David Arioch – Jornalismo Cultural

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Sobre o meu trabalho com o veganismo

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Foto: Ed Wray/Getty Images

Até hoje nenhuma pessoa que conheço me ofendeu ou me tratou com desrespeito por escrever ou falar sobre veganismo. As ofensas que recebi, e que considero inclusive poucas em relação à quantidade de conteúdo que produzo diariamente, são mínimas, e vieram de desconhecidos, inclusive fakes. Já pensei, e às vezes ainda penso, em parar de escrever sobre isso por outros motivos que prefiro não explicar detalhadamente agora.

Gosto de escrever com liberdade, sem obrigação de responder a algum tipo de padronização ou hierarquia ao que diz respeito à defesa dos direitos animais. Às vezes, vejo pessoas falando de veganismo e direitos animais como se alguém tivesse alguma obrigação tácita e moral de seguir um programa que supostamente seria o melhor para todos. Isso simplesmente não funciona pra mim.

O que deve predominar, pelo menos no meu entendimento, é a honestidade, sensibilidade, comedimento e sinceridade de cada um em relação ao que se expressa. E isso independe de fórmula. Claro, todos devemos evoluir, mas cada um dentro daquilo que se propõe a fazer, principalmente se estiver dando resultados.

Não me vejo como alguém que representa um movimento, um grupo ou uma entidade. Não estou aqui para normatizar o trabalho de ninguém. Sou apenas alguém escrevendo livremente sobre os animais e o direito à vida. Quem acompanha o meu trabalho sabe que não tenho limites quanto a estilo e formato. E muito do que produzo surge naturalmente, pode ser uma reportagem, um artigo, uma crítica, uma crônica, um conto, uma reflexão ou um aforismo.

Quando você escreve profissionalmente e diariamente há mais de uma década, o que significa dezenas de milhares de páginas, e isso se torna parte de você, muitas vezes você não precisa de mais do que seus próprios olhos, um olhar sensível e ponderado para dentro de si mesmo e dos outros para usar como ponto de partida para a conscientização e a sensibilização. E se isso está funcionando em algum nível, pra mim isso é um bom indicativo.

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O sonho de Baruddin e o lamento de um pai

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Ahman observou os furos como se fossem ferimentos provocados por mamonas

Bogor quando Baruddin Jalisu ainda era vivo (Foto: Bogor Heritage)

Bogor quando Baruddin Jalisu ainda estava vivo (Foto: Bogor Heritage)

Em uma das pacíficas manifestações pela independência da Indonésia, Ahman Jalisu foi entregar arroz em um pequeno armazém de Bogor, na Província de Java. Quando ouviu sons de tiros e gritos, abandonou a bicicleta com a carretinha de madeira onde transportava quase cem quilos do produto e correu a pé, abespinhado, gritando o nome do filho.

Percorreu 500 metros e caiu de joelhos ao ver dezenas de pessoas fechando portas e janelas enquanto homens fardados empilhavam cadáveres sobre uma pira. Ao olhar para o outro lado da rua, Jalisu viu o filho deitado sobre uma poça de sangue, com os lábios ao chão.

Os olhos de Ahman fumegaram. O sofrimento o sobrepujou de forma tão truculenta que pensou que o tempo tivesse regelado, transfigurando o efêmero em infinito. Sem se importar com a própria vida, correu até Baruddin. Os cabelos de azeviche do rapaz ocultavam-lhe o rosto de traços singelos.

Ahman o tomou nos braços e correu sem olhar para os lados, pensando apenas em levar o filho escanifrado embora. Parou para resfolegar no armazém onde abandonou a bicicleta. Despejou o arroz no chão, ao alcance de uma turba de famintos, colocou o filho dentro da carretinha e pedalou 15 quilômetros até chegar em casa.

