David Arioch – Jornalismo Cultural

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Atropelou um gato e partiu

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(Ilustração: Pauline Daclub)

Um motorista, assim como muitos, atropelou um gato e o deixou estirado no asfalto. Não se importou em saber se estava vivo ou morto. Não parecia importante uma vida menor do que os pneus de sua caminhonete.

Talvez partisse da consideração de que vidas são relevantes apenas quando convenientes. As outras, pouco importa, principalmente de criaturas menores que não verbalizam o que sentem.

Mas o gato ainda se movia, deitado à força no chão quente de verão. “Logo morre”, concluiu. Alguém viu e recolheu o animal que, muito ferido, não resistiu. Pela manhã, quando o motorista acordou, ouviu um miado vindo do banheiro.

Gatos não viviam na casa. Procurou, procurou, e os miados não paravam, apenas mudavam de cômodo a cômodo – e nada de encontrar qualquer felino. Desistiu da busca e foi para o trabalho.

No caminho, os miados vinham debaixo do carro. Não entendia como era possível. Ignorou e ligou o som. Miados nos alto-falantes. Ficou irritado, esmurrou o volante e acelerou com violência, até que perdeu o controle da caminhonete.

Atravessou a pista contrária e capotou duas vezes antes de atravessar uma mangueira, invadindo um pasto sem boi. Nenhum veículo parou para socorrê-lo. Era como se fosse invisível ou não estivesse ali.

Preso entre as ferragens, observava pela janela motoristas seguindo suas vidas. Alguns pedestres passaram ao seu lado e seguiram adiante. Ele agonizava dentro da caminhonete, e os miados já inexistiam.

Prestes a desmaiar, ouviu um miado e monologou, quase sem forças: “De novo? Então esse é o fim?” Um gato se aproximou, e miava tão alto que foi como se o tempo tivesse parado. As atenções se voltavam para o felino – veículos e pessoas assistiam.

Assim que o gato lambeu o motorista ferido, os paramédicos e os bombeiros se aproximaram. O homem sobreviveu, e no hospital perguntou pelo gato. “Que gato?”, replicavam a cada repetição da questão. Retornou muitas vezes ao local do acidente, e nenhum sinal felino.

Quando indiferença e desinteresse nos incomodam

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Arte: Pixabay

Se uma pessoa por quem você tem estima o trata com indiferença ou desinteresse, confrontá-la externalizando em palavras agressivas o que você sente não vai melhorar isso ou alterar tal fato. Pode parecer difícil, mas há momentos em que o melhor é não dizer nada e simplesmente seguir adiante. Verbalizar coisas ruins como forma de “remediar” um sentimento ou realidade pode parecer um alívio, ainda que irrefletido, no momento, mas depois restarão apenas estilhaços de uma exaltação momentânea. E neste caso a fragilidade tornar-se veículo imponderado.

É comum desejarmos retribuir ou reprovar o que nos incomoda em relação ao chamado comportamento que depreciamos de alguém em relação a nós, mas se isso tornou-se uma já naturalizada inerência de alguém em relação a você, talvez isso signifique apenas que já não há muito o que frutificar. E forçar qualquer situação creio que não ajudaria.

Se analisarmos brevemente o comportamento das pessoas em relação a nós, não é difícil balizar o que realmente é saudável e o que não é para nós. Então tentar vingar-se ou retribuir sentimento negativo pode ser má ideia, já que dificilmente melhoraria a situação. Acredito que relações humanas devem ser colocadas sobre uma balança, se pende-se pouco para um lado e muito para outro, não há como se sustentar por muito tempo; já que o insustentável desequilíbrio, e derramamento para fora de nós mesmos, é apenas uma questão de tempo.

Podemos sentir-nos incomodados com as pessoas por vários fatores, mas quando isso se torna acumulativo, e realmente faz mal para a saúde emocional e psicológica, é válido considerar que as conexões humanas são tão importantes e inerentes à vida quanto as desconexões. E é possível seguir adiante sem precisar se entregar aos paroxismos sedutores desencadeados por possível frustração – que pode também resultar mais do que ansiamos do que realmente enxergamos em relação aos outros quando bebemos de nossas expectativas.

Mazelas são endossadas pela omissão, indiferença, conivência

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Foto: Reuters

Mazelas são endossadas e perpetuadas pela omissão, indiferença, conivência. Se o mundo é duro é porque nós também somos, já que ele reflete aquilo que somos e como agimos. Pessoas falam diariamente em fazer a diferença, mas se essa diferença é apenas ensaiada, ela não é transformadora, é infrutífera; basicamente um “da razmišljam”, um pensar sinuoso, suscetível, à revelia. Um mundo de injustiças e desigualdades pode até não refletir a vontade da maioria, mas também não reflete nem mesmo a sua contestação prática, talvez porque nossas vontades sejam pequenas demais para não nos olvidarmos.





