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Uma metamorfose social
Lord of the Flies mostra como a necessidade de sobrevivência transforma as pessoas
Lançado em 1990, Lord of the Flies, inspirado no livro homônimo de William Golding – vencedor do Prêmio Nobel de Literatura, é um filme do cineasta inglês Harry Cook que chegou ao Brasil com o título O Senhor das Moscas e mostra como a necessidade de sobrevivência transforma os seres humanos. Na obra, um grupo de crianças resiste a uma queda de avião no oceano e encontra abrigo em uma ilha.
Logo nos primeiros dias, Ralph (Balthalzar Getty), o mais maduro dos garotos, demonstra aptidão para a liderança, deixando claro, apesar da pouca idade, que o melhor meio de sobreviver e manter o equilíbrio é seguindo um programa diário de direitos e deveres. Para Ralph, todos na ilha desempenham papel importante e insubstituível, o que remete à democracia.
Contudo, Jack (Chris Furrh) antagoniza o idealismo de Ralph. Assim como muitos líderes se aproveitaram de um momento de fraqueza de suas nações para instituir um sistema ditatorial, Jack faz o mesmo na ilha. Com a proposta de oferecer caçadas e brincadeiras aos comparsas, o garoto consegue persuadir quase todos os seguidores de Ralph, com exceção de Simon (James Badge Dale) e Piggy (Danuel Pipoly).
O primeiro é uma criança com uma essência mística que se destaca dos demais pela sensibilidade aguçada. O segundo representa a ciência, o juízo e a razão. Mas ninguém personifica melhor a metamorfose social do homem do que Jack. O garoto aparentemente amistoso se torna agressivo após formar um grande grupo de dissidentes. Embriagado pelo poder, se recusa a refletir sobre as propostas dos companheiros. O novo líder mergulha os passivos discípulos em uma realidade truculenta, chegando a perder a capacidade de ver a si e aos outros como crianças e adolescentes.
Jack cede espaço ao ódio indiscriminado e se isenta de culpa por todos os atos de injustiça, crente de que sacrifícios são válidos por um “bem maior”. O cineasta Harry Cook explora a transformação do personagem através de fortes expressões faciais, maquiagem pesada e vestimentas que se definham. Tudo se soma na construção simbólica da decadência do homem como ser social, marcado pelo retorno ao estado primitivo.
Curiosidade
O primeiro filme baseado na novela de William Golding, de 1954, foi lançado em 1963 pelo cineasta britânico Peter Brook.
Nostalgia de uma ex-ribeirinha
Ex-ribeirinha se emociona ao relembrar época em que vivia distante da realidade urbana
A dona de casa Luciene Franco, 35, e mais dez irmãos foram criados em uma comunidade ribeirinha na Ilha Portal do Trigo, na divisa do Paraná com o Mato Grosso do Sul, onde garantiam a subsistência por meio da pesca e do cultivo de pequenas culturas. Sem contato frequente com o mundo moderno, conheceram a realidade urbana somente ao atingir a maioridade. Foram obrigados a se mudar para a área urbana de Querência do Norte em função de rigorosas leis ambientais e também grande oscilação do volume de água do Rio Paraná.
Quando nasceu, o primeiro contato de Luciene com o mundo não aconteceu em um hospital, muito menos diante da presença de um obstetra. Foi sob a supervisão da natureza e os olhares atentos de uma capivara doméstica. “Nasci ali no berço da natureza com a assistência de uma parteira. Quando minha mãe deu à luz, estava deitada em uma cama de bambu forrada com folhas de bananeira. Havia vários animais próximos dali”, relata a dona de casa, apontando o dedo para a Ilha Portal do Trigo.
Na infância, Luciene e os irmãos aprenderam a conviver pacificamente com animais que a maioria só vê em revistas, TV ou jaulas de zoológico. “A gente tinha acesso a muitos bichos. Todo dia encontrava sucuri, capivara, jacaré, veado campeiro, anta e onça”, destaca. O contato diário contribuía para que os ribeirinhos tivessem uma boa relação familiar ou pelo menos de respeito e tolerância com os membros da fauna local.