Levou Baruddin ao banheiro e deu-lhe banho. Enquanto o asseava, exigiu que nunca mais agisse de forma tão passional. Jalisu deslizou a mão direita pelos projéteis das submetralhadoras que, abrigados no corpo do rapaz, deixaram três orifícios no tórax, dois na nuca e um nas costas. Ahman observou os furos como se fossem ferimentos provocados por mamonas; comum quando o filho não tinha mais de 10 anos.

Naquele tempo era a principal munição das brincadeiras de estilingue. Com os cabelos de azeviche tapando parcialmente os olhos, Baruddin relatava ao pai que estava treinando para lutar pela independência dos indonésios quando se tornasse adulto. Descalço, corria quilômetros até a residência do amigo Segu.

Juntos, confeccionavam estilingues com forquilhas de ferro. As reminiscências deixaram Jalisu em prantos. Quando percebeu a água da banheira rubicunda, advertiu o filho sobre a importância dele não entrar sujo na banheira. “Não faça assim, ujang [filhinho]… Você bem poderia ter se limpado no poço. É tão pertinho. É claro que depois eu deixaria você entrar dentro de casa e faria o seu jantar. Só quero seu bem. Sempre foi assim”, declarou Ahman balbuciando, sem notar as próprias lágrimas formando pequena poça em seu colo.

Baruddin foi assassinado lutando pela independência da Indonésia (Foto: Bogor Heritage)

Baruddin foi assassinado lutando pela independência da Indonésia (Foto: Bogor Heritage)

Após o banho, Jalisu vestiu o filho com as melhores roupas do pequeno roupeiro de teca seca. Pegou uma camisa e uma calça de cores claras que estavam dentro de um saco plástico transparente, o vestiu e o levou até a cozinha. Enquanto preparava rujak e bananas assadas ao molho de soja, fez carícias no rosto acobreado do caçula desacordado – com a nuca inclinada sobre o espaldar.

Ahman pediu para o filho sentar-se corretamente. “Por favor, Baruddin, se ajeite. Não quero que tenha graves problemas na coluna”, justificou. Jalisu passou a maior parte da tarde dizendo a Baruddin que o ajudaria a realizar seu sonho – construir um ônibus. O rapaz se dedicava às pequenas invenções. Nem as dificuldades econômicas o impeliam a desistir. Era comum vê-lo nas ruas de Bogor comercializando os pequenos inventos que carregava na carretinha puxada pela bicicleta.

Após sete dias convivendo com o filho morto, Jalisu inebriou-se em recordações, já impossibilitado de distinguir pretérito e presente. Para ele, Baruddin era a criança que escalava árvores até o topo, na tentativa de mensurar o tamanho de seu mundo diminuto, que o fazia se sentir como formiga-faraó. Ahman era o único que não se incomodava com o odor do filho.

O mau cheiro exalado pelo corpo foi percebido pelos vizinhos. Recomendaram que desfizesse do cadáver, enterrando-o. “Você vai acabar chamando a atenção da polícia. Pense bem!”, sugeriu um amigo. Ainda assim discutiu com todos e os expulsou de sua propriedade. Só restabeleceu a sanidade no entardecer do décimo dia.

Enleado, pegou o filho escanzelado nos braços com o mesmo cuidado de quando era um bebê. O embalou e cantou “Rasa Sayang”, a canção preferida de Baruddin na infância. Depois o levou até o fundo da residência e sentou sobre uma cadeira de balanço acoplada com um sistema de ventilação movido à casca de batata-doce – invenção do filho.

Pressionando a cabeça de Baruddin contra o peito, Jalisu chorou, umedecendo os cabelos do rapaz. Quando sentiu a fragilidade do corpo sem vida recostado ao seu, berrou até ficar sem voz. Perguntou a Deus se seria possível transferir todos os seus órgãos vitais para o filho. A resposta não veio – não da forma esperada, somente uma alígera brisa com olência de crisântemo e um silêncio ensurdecedor que dilatou seus sentidos à exaustão.

