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“Ô tio, não leva meu pai! Por favor!”
Há um tempinho, após uma entrevista, saí de uma residência no Conjunto Dona Josefa, na periferia de Paranavaí, e lá fora fui abordado por uma criança que morava na casa vizinha. “Ô tio, não leva meu pai! Por favor! Não leva ele hoje. Ele não teve nem tempo de ficar com a gente”, disse o garotinho de quatro anos com olhos marejados.
Enquanto falava, a criança usava sua trêmula mão esquerda para segurar sem jeito dois dedos da minha mão direita. Expliquei a ele que eu não estava atrás do pai dele. “Por favor, tio! Por favor, deixa ele com nós! Hoje é meu aniversário! Juro que nunca mais faço arte na minha vida!”, continuou repetindo. Depois cruzou os dedos indicadores das mãos e os beijou num estalo sem igual fazendo promessa em forma de sinal.
Só se acalmou quando mostrei meu caderno, meu gravador e minha caneta. O garotinho sentiu um alívio tão grande que seu sorriso se transformou em uma gargalhada. De repente, começou a saltar sobre um pedaço de toco queimado rente ao portão.
Ele estava eufórico e queria dividir isso até com quem não notava sua existência por causa da pequenez. Quando parou de pular, ficou rubro de vergonha e correu para dentro de casa arrastando um par de chinelinhos com elástico junto aos calcanhares. Naquela noite, mais do que uma festinha, ele teria seu pai dormindo em casa.
A minha primeira vez no caldeirão do inferno
Imaginei o mais tenebroso e abissal dos cenários, com chamas flamejantes ao fundo
Meu pai gostava muito de viajar. Depois que se aposentou então a frequência aumentou consideravelmente. Às vezes, levantava de madrugada e acordava todo mundo. Pedia para arrumar as malas e avisava que partiríamos em uma hora. Era divertido viajar sem planejamento, até porque quando ele avisava com bastante antecedência eu e meu irmão Douglas ficávamos agitados e ansiosos. Ou seja, não dormíamos.
Amante da cultura paranaense, meu pai tinha predileção por mostrar como o estado onde nascemos possui muitas riquezas que passam despercebidas por tanta gente. Foi assim que conheci o Paraná de Norte a Sul quando criança. Ele enaltecia a simplicidade, as coisas da terra e o teor sereno das pessoas do campo, dos vilarejos e das pequenas formações citadinas, lugares alheios ao tempo, onde tudo parecia transcorrer sem pressa. No caminho, cantávamos canções escoteiras como “A Velha A Fiar”, “A Árvore da Montanha” e “La Bela Polenta”. Meu pai dirigia com tranquilidade enquanto desafiava eu e meu irmão a ler primeiro o que estava escrito nas placas, outdoors e letreiros que encontrávamos em cada trajeto.
Curioso, eu tentava observar tudo à minha volta, mas ocasionalmente sentia náuseas. Em algumas situações consegui evitar o pior ao abrir a janela, colocar o rosto para fora, fechar os olhos e absorver o aroma da relva amplificado pelo vento. Quando não resolvia, o jeito era parar o carro. Eu descia pálido e estonteado. Assim que vomitava, me sentia revigorado em poucos minutos. Percebia até a temperatura corporal retornando ao estado normal. Para me animar, meu pai e minha mãe contavam histórias dos lugares por onde passávamos, o que me fazia sonhar acordado, imerso num universo pessoal mais próximo da fantasia do que da realidade.
Na minha primeira visita as Furnas, no Parque Estadual de Vila Velha, em Ponta Grossa, eu tinha nove anos quando me disseram que iríamos aos “caldeirões do inferno”. Criança que era, e com uma perspectiva de desenho animado, imaginei o mais tenebroso e abissal dos cenários, com chamas flamejantes ao fundo, onde o diabo aguardava um deslize para arrastar crianças desobedientes até as profundezas do desconhecido. Sem dizer nada a ninguém, comecei a pensar em tudo que fiz de ruim naquele ano e me perguntei: “Será? Será que existe algum motivo pra eu ir pro inferno agora que ele tá tão perto de mim?”
Logo lembrei das vezes em que fiquei de castigo na escola por mau comportamento, do dia em que não obedeci minha mãe e tomei banho de chuva. Claro, também de quando comi escondido doces que não eram meus. “Será que o capeta sabe que peguei umas figurinhas do álbum do Campeonato Brasileiro do meu irmão? E aquele dia que faltei na catequese? Tô lascado se hoje for o dia do acerto de contas”, refleti enquanto sentia um gosto de fel na ponta da língua.
