repassando as propriedades a Adamantino.
Tirânico, um dia ele expulsou a filha de casa porque descobriu que ela namorava às escondidas o filho de um colono nordestino. “Que diabos um desgraçado desse pode trazer de benefício pra nossa família? Que suma daqui ela e esse crápula sem eira nem beira!”, justificou depois de arrastar a jovem pelos cabelos, a lançando contra um espigão de coroa-de-cristo que ornamentava as rebarbas do descampado em frente ao casarão. A moça nunca mais voltou para casa, nem o pai autorizou a esposa ou um dos outros três filhos a procurá-la. Mais tarde, soube que a jovem passava por dificuldades financeiras, mas deixou claro que quem tentasse ajudá-la teria o mesmo destino.
Um dos passatempos de Adamantino era pesar as porções de comida servidas aos empregados. “Não quero perdição. Antes comer pouco e render no serviço do que inchar o bucho e ficar de ‘gracice’ por aí, ‘amendoando as orelhas’ [dormindo escondido]. A fome motiva o infeliz a trabalhar mais pra poder comer outra vez”, justificava. Embora gozasse de grande fortuna, às vezes, quando precisava que alguém resolvesse algum problema na cidade, obrigava um dos filhos a percorrer o trajeto a pé para não gastar dinheiro com combustível, alegando que não seria difícil arrumar carona para voltar para casa, dividindo o espaço da carroceria com porcos e galinhas enviados para o abate.
Cobiçoso e insatisfeito, Adamantino preparou um plano para se apropriar da fazenda do amigo que o trouxe a Paranavaí. Chovia muito no dia em que mandou um empregado bater na porta da casa de Rui. O som do aguaceiro era tão intenso que era impossível ouvir quem chegava e quem saía da fazenda. Reconhecendo o visitante, o homem permitiu que ele entrasse. Quando Rui se posicionou para guardar a pardacenta capa de chuva, Matraca tirou uma pistola da algibeira e atirou contra o anfitrião.
Os dois balaços nas costas, à queima-roupa, deixaram o homem agonizando no chão, com olhos perdidos, sem entender a motivação do crime. Ladeado por uma poça de sangue, e ciente de que a morte logo lhe surrupiaria a vida, Rui se esforçou para agarrar a perna do criminoso com a mão direita e balbuciar com muita dificuldade: “Sei que foi Adamantino que te mandou. Diga a ele que, ao contrário da minha, a vida dele vai ser longa, tão longa que ele vai desejar ter morrido primeiro.”
Em menos de minuto, dois rapazes desceram pelas escadas e não tiveram tempo de reagir. Dois tiros depois, rolaram, caindo mortos aos pés do quebra-milho. A sangue frio, chutou as vítimas para ver se reagiam e partiu satisfeito com o desfecho da empreitada. Pelo trabalho, Matraca ganhou a escritura de uma fazenda no Mato Grosso, para onde fugiu na mesma noite. Antes passou na delegacia assumindo a autoria do crime. Após a confissão, o liberaram. Matraca nunca mais foi visto.
Na madrugada do crime, Adamantino foi até a fazenda de Rui com a polícia. Havia um nevoeiro tão denso que pouco se via no horizonte, onde os cafeeiros pareciam imersos num vazio sempiterno. No interior da casa, o homem conteve o sorriso quando viu Rui caído e sem vida. A alegria se transformou em tristeza ao se deparar com um dos jovens aos pés da escada. Lá estava Nestorzinho, ferido mortalmente com um tiro no peito. Matraca, que não conhecia o filho mais novo de Adamantino, matou o rapaz por engano, crente de que era filho de Rui.
Quando a família do grileiro descobriu a verdade sobre o crime, não fizeram alarde nem ameaçaram denunciá-lo. Simplesmente o abandonaram, deixando para trás toda a riqueza e os privilégios conquistados em um período de dez anos. Em 15 dias, a casa enorme da fazenda já não abrigava mais ninguém, a não ser Adamantino e seu próprio dinheiro, estocado até dentro de buracos no quintal. Alguns empregados também se afastaram do homem, com receio de que ele atraísse algum tipo de danação eterna.
Sem saber o que fazer com o capital, Adamantino redescobriu o seu propósito quando uma sequência de geadas o levou à falência. O que restou de sua fortuna, gastou procurando a família em vão. Há quem acredite que sua família partiu para Portugal, onde viviam os pais da ex-esposa. A última vez que vi Adamantino em Paranavaí foi no ano passado. Ele saía de uma casa abandonada, acompanhado de um adolescente que arrastava longos e lustrosos fios de cobre.
Entre o portão e a calçada, o velho tirou um bolo de dinheiro do bolso sujo da calça surrada, separou duas notas e entregou ao garoto que partiu abespinhado, como se não tivesse recebido o combinado. Adamantino sorriu; foi a primeira e única vez que o vi mostrar os dentes. Enfiou muitos metros de fio de cobre dentro de um saco escuro, armazenou tudo no carrinho e o empurrou por uma curva tranquila, ladeado por uma calçada de mosaico português. Mais adiante, os paus-d’arco lançavam flores em seu caminho. E logo uma senhora parou o carro ao seu lado e perguntou: “Parece que o dia está muito difícil pro senhor. Precisa de alguma coisa?”
Seguindo em direção oposta, lembrei da minha passagem preferida de Eugenia Grandet, de Balzac: “Quando o cura da paróquia veio ministrar-lhe a extrema-unção, seus olhos, mortos na aparência desde algumas horas, reanimaram-se à vista da cruz, dos candelabros, do repositório de água benta, de prata, os quais ele mirou fixamente, mexendo pela última vez a narina. Quando o padre aproximou-lhe dos lábios o crucifixo de prata dourada para fazê-lo beijar a imagem de Cristo, Grandet fez um gesto medonho para agarrá-lo, e esse último esforço custou-lhe a vida.”
Curiosidades
Quebra-milho significa pistoleiro, jagunço, capanga.
O personagem que me inspirou foi embora de Paranavaí anos antes de eu pensar em escrever a história “A maldade também envelhece”.