Uma hora mais tarde, Ahman buscou uma faca na cozinha e extraiu com diligência todas as balas alojadas no corpo do filho. Aparou as pontas dos cabelos, cortou as unhas, fez a barba do rapaz e o enterrou nu a 900 metros da casa, sobre folhas de erva-cidreira – a preferida do jovem Jalisu. Preocupado em ter uma recaída e, quem sabe, resolver exumar o filho, não construiu lápide nem deixou qualquer identificação de que no local o corpo de Baruddin repousava.

Temia que pelo fato do rapaz ter sido um insurgente poderiam levar seus restos mortais para serem incinerados em uma fornalha na Província de Jambi. Com o passar dos anos, esqueceu o número de passos até o local onde Baruddin foi enterrado. Apesar disso, os restos mortais continuaram na chácara em que Ahman Jalisu sempre morou.

Para se sentir mais próximo do filho, estudou o projeto criado por Baruddin e construiu em dezembro de 1941 um ônibus de proporções homéricas que até hoje circula pelas ruas de Bogor, transportando sem qualquer custo famílias pobres que vivem nas vilas nas imediações da chácara da família.

“Esses dias, quando eu estava dirigindo, vi Baruddin sentado no último banco, onde o sol deitava candente por trás do vidro traseiro. Não havia mais ninguém além de nós dois. Ele não chorava, não sentia dor nem falava. Apenas sorria, trazendo ao meu coração uma fagulha de alegria. Naquela noite, dormi bem pela primeira vez em mais de 20 anos. Meu filho tinha voltado pra casa”, escreveu Ahman Jalisu em um diário em 25 de novembro de 1963.

Curiosidade

Rujak ou rojak é um prato típico à base de abacaxi, batata-doce, manga, carambola, jicama, jambo, goiaba e tofu. Os ingredientes também podem variar dependendo da região e da tradição familiar.

Written by David Arioch

February 16th, 2016 at 12:52 am

Independência e sangue

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O que o mundo ignorou sobre a Guerra da Tchetchênia

Os enormes estragos da Guerra na Tchetchênia (Foto: Reprodução)

Os enormes estragos impostos pela guerra na Tchetchênia (Foto: Reprodução)

Nos anos 1990, a Guerra da Tchetchênia entrou para a história como um dos grandes momentos de selvageria e carnificina da humanidade, chegando a ser comparada com a Segunda Guerra Mundial. O conflito foi desencadeado ao Sul da Rússia, desestabilizando completamente uma região ocupada por uma população castigada por condições precárias de vida.

A primeira fase da Guerra da Tchetchênia teve início em 1994, quando tropas russas atacaram indiscriminadamente cidades e vilas. Tudo em represália à tentativa dos tchetchenos de serem independentes e criarem um estado autônomo. Os soldados russos não hesitavam em matar e estuprar civis, além de saquear e queimar residências e lojas. O trunfo da Mãe Rússia eram as grandes formações de aviões e tanques com artilharia pesada que em poucas horas causavam enormes estragos.

Nem mesmo as crianças eram poupadas, tanto que a beligerância é lembrada como um momento histórico de revelia aos direitos humanos e às leis de guerra. Sobre o assunto, até hoje o mundo e a grande imprensa pouco se manifestou, segundo o jornalista estadunidense Barry Renfrew que por muitos anos atuou como correspondente de guerra da Agência Associated Press.

Matar ou morrer por um ideal

Tchetchenos orando antes da batalha (Foto: Reprodução)

Tchetchenos orando antes da batalha (Foto: Reprodução)

A guerrilha tchetchena se articulou para dar o troco nos opressores e conseguiu. Mais motivados e bem preparados que os russos, os guerrilheiros lutavam pelo nacionalismo e ódio étnico. O propósito era matar ou morrer por um ideal. Já os russos chegaram a um ponto em que estavam mais preocupados em sobreviver às investidas dos guerrilheiros do que vencer. “Foi uma guerra tão selvagem que não há justificativas para explicá-la”, comenta Renfrew que assistiu de perto o constituído governo democrático russo buscar no seu passado de ferocidade medieval e totalitarismo os métodos mais cruéis para punir o povo da Tchetchênia.