Quando entrei receoso, e a passos leves e curtos no elevador panorâmico da Furna 1, percebi uma abrupta revoada de morcegos. Ouvi um guia contando a um visitante que um dia uma noiva cometeu suicídio, saltando lá de cima. Eu que pouco entendia sobre o significado da morte me recordei de um episódio da série Contos da Cripta que assisti escondido dos meus pais. Pensei na possibilidade da mulher reaparecer por aquelas bandas, quem sabe até emergindo das águas caliginosas da lagoa para me levar com ela a contragosto. Pelo menos fiquei mais aliviado quando vi de longe que não havia fogo nem diabo.
Conforme o elevador descia, me senti mais minúsculo e curioso diante daquela enorme e profunda cratera onde uma vegetação primitiva e predominantemente rasteira adornava o cenário. Notei também no entorno algumas lâminas rochosas pontiagudas e assimilei com a matéria-prima do caricato tridente do capeta. Lá embaixo, caminhei sobre a plataforma de madeira, tentando identificar o que havia sob a água. Divaguei, aventando a possibilidade da Furna abrigar algum animal tipo o Monstro do Lago Ness. “E se isso aqui quebrar e a gente cair na lagoa?”, uma reflexão constante cada vez que eu observava a pequena distância entre as águas turvas e os meus pés.
Meu pai se aproximou e disse que o local era território de peixes cegos e albinos, então imaginei como seria viver em um ambiente como aquele – um mundo pequeno e escuro, uma masmorra fluvial, onde animais eram punidos por motivos secretos, condenados à infelicidade até os seus últimos dias. Não! Eu poderia estar errado. Por que pensar no pior? Talvez existissem muitas belezas no fundo daquele caldeirão, coisas tão belas que jamais poderiam ser vistas, mas apenas ouvidas e sentidas, aguçando somente a imaginação. Quem garante que o meu mundo não poderia ser mais limitado do que o deles?
Naquela época, eu tinha lido “Vinte Mil Léguas Submarinas”, de Júlio Verne, o que me influenciou a julgar num rompante de ingenuidade e pessoalidade que houvesse uma maneira de saber se aqueles peixes que viviam nas Furnas eram felizes. Me agachei vagarosamente e com muito esforço fiz um círculo na água com o miúdo dedo indicador da mão direita, o suficiente para emitir uma vibração diferente daquela com a qual os animais da Furna 1 estavam acostumados. Menos de um minuto depois, três peixes pequenos se aproximaram da superfície. Após o contato de breves segundos, mergulharam nas profundezas, numa sequência que parecia ensaiada.
Para qualquer outra pessoa quem sabe não significasse nada, mas pra mim, no meu universo peculiar de criança com nove anos, era um sinal de que a vida naquele lugar não era hostil. Interpretei que aqueles peixes ainda não tinham motivos para desgostarem do ser humano, ainda um visitante, não um invasor. “É, acho que ainda são felizes”, concluí com um sorriso enviesado e a fé cândida de que aquele lugar que me pareceu tão aterrorizante em um primeiro momento era belo, harmonioso, justo e cabalístico à sua maneira.
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A fábula de Amélie Poulain
Jeunet e a beleza embutida de simplicidade
Lançado em 2001, O Fabuloso Destino de Amélie Poulain, é um filme popular de estética leve e colorida do cineasta francês Jean-Pierre Jeunet que aborda a beleza da natureza humana a partir de uma jovem que tenta se distanciar das complexidades da vida.
O Fabuloso Destino de Amélie Poulain é um contraponto no universo de criações sombrias de Jeunet. O filme transmite beleza e uma peculiar pureza do início ao fim, tendo como elemento central da história a graciosa Amélie Poulain (Audrey Tautou), uma jovem que após a morte da mãe se muda sozinha para o boêmio Montmartre, em Paris, onde consegue um trabalho como garçonete.
O maior hobby de Amélie é observar pessoas; a ela, seres tão desconhecidos, mas ao mesmo tempo fantásticos. O passatempo surge a partir de um episódio vivido na infância. O pai, Raphael Poulain (Rufus), após realizar alguns exames com a filha, a diagnosticou com um problema cardíaco crônico, a privando de ir ao colégio, ter amigos e até mesmo sair de casa. Poulain nunca soube que o coração de Amélie sempre acelerava justamente pela sua presença, um contato tão raro.