 

Written by David Arioch

January 24th, 2018 at 11:47 pm

Sempre que você mostrar alguma denúncia de crueldade contra animais, alguém dirá que não é necessário se preocupar

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Sempre que você mostrar alguma denúncia de crueldade contra animais, alguém dirá que não é necessário se preocupar, porque isso é exceção. Porém, acho importante não desconsiderar que muitas das desgraças que a humanidade viveu no passado e ainda vive no presente foram endossadas pela aceitação. A partir do momento que normalizamos qualquer ação que prejudique outras vidas, logo não deveria ser naturalizada, estamos dando o nosso aval para que essas práticas não sejam abolidas.

Não é raro alguém usar o argumento de que o problema da crueldade pode ser resolvido com boa fiscalização. Bom, vivemos em um país com mais de 207 milhões de pessoas, imerso em corrupção, desigualdades e outros tipos de injustiças, e que mata 191 animais por segundo. Estou citando apenas criaturas criadas para consumo. Tem certeza que quer falar sobre fiscalização? Não é preciso recorrer a nenhuma organização para concluirmos que é impossível evitar que animais sofram ou passem por algum tipo de privação. Até porque são criaturas que, assim como nós, não desejam sofrer e morrer, independente de tratamento e circunstância.

Muitas vezes, a construção conceitual da exceção no nosso ideário é apenas uma forma de nos eximirmos de culpa, e seguirmos nossas vidas como se estivéssemos dando o nosso melhor. Mas a realidade é que não fazemos isso, apenas nutrimos tal ilusão; perpetuamos uma relação de conveniência que se arrasta por séculos. Se as possibilidades para uma vida mais justa em relação aos outros surgem a cada ano, com um número cada vez mais crescente de alternativas, por que não devemos abraçá-las, nos esforçarmos para não impactarmos tanto na vida de outras criaturas?

Não é difícil fazer isso quando há genuína boa vontade. Se a você isso parece difícil, acredite, talvez o seu esforço não seja lídimo. Claro que viver como sempre vivemos nos parece sempre mais sedutor e confortável. Afinal, as pessoas não gostam tanto de mudanças quanto dizem gostar, e principalmente se isso faz com que questionem o seu estilo de vida, a sua concepção de mundo e de valores. A simples verdade que muitos rejeitam é que não somos tão bons quanto nos julgamos na nossa relação com vidas não humanas, e isso é uma consequência natural da nossa displicência.





A indiferença e os artistas de rua

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Pensei também em como eles resistem na contramão deste mundo cada vez mais consumista em que vivemos

Pensei também em como eles resistem na contramão deste mundo cada vez mais consumista em que vivemos

Eu estava voltando pela Avenida Heitor Alencar Furtado quando parei em um sinaleiro. À minha frente, um artista de rua fazia malabarismo com facões. Fiquei imaginando quanto tempo ele deve ter levado pra chegar àquele nível.

Pensei também em como ele resiste na contramão deste mundo cada vez mais consumista em que vivemos. Não tenho dúvida alguma de que ele não é ambicioso ou ganancioso. E são pessoas com esse tipo de nobreza que vivem alheios à inveja. Do contrário, não estaria lá, entretendo um público ocasional que muitas vezes pouco se importa com o que ele está fazendo.

Notei pessoas mantendo os vidros fechados e desviando os olhos pouco antes do sinal ficar verde. Achei a cena triste, mas de um contraste que realça a nobreza de quem está sempre acima das mesquinharias. O rapaz fazia reverências e sorria efusivamente até para quem o ignorava ou acenava dizendo que não tinha dinheiro algum, mesmo que esses guiassem veículos que custam mais de R$ 100 mil.

Mais do que uma Era de Consumismo, me deparo com situações no dia a dia que reafirmam a existência de uma Era da Mesquinharia, um sentimento que fui incentivado desde cedo a não ter. Cada vez que você vira as costas ou ignora alguém, você reforça uma tentativa de marginalizar alguém. Se você acredita que não tem nada a oferecer, tudo bem, desde que assim sua consciência o reconheça. Mas triste é quando você sabe que tem, mas prefere não oferecer nada baseando-se na descrença generalizada a respeito do ser humano.

Anteontem à tarde foi diferente. No sinaleiro da Rua Manoel Ribas, em frente ao Posto Minas, um rapaz fazendo malabarismos com pinos ganhou um dinheirinho de todos os motoristas. Achei aquilo bonito e raro porque percebi que existia harmonia naquela ação individual que ganhou força coletiva iniciada nas primeiras fileiras. Havia beleza e uniformidade. E a fisionomia do rapaz realmente mostrou que ele se sentiu recompensado.

Me recordei de um costume que o meu pai tinha quando estava fazendo quimioterapia no Hospital Beneficência Portuguesa em 1997. Sempre que ia a São Paulo, ele separava um pouco de dinheiro. Um dia minha mãe perguntou qual era a finalidade e meu pai respondeu: “É que até chegar ao hospital não quero ter que dizer não a nenhum pedinte.”

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