Enquanto os russos viam os tchetchenos como selvagens traiçoeiros e criminosos, os tchetchenos encaravam os russos como conquistadores cruéis e espoliadores de sua pátria. “A Rússia é uma colcha de retalhos formada por muitos grupos étnicos que foram conquistados à força. E todo governo russo, independente de ideologia, sempre acreditou que a preservação desse império deve ser mantida a qualquer custo”, diz o jornalista. A dissolução da União Soviética já havia sido encarada como um pesadelo que feriu profundamente o orgulho russo, então a possibilidade de perder qualquer território, por menor que fosse, era algo inaceitável.

Barry Renfrew: "Para eles, ser independente é um fato indiscutível da natureza"

Barry Renfrew: “Para eles, ser independente é um fato indiscutível da natureza” (Foto: Reprodução)

Um povo nacionalista e marcial

Os tchetchenos, desde sempre conhecidos como um povo nacionalista e marcial, foram os últimos a serem conquistados pela Rússia Czarista do Século XIX. Certa vez, na década de 1940, em punição a não subserviência dos tchetchenos, o líder soviético Josef Stalin deportou centenas de milhares de homens, mulheres e crianças para a Ásia Central, onde a maioria morreu sob terríveis condições. A resistência dos tchetchenos chegou ao ápice em 1991, quando aproveitaram o colapso da União Soviética e declararam independência.

“Para eles, ser independente é um fato indiscutível da natureza, assim como as montanhas que cercam suas terras. Eles não precisam se justificar. E se você tenta questioná-los sobre isso, recebe um olhar reprovador”, explica Barry Renfrew. Quem também não se posicionou sobre essa guerra foi a Justiça Internacional. O Ocidente fechou os olhos para a Tchetchênia e tratou o conflito como uma questão interna sem base legal para intervenção externa, mesmo ciente de que os russos foram responsáveis pela morte de milhares de civis tchetchenos. “A verdade é que o Ocidente preferiu apoiar Boris Iéltsin e o seu dito governo pró-ocidental em Moscou. Se limitou a simplesmente fazer apelos por uma conduta ‘mais moderada’”, frisa o jornalista.

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A invasão russa se transformou em um desastre (Foto: Reprodução)

O papel do exército

Em dezembro de 1994, os soldados russos chegaram à Tchetchênia, onde se surpreenderam com a grande quantidade de mulheres e crianças tentando bloquear a entrada dos tanques. A maioria implorava para que voltassem para a Rússia. Um general decidiu suspender a invasão alegando que o papel do exército não era lutar contra os próprios cidadãos. Mas nada disso impediu a tragédia que estava por vir. Mais tropas russas invadiram a Tchetchênia em uma ação prevista como rápida e inofensiva para os civis.

“A situação saiu de controle e se transformou em um desastre. Os russos começaram a bombardear os assentamentos civis. Bem organizados, os tchetchenos capturaram aviadores inimigos e em alguns casos nem se deram o trabalho de transformá-los em prisioneiros. Para servir de lição, alguns foram mortos lá mesmo”, enfatiza Renfrew que viu o despreparo do exército russo nas investidas em solo tchetcheno.

Quando Grozny sucumbiu

Grozny, a capital, sucumbiu diante de uma truculenta batalha campal. Enquanto por terra a artilharia pesada dos tanques martelava a cidade. Pelos céus, os russos apelavam para as sequências de bombardeamentos aleatórios, como se não houvesse uma real estratégia de atuação. “A meta parecia ser pulverizar a cidade, pois estavam destruindo tudo”, lembra. Um fato curioso é que a maior parte de Grozny era ocupada por uma população de etnia russa. Desesperados, os sobreviventes fugiam para as aldeias vizinhas.