Amélie poderia ter se tornado alguém com graves distúrbios psicológicos e emocionais. Mas nada disso acontece. Já adulta, deixa de ser uma espectadora para se tornar protagonista da própria vida. A cena em que entrega um relicário com brinquedos ao ex-proprietário do apartamento onde mora é uma das mais memoráveis. A satisfação do homem é transcendental.
Amélie percebe algo que conjugado a sua sensibilidade não é comumente notado pela maioria das pessoas: pequenas coisas tornam a vida mais rica e a inflam de sentido não pelo que são, mas pelo que representam. A partir daí, o mundo da personagem se materializa num espectro de ações altruístas.
Sobre a estética usada por Jeunet, é destacável o uso e abuso de cores nos planos de filmagens, o que proporciona vivacidade surreal e representa a exteriorização da beleza interior de Amélie. Em cor pastel, os tons leves da fotografia remetem à pureza existencial da garçonete. Além disso, a presença de um narrador em off garante um caráter didático e descritivo.
Há também muitas cenas de cortes rápidos, flertando com a edição objetiva usada em videoclipes, além de outras em plano-sequência; tudo contribuindo para tornar a obra mais dinâmica. No mais, O Fabuloso Destino de Amélie Poulain é um filme humanista com características de fábula que cria uma ponte entre a realidade física e a fantasia psicológica.
Trilha Sonora
Após o lançamento do filme, a trilha sonora do compositor francês Yann Tiersen ganhou projeção mundial, sendo regravada por centenas de artistas e usada como background de milhares de espetáculos por todo o mundo, além de programas televisivos. Sem dúvida, a canção mais popular da soundtrack é Comptine d’Un Autre Été que recebeu várias versões do próprio Tiersen.
O valor de uma promessa
A história do homem que viaja sete léguas com uma cruz nas costas para cumprir um voto
Lançado em 1962, O Pagador de Promessas, do cineasta Anselmo Duarte, é um dos maiores clássicos do cinema nacional. A obra inspirada na peça de Dias Gomes conta a história de um homem do campo que viaja sete léguas (42 quilômetros) com uma cruz nas costas para pagar uma promessa.
No filme, Zé do Burro (Leonardo Villar) chega à cidade machucado pelo peso da cruz sobre o ombro, resultado de um voto que fez à Santa Bárbara para que o seu fiel companheiro, um burro, fosse curado de uma grave enfermidade. Mas o grande problema surge quando o agricultor tenta entrar na Igreja de Santa Bárbara com a cruz, sendo impedido pelo Padre Olavo (Dionísio Azevedo) ao saber que Zé fez uma promessa à santa em um terreiro de candomblé.
Tenta justificar o episódio falando que não havia nenhuma igreja ou capela próxima. Intransigente, o sacerdote não aceita a explicação de Zé e pede que o homem saia das imediações do templo. O pagador de promessas se recusa e decide ficar na frente da igreja até conseguir entrar, honrando o compromisso feito à Santa Bárbara.
Aproveitando-se da inocência do matuto homem do campo, uma infinidade de pessoas tentam se aproximar com as mais diversas intenções. Um exemplo é o inescrupuloso personagem Bonitão, um cafetão que finge ajudar Zé apenas com a intenção de conquistar Rosa, a mulher do pagador de promessas.
Outra figura digna de destaque é o jornalista interpretado por Othon Bastos que explora com sensacionalismo e inverdades a figura de Zé como um revolucionário messiânico. A repercussão da publicação atrai visitantes, líderes religiosos, patrocinadores oportunistas e até mesmo a polícia que começa a encarar o produtor rural como um contraventor e agitador social.
É trágica e cômica a cena do comerciante estrangeiro pedindo para o fotógrafo do jornal mostrar ao fundo o seu comércio enquanto em primeiro plano aparecem Zé, a cruz e Rosa. Anselmo Duarte aborda com riqueza visual e informacional a relação conturbada entre o catolicismo e as religiões afro-brasileiras, avaliadas pelo padre como “práticas demoníacas”.
A beleza de O Pagador de Promessas está na simplicidade, objetividade e linguagem canhestra do protagonista, alheio ao materialismo e malícias da modernidade. Em alguns aspectos, o filme lembra a crítica social das fases mexicana e espanhola do cineasta Luis Buñuel e também o cinema neorrealista de Pier Paolo Pasolini, principalmente a passagem da mercantilização da fé do clássico Uccellacci e Uccellini.
