Archive for the ‘Inocência’ tag
Tião e Tonho
O menino viu o pai entrando no barracão com uma foice. No cabo, um pedaço de fita isolante. Era com ela que fazia tantos bichos gritarem antes de desaparecerem, deixando um curto rastro de sangue grosso. Tão grosso que se misturava à terra e se transformava num caminho, caminho para lugar nenhum.
Tião se esforçou para chacoalhar a porta de madeira, que rangia, mas não cedia. “Sou fraco demais”, monologou o menino fazendo bico.
— Deixa eu entrar, pai, deixa eu entrar!
— Não! Vá pra dentro com seus irmãos que tenho serviço pra fazer.
— Por favor, pai! Eu imploro. Me deixe, me deixe entrar! Não vou atrapalhar…
Tião sentou no chão de terra e começou a chorar observando o céu anilado.
— Aqui tá azul, mas lá dentro deve tá vermelho. O pai não me engana. Tá fazendo maldade de novo.
Cochilou depois de tanto bater em vão na tábua velha que servia de apoio para as costas. Sonhou que a porta se abriu. O pai acariciava Tonho. Ninguém gritava ou mugia. O silêncio, como o desejo, resplandecia. O boi inclinou a cabeça e Tião deu-lhe um abraço.
Sentia a respiração morna de Tonho, seus olhos escuros e vibrantes. Serenidade e ânsia, pela vida que não se esvaía. O suficiente. De repente, o boi correu em disparada. O pai não conseguiu alcançá-lo. Duas grandes folhas de bananeira caíram sobre o lombo de Tonho e transformaram-se em asas. O boi voou, voou tão alto que desapareceu entre as nuvens.
Tonho acordou com o último mugido. Pungente, abafado, pesaroso. Acabou. Bateu novamente na porta do barracão. O pai abriu.
— Tá, você queria ver, então veja. Não vou mais esconder nada.
O homem saiu com as mãos ensanguentadas.
Cabeça de um lado, corpo do outro. Um no chão, outro na mesa de angelim. É o fim. Baldes de lata cheios de carmesim.
Para o menino, nada mais existia, somente Tonho que repousava a cabeça sobre a terra arenosa e fria.
— Você tá bonito, Tonho. Te vi voando no céu agorinha. Sua boca tá seca. Você deve tá com sede.
Pegou uma pequena bacia branca, colocou água fresca e a derramou sobre a boca do boi. Olhos fixos. Não reagia.
— Entendi. Você tá muito cansado. Amanhã a gente brinca.
“Agora fiquei até com vontade de ser pai”
Em uma loja, enquanto eu aguardava atendimento, observei um bebê em um bebê conforto ao lado do balcão. Tão lindo com aqueles olhinhos serenos e geometricamente redondos de anime. Sorria sem parar enquanto balançava as mãozinhas e as perninhas curtas simulando bicicletinha. Lindo de ver! Expondo o umbiguinho para fora da camisetinha verde com estampa do Hulk. Vez ou outra, soltava algum gritinho suave, empolgado observando coelhinhos de pelúcia pouco acima de sua cabeça.
— Que linda inocência! Que beleza de criança! Que doçura!
— Agora fiquei até com vontade de ser pai. Que coisinha linda e hipnotizante.
O bebê continuava simulando bicicletinha. Um verdadeiro atleta.
— Esse vai gostar muito de se exercitar. Não tenho dúvida disso!
Fui surpreendido. A criança sorriu pra mim, um daqueles sorrisos raros de comerciais de TV, do tipo enviesado.
— Preciso ser pai, cara! Quero isso na minha vida – monologuei.
Ainda bem que ninguém percebeu que falei mais alto do que imaginei.
Era incrível ver aquele pequeno ser cheio de vida, de vontade de existir. Um mundo de infinitas possibilidades se abria diante dele.
— Esse vai conquistar o mundo, parece bem peculiar.
— Nossa! Preciso ser pai, cara! Isso é demais!