Grozny depois de destruída pelo Exército Russo (Foto: Reprodução)

Grozny depois de destruída pelo Exército Russo (Foto: Reprodução)

A capital foi a mais castigada porque a Rússia acreditava que a maior base insurgente se situava no coração de Grozny. Até aquele momento, os tchetchenos se refugiavam em grandes blocos de apartamentos, onde era possível reforçar as proteções, tornando-as mais resistente aos ataques. “Eu podia ver claramente que ambos os lados fariam de tudo para ganhar. O interesse maior era derrubar o inimigo”, comenta Renfrew. Embora contassem com menos armamento militar, os tchetchenos conseguiram render muitos inimigos. Aqueles que não foram mortos receberam bom tratamento e foram até liberados.

No Verão de 1996, o Kremlin declarou ao mundo que a vitória na Tchetchênia estava assegurada, após um ataque surpresa que culminou na captura de vários líderes do movimento separatista. “Não foi bem isso que aconteceu. A Rússia retirou suas forças da Tchetchênia para salvar a própria imagem. Não havia esperança de vitória militar”, avalia o jornalista estadunidense.

Capital foi a cidade mais castigada da Tchetchênia (Foto: Reprodução)

Capital foi a cidade mais castigada da Tchetchênia (Foto: Reprodução)

A imposição russa em 2000

A Rússia apenas conseguiu se impor sobre os separatistas em 2000, quando restaurou o domínio direto da Tchetchênia ao destruir Grozny. Resistentes, os rebeldes montaram uma base de ataque nas colinas. Com o passar dos anos, os tchetchenos sofreram grandes baixas. Uma das maiores foi a morte do líder separatista Aslan Maskhadov em março de 2005, seguida pela do comandante militar Shamil Basayev, assassinado em julho de 2006.

Entre as muitas crianças mortas pelos russos entre os anos de 1999 e 2000 estava Tapa Arskeyov, irmão de Dmitri Arskeyov. Tapa que tinha 12 anos acompanhava o pai Sergey, na tentativa de convencer um grupo de soldados russos a não invadir uma área escolar em Grozny. Foi uma tentativa em vão, embora um dos invasores tenha se sensibilizado com a situação.

“Outros que vinham atrás viram meu pai e Tapa com as mãos para o alto; apenas acenavam. Antes que os russos perguntassem qualquer coisa, atiraram contra suas cabeças. Os dois caíram mortos”, confidencia Dmitri Arskeyov que hoje tem 25 anos. Enquanto alguns russos ficaram chocados com o acontecimento, outros simplesmente riram e seguiram adiante, sem se importar com os corpos de pai e filho já caídos sem vida sobre o solo. Dmitri e a mãe Lydia tiveram de recolhê-los com um carrinho de mão.

Um criminoso de guerra no poder

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Kadyrov, líder pró-Rússia responsável por 75% dos crimes de guerra na Tchetchênia (Foto: Reprodução)

Em 2007, Ramzan Kadyrov, filho do ex-presidente Akhmad Kadyrov, assassinado em 2004, assumiu a presidência da Tchetchênia, tendo como principal apoiador o presidente russo Vladimir Putin. Na segunda fase do conflito, as forças russas e seus aliados tchetchenos foram acusados de abuso generalizado de civis, incluindo desaparecimentos, torturas e matança indiscriminada. Grupos de direitos humanos internacionais estimaram que até cinco mil civis foram sequestrados por forças russas ou pró-Rússia.

Muitos inocentes eram violentados brutalmente para assumirem ligação com a guerrilha, mesmo quando não tinham qualquer relação com grupos separatistas. As forças de Kadyrov, conhecida como Kadyrovtsy, são creditadas por levarem a cabo a maior parte das abduções, tanto que a Federação Internacional de Helsinki para Direitos Humanos descobriu que a Kadyrovtsy operava uma rede de prisões secretas na Tchetchênia. O grupo é responsável por 75% dos crimes de guerra cometidos contra os tchetchenos. Ainda assim, quando reassumiu a localidade, a Rússia fez questão de oferecer o cargo de presidente da Tchetchênia ao criminoso de guerra Ramzan Kadyrov.