No início da obra, símbolos religiosos europeus e africanos se misturam no mesmo ambiente, evocando uma ideia de unidade da fé sustentada em amor incondicional e livre de preconceitos. Ao mesmo tempo, a percussão arcaica e dissonante da cena introduz o espectador ao caos que ainda vai ser vivido por Zé do Burro. Outra característica marcante do filme é o contraste entre o barulho e o silêncio total, além da aridez do cenário e a fotografia angustiante que em vários momentos aspira ao desconforto e ao derrotismo.
O Pagador de Promessas é uma obra antológica que apresenta um personagem ímpar com valores maiores que a própria vida. Extremamente atual, o clássico discute assuntos ainda controversos como o preconceito religioso, reforma agrária e má distribuição de renda. O elenco conta com outros grandes nomes do cinema e da TV nacional como Glória Menezes, Geraldo Del Rey, Roberto Ferreira, Norma Bengell e Antonio Pitanga.
O filme de Anselmo Duarte foi o grande vencedor do Festival de Cannes de 1962, recebendo a Palma de Ouro, título jamais conquistado por outra película brasileira. Também foi premiado em duas categorias no San Francisco International Film Festival, onde recebeu o Golden Gate, além de outras premiações no Festival de Cartagena, na Colômbia, e uma indicação ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1963.
Um manifesto sobre a fragilidade
Ivanovo Detstvo e o sonho da infância espoliada
Lançado em 1962, Ivanovo Detstvo, que chegou ao Brasil com o título A Infância de Ivan, é um filme do cineasta humanista russo Andrei Tarkovsky e aborda o estado de introspecção de uma criança órfã dividida entre o pesadelo da Segunda Guerra Mundial e o sonho da infância espoliada.
Ivanovo Detstvo conta a história de Ivan (Nikolai Burlyayev) que teve a inocência dilacerada quando soldados nazistas assassinaram seus familiares. Ignorando a própria condição existencial como criança, o garoto ingressa no exército soviético em busca de retaliação. Sob a perspectiva de Tarkovsky, a guerra assume um caráter individualista a partir das ações de Ivan.
A animosidade da contenda e a ausência de relações familiares levam o protagonista a um endurecimento e negação da juventude. Mesmo quando outros combatentes soviéticos tentam protegê-lo e o lembram de sua idade, o garoto age como se não estivessem se referindo a ele. Uma das cenas mais intensas da obra surge quando Ivan se torna refém de uma tormenta psicológica.
Consumido por desespero e delírio, o jovem armado com uma faca circula pela escura, gélida e sombria base militar a procura de nazistas. Mas não encontra nada, pois naquele ambiente a sua única companhia é a solidão. Incapaz de aceitar e lidar com a realidade, Ivan luta para velar a fragilidade e a sensibilidade com um manto de frieza. No entanto, ao dormir, é vencido por sentimentos e lembranças que retornam para reafirmar a sua condição infantil e conflitante.
O jovem soviético tenta ultrapassar a etapa da vida que deveria ser marcada pela ingenuidade justamente porque simboliza o momento mais doloroso de sua existência. Rejeitar a infância na fase de transição para a adolescência é uma forma de Ivan se desvincular do passado – uma tentativa sem sucesso. Ainda assim, não são poucos os momentos em que o garoto é transportado a um universo de nostalgia, onde se sente plenamente livre, estimulado por imagens de beleza e candura protagonizadas pela mãe, até pouco tempo seu maior elo com o mundo.
Ivan sofre sempre que acorda. Apesar disso, conta com o humanismo projetado na figura do capitão Kholin (Valentin Zubkov), um homem com quem estabelece uma difícil, mas alentadora relação. Kholin se torna a ponte entre o velho e o novo mundo do garoto, tentando mantê-lo em uma linha de equilíbrio, onde a sobriedade precisa ser nutrida com sonhos e expectativas.
Sobre a estética e os planos de filmagem da obra de Tarkovsky, o tempo todo a câmera assume papel de personagem, transmitindo sentimentos e emoções em meio a uma contumaz escuridão desértica. No chão, a consternação é marcada pelo solo improdutivo. No céu, onde há muito tempo as estrelas não brilham, as nuvens são substituídas por cortinas de fumaça cor de chumbo. A natureza parece sepultada, assim como tantas vidas representadas por escombros e ruínas. Em suma, Ivanovo Detstvo é um manifesto sobre a fragilidade humana.