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Pequenas reflexões sobre a morte

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Ainda assim lutamos para preservar a convicção de que “somos eternos enquanto vivemos”

Pequenas reflexões sobre a morte

A morte não nos convida para uma partida de xadrez como a educada e ponderada Döden da obra Det Sjunde Inseglet (Foto: Reprodução)

É sempre difícil lidar com a morte sem questionar alguns valores que regem a vida. Conviver com a perda é imprescindível, é humano, assim como enfrentar esporádicas crises existenciais em momentos extremos; quando perdemos alguém, por exemplo. Há acontecimentos que fazem o ser humano se questionar, se autoavaliar diante de tudo aquilo que até então lhe parecia pleno porque ele julgava como inconcebível ou até impossível.

É um pensamento que remete à infância quando atribuímos aos nossos familiares e amigos um status de intangíveis, imortais. Queremos sempre que aqueles de quem gostamos sejam eternos, independente das mais estoicas adversidades. Alimentamos essa ilusão como verdade plausível, diuturnamente tangível, até quando na adolescência ou diante de situação inesperada a ideia da finitude nos arrebata pela experiência.

A morte consegue ser menos seletiva do que nossas escolhas. E ela pode ser aparentemente cruel com a nossa ingenuidade, fiel companheira capaz de alimentar e ao mesmo tempo diluir nossa realidade. Ainda assim lutamos para preservar a convicção de que “somos eternos enquanto vivemos”. Precisamos, de fato, tratar quem importa para nós como heróis, sempiternos, pois a morte não é dada a avisos muito claros. Não nos convida para uma partida de xadrez como a educada e ponderada Döden da obra Det Sjunde Inseglet (O Sétimo Selo), do sueco Ingmar Bergman.

É justo e sensato reconhecer que a vida também pode afastar os seres humanos enquanto a morte é capaz de promover uma grande união de reflexões entre pessoas de tantas gerações que se conhecem ou se desconhecem. Humanos das mais diferentes formas, estilos e perfis – que se complementam e se antagonizam. Pessoas são microcosmos como réplicas ou paródias do macrocosmo, dependendo da concepção em voga. Somos tudo ao mesmo tempo que não somos nada.

Mesmo reconhecendo nossa pequenez, não precisamos negar que o fim de quem quer que seja há de abalar o mundo, mesmo que seja um mundo pessoal, onde um diminuto fragmento, mesmo que invisível à maioria, surge sempre que alguém se vai. A morte deixa seus vestígios – uma talisca de luz, sim, ínfima, não geográfica, que resplandece vaporosa sobre quem tem aptidão para notá-la.

Temos a natural necessidade de vivificar quem se foi porque o tributo clama não somente pela paz dos que partiram, mas também por um algo inominado e indefinível que assegure a manutenção da vida e a sanidade dos que ficaram. Acredito também que a morte é um sopro de vida, uma aragem curta, fugaz, tímida e melindrosa que muitas vezes se esforça para ser reconhecida, principalmente quando a ignoramos.

Written by David Arioch

April 7th, 2016 at 4:27 pm

A donzela de Bergman

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Jungfrukällan e o embate entre paganismo e cristianismo

A inocente Karin personifica a pureza (Foto: Reprodução)

Lançado no Brasil como A Fonte da Donzela, Jungfrukällan, de 1960, é um clássico do cineasta existencialista sueco Ingmar Bergman. A partir da trágica morte de uma virgem cristã, o filme apresenta uma perspectiva sobre o embate entre paganismo e cristianismo na Suécia do Século XIV.

Logo no início, a selvagem e expressiva Ingeri (Gunnel Lindblom) surge como uma representação do pecado ao tentar invocar o deus pagão Odin. Em outro cômodo da casa, a imagem de Jesus Cristo crucificado mostra que aquele é um lar cristão. Tais cenas evocam a ideia de uma recente civilização cristã, que ainda convive e até mesmo flerta com o paganismo.

Ingeri

A selvagem Ingeri representa o pecado (Foto: Reprodução)

Enquanto a grávida Ingeri personifica o primitivismo e as falhas da natureza humana, o contraponto é a virgem cristã Karin (Birgitta Pettersson), a quem Bergman realça a beleza, transformando-a em um ícone de perfeição, pureza e inocência. Venerada pelos pais Töre (Max von Sydow) e Märeta (Birgitta Valberg), Karin consegue, inconscientemente, fazer com que a mãe odeie o pai. A justificativa é a identificação da filha com a figura paterna.

Os atos dos personagens parecem determinados por uma cortina de fé absoluta, às raias do fanatismo. Mas tudo começa a mudar quando Töre pede a Karin para levar velas para a missa. Ao longo da viagem, a frágil donzela é ludibriada por um grupo de pastores pagãos que a contagia com boa música campesina. Mais tarde, se revelam criminosos e a moça é estuprada e assassinada de forma impiedosa.

O crime acontece na primavera, que marca o fim de um período de trevas, segundo o folclore escandinavo. Conforme a estação do ano ilumina a natureza, transformando tudo em um paraíso multicolorido, o sacrifício de Karin joga luz sobre os maiores defeitos de uma família cristã. A antológica cena em que o pastor pagão esmaga as velas da jovem virgem é uma metáfora sobre a rejeição do cristianismo por uma parcela da população sueca.

Jungfrukällan é um filme que impressiona pela expressividade do elenco e por propor dúvidas de ordem metafísica. Bergman aborda fé, morte e redenção em um contexto onde há momentos em que os personagens mesmo calados e imóveis transmitem sentimentos. Em contrariedade, também os apresenta frios e protegidos por uma formalidade que visa manter as aparências e velar as imperfeições.