De uma capivara e um tatu de estimação, Luciene guarda lembranças inesquecíveis. São até incompreensíveis para quem sempre viveu em um “paraíso de concreto”, como a dona de casa denomina o universo urbano. “Os dois sempre entravam em casa, mas quando a gente mandava sair, eles obedeciam. Era como um gato ou cachorro”, compara.
Porém, nem todos os animais despertavam alegria quando eram vistos cruzando a entrada da casa construída com recursos encontrados na própria ilha. “A gente não se acostumava com as onças. Mesmo assim, não fazíamos nenhum mal pra elas”, assegura a dona de casa.
Quando levava os filhos pequenos para pescar ou preparar a terra para o cultivo de arroz e feijão, o pai de Luciene sempre os mantinha por perto, já que tinham pouca ou nenhuma experiência com os perigos da natureza. “Era mais por cautela. Só que depois de um tempo, todo mundo ficava esperto e ia até pescar à noite, mesmo quando, não muito longe dali, tinha alguma onça bebendo água na beira do rio”, conta.
Há 17 anos, pelo menos 30 famílias ainda viviam na Ilha Portal do Trigo. O intenso aumento das cheias, agravado por proprietários de terras que depredavam a mata ciliar, e o surgimento de leis ambientais mais rigorosas, sob fiscalização do Instituto Ambiental do Paraná (IAP), tornou inviável a vida na ilha. “Isso aqui deu muito orgulho pra gente. É uma pena que tudo tenha acabado dessa maneira”, lamenta Luciene, sem esconder os olhos marejados.
A dona de casa deixou a ilha há 13 anos, rompendo assim, uma corrente de gerações, iniciada com seus avós. Apesar disso, até hoje, acompanhada dos filhos, viaja de Santa Cruz do Monte Castelo até Querência do Norte, de onde observa, ao longe, um sentimento de nostalgia se materializando. “Independente de qualquer mudança, sei que ela sempre vai estar ali”, comenta.
“A gente não precisava de muito dinheiro”
O maior benefício de se viver em uma ilha, segundo a dona de casa Luciene Franco, é a economia. “Era muito bom porque a gente não precisava de muito dinheiro. Só tivemos de mandar trazer um gerador de energia da cidade. Isso foi bem depois”, lembra.
Antes de adquirir o gerador, a única luz que iluminava a pequena casa, onde viviam mais de dez pessoas, era a de um lampião. À época, Luciene e os irmãos, ainda pequenos, costumavam deitar no chão e olhar para o teto. A surpresa, que depois se tornou fato constante, era a presença de cobras. “Sempre tinha alguma pendurada. Como a gente era criança, levava tudo no divertimento”, declara sorrindo.
Até 1990, toda a família de Luciene estava envolvida na produção de arroz e feijão. Havia muita união, principalmente na hora de trabalhar. O respeito entre os membros da família era consequência do forte vínculo semeado no dia a dia, quando a força coletiva determinava a diferença. “Ninguém passava o dia desocupado. Meu pai e irmãos revezavam pra atravessar o rio com um bote de carga. Eles iam para Querência do Norte vender a maior parte do arroz para uma secadora”, reitera a dona-de-casa.
O desempenho da produção, em molde tão arcaico que beira o processo artesanal, dependia mais da natureza do que das técnicas de manejo. De acordo com Luciene, quando chovia, o jeito era aguardar o mau tempo passar. “A chuva estragava tudo e a gente tinha que esperar secar pra começar de novo”, revela.
Durante o dia, a família se dedicava a agricultura, e à noite, a pescaria. “O trabalho era puxado, mas sempre valeu a pena. A gente tinha muita fartura. Nunca faltava nada”, defende a dona de casa.
Curiosidade
Se pudesse, Luciene Franco voltaria a viver na ilha, onde o custo de vida é mais barato.