Como reflexo da guerra, até hoje as forças russas de segurança da Tchetchênia permanecem mal treinadas, indisciplinadas e corruptas. E isso tem relação direta com a pouca responsabilidade pelos abusos que cometeram ao longo de muitos anos. “Todos os militares russos julgados pelos crimes na Tchetchênia foram absolvidos ou receberam penas modestas. Me recordo do episódio de dois soldados que saíram impunes, após matarem seis civis em 2005”, exemplifica o jornalista Barry Renfrew. A justiça russa aceitou a alegação de que os acusados seguiam apenas ordens superiores, algo incompatível com um verdadeiro julgamento de guerra.

A retaliação tchetchena

Conforme se intensificou o ataque aos civis tchetchenos, os guerrilheiros decidiram levar a guerra até a Rússia. Lá, os rebeldes usaram civis como escudos humanos. Um dos episódios mais marcantes foi registrado em outubro de 2002, quando os tchetchenos tomaram um teatro em Moscou durante a realização de um musical popular. Nesse dia, os próprios russos mataram os reféns quando liberaram um gás venenoso.

Guerrilheiros decidiram levar a guerra até a Rússia (Foto: Reprodução)

Dois anos depois, os separatistas fizeram mil reféns em uma escola na cidade de Beslan, o que acabou na morte de 330 pessoas. Também houve ataques a hospitais, concertos públicos e áreas residenciais. O comandante tchetcheno Shamil Basayev declarou em 2005 que era preciso fazer com que todos os russos sentissem a dor da guerra. “A responsabilidade é de toda a nação russa. Se a guerra não chega até eles individualmente, ela nunca terá seu fim na Tchetchênia”, disse Basayev.

A repreensão tardia

Os Estados Unidos e alguns outros países ocidentais tardiamente decidiram repreender a Rússia pela negligência quanto aos direitos humanos na guerra. Em 2000, o então presidente estadunidense George Bush ameaçou interromper a ajuda que dava à Rússia, caso continuassem matando mulheres e crianças – deixando muitos refugiados tchetchenos órfãos. Mas tudo mudou após o 11 de setembro de 2001 e o surgimento de alegações de que alguns comandantes da Tchetchênia tinham ligação com a Al Qaeda e outros grupos terroristas internacionais.

Espertos, os russos aproveitaram o sentimento anti-islâmico para vender a ideia de que a luta na Tchechênia tinha como objetivo evitar a criação de um estado islâmico terrorista. Mesmo recebendo severas críticas da União Europeia, a Rússia conseguiu sair vitoriosa da situação. Em pouco tempo, a questão quase desapareceu das pautas da política internacional. “A Rússia transformou a Tchetchênia em um país perigoso tanto para os tchetchenos quanto para os estrangeiros. Hoje em dia, infelizmente, há pouca discussão pública sobre a Tchetchênia”, lamenta Renfrew.

Sobre Barry Renfrew

O jornalista Barry Renfrew começou a trabalhar na Associated Press em 1978. Desde então, já atuou como correspondente de guerra em Sydney, Moscou, Joanesburgo, Seul, Islamabad, Cabul e Londres. Antes de se tornar um dos diretores mais importantes da AP, Renfrew foi chefe do escritório no Paquistão e trabalhou na sede da Associated Press em Nova York e também na Virgínia Ocidental.

 Curiosidade

Imagens do documentário “Melancholian 3 Huonetta” que mostra as consequências da Guerra da Tchechênia. A música é da banda de post-rock finlandesa Magyar Posse – Single Sparks Are Spectral Fires.

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