De repente, os olhos da criança mudaram, enturveceram. Pressionou uma mãozinha contra a outra, como se estivesse prestes a esmagar os próprios dedinhos. As bicicletinhas d’antes se transformaram em golpes violentos no ar.
O semblante não era o mesmo. Quem era aquela criança que tomou o seu lugar?
Me afastei a passos cuidadosos quando o bebê começou a gritar e a dar violentas cabeçadas no bebê conforto. Uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove cabeçadas consecutivas.
— Diabeisso! O que está acontecendo aqui? — pensei, mas não falei.
Preocupado, olhei em volta. Ninguém me olhava. Ainda bem. Assim ninguém acharia que tive algo a ver com a infanta fúria. A criança berrava cada vez mais alto. Que vozeirão sinistro!
— Desse jeito, vai cantar death metal – concluí.
Eu não sabia mais se me afastava ou se me aproximava. Por pouco, a criança não vira o bebê conforto com a força das cabeçadas e dos chutes no ar. Até que sua mãe chegou.
— Não quero mais ser pai. Deixa quieto.
E a vontade passou.
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O policial e a criança
No mercado, vi uma cena que me chamou a atenção enquanto eu estava na fila do caixa rápido. Um policial militar escolhia alguns pães quando um garotinho, acompanhado do pai e da mãe começou a sorrir efusivamente. Consegui ver seus olhos cintilando mesmo eu não estando tão perto.
A mãe e o pai cumprimentaram o policial e falaram que a criança sempre teve grande admiração por policiais. Dava para ver no rosto do garotinho que a figura do policial para ele é a de um herói. Acanhado, mas lisonjeado, o rapaz fardado balançou a cabeça e disse poucas palavras. Nem precisaria dizer nada. A expressão compenetrada e sisuda de antes desapareceu com a chegada do menino.
O sorriso da criança o desarmou. E ele também começou a sorrir sem parar, olhando para a criança e vez ou outra mirando os pais com seus olhos encalistrados. O menininho pediu para dar um abraço no policial e ele concordou. Agachou e envolveu a criança nos braços por alguns segundos.
Mesmo depois que o casal e o filho partiram, o policial continuou sorridente, passou por mim sem conseguir velar o sorriso. Continuava tímido, translúcido, feliz e provavelmente agradecido por um presente inesperado que o impediu de retomar a expressão circunspecta.
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Minha mãe conta…
Minha mãe conta que quando eu era criança, não sei exatamente a série, a professora de matemática me perguntou se um dia eu não gostaria de ganhar muito, mas muito dinheiro. Hesitei por um instante, na minha inocência característica, e respondi:
— Não, num quero!
— Mas por que não, David?
— Porque vou ter que parar de brincar só pra juntar papel.
O riso das crianças
Saí para correr há pouco, e depois de cinco quilômetros encontrei um Monza parado no meio da rua. Então ajudei um senhor a empurrá-lo por pouco mais de um quilômetro. Nesse ínterim, duas crianças, provavelmente suas filhas, brincavam que também empurravam o veículo enquanto me olhavam, se entreolhavam e gargalhavam com bonomia. Não sei se riam da minha barba ou de algum outro aspecto da minha aparência. Sem saber o motivo, ou mesmo me importar com isso, comecei a rir também, porque sei que esse tipo de espontaneidade é uma das joias da infância.
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Pedrinho e as sardinhas
Pedrinho chegou em casa e, enquanto mexia nas sacolas de compras que sua mãe trouxe do mercado, viu que havia algumas latas de sardinha. Ele as retirou e escondeu dentro de uma gaveta. Quando seus pais saíram, pegou a maior bacia que encontrou na lavanderia e a encheu de água. Depois abriu as três latas e despejou as seis sardinhas na bacia.
Como elas não reagiam, simplesmente afundando na água, ele criou pequenas ondas com as mãos. A água começou a enturvecer, se misturando ao óleo que se soltava dos peixes sem cabeça. Pedrinho chorou e movimentou a água com mais força. Enquanto as lágrimas escorriam pelo queixo, uma das sardinhas se desfez na água, como se esfarelasse, se dividindo em centenas de pequenos fragmentos.
Com as mãos engorduradas de óleo e já cansado, o menino deitou do lado da bacia e adormeceu, sonhando com peixes que saltavam das latinhas nos expositores do mercado e atravessavam a cidade em direção ao ribeirão. Quando seus pais chegaram em casa, ficaram chocados com a cena e perguntaram o que Pedrinho estava fazendo: “Achei que se colocasse na água, suas cabeças cresceriam e elas voltariam a viver.”
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Paulinho e a fazendinha das abelhas
“Cadê o dourado do sol cobrindo a fazendinha das abelhas?”
Até os sete anos, a maior alegria de Paulinho era acordar cedo para comer algumas bolachinhas de mel, tomar um copo de suco de laranja e sair para brincar com os amiguinhos. O doce sabor do alimento fazia sua língua acidular. Com satisfação, ele sempre dizia: “Eita, delícia!”
Iogurte com mel, banana com mel, panqueca com mel, bolo de mel, torta de mel e bala de mel. Tudo que tinha o néctar das abelhas o alegrava. E depois de comer, não era raro o garotinho ludibriar os pais, fugindo da obrigação de escovar os dentes. Entrava no banheiro, fechava a porta, molhava a escova de dentes e a esfregava contra a palma da mão esquerda, fazendo barulhinho ardiloso.
Após dois ou três minutos, saía de lá sentindo-se vitorioso, roçando a língua entre os dentes e absorvendo o aroma de mel da própria boca. “Amo mel! Queria que minha boca nunca perdesse o cheiro de mel”, refletia copiosamente.
E era verdade. Paulinho gostava tanto de mel que seu quarto foi decorado como se fosse a mais romanesca das colmeias. Havia abelhas e zangões bem pintados nas quatro paredes. Sobre a cômoda, repousavam alguns espécimes elétricos – todos sorriam. O destaque era um zangão de brinquedo que voava perdido num voo sem sentido, porém divertido.
Em seu mundinho era impossível conceber a ideia de que abelhas e zangões não fossem felizes. E as maiores provas estavam nos desenhos animados que assistia, nos livrinhos que o apraziam e nas histórias em quadrinhos que o satisfaziam. Tudo parecia tão belo.
Paulinho acreditava que as abelhas davam mel às pessoas em troca de algo que ele ainda não tinha descoberto o que era. “O que será que elas ganham? Tem que ser algo muito mais gostoso do que mel. Será que existe?”, monologou. Um dia, se surpreendeu quando seu amiguinho Inácio contou que seu pai descobriu a localização de uma fazenda de mel.
— Vamos dar um jeito de ir lá ver como é, Inácio. Agora fiquei curioso.
— Eu também, Paulinho. Já sei! Vamos inventar uma história pra conseguir visitar esse lugar.
Para convencer sua mãe a levá-los até a fazenda apícola, Paulinho disse que a professora deu um trabalho sobre a vida das abelhas. “Depois ela quer que a gente escreva sobre tudo que vimos lá”, justificou. Como ele jamais tinha mentido, a mãe estranhou a tarefa, mas não o questionou.
O primeiro sinal de estranhamento dos meninos surgiu quando eles perceberam que a fazenda não era tão colorida como nas historinhas infantis. Parecia opaca demais para ser real. Não havia nenhum tipo de brilho no local, somente dezenas de caixas velhas e sujas de madeira rodeadas por árvores fragilizadas, com galhos secos que se inclinavam como se suplicassem pelo despertar da vida em suas mais variadas formas.
A terra nua persistia áspera, arenosa e rala, onde poucas porções de gramíneas se esforçavam para brotar do chão choroso.
– Cadê o girassol e o dourado do sol cobrindo a fazendinha das abelhas? Por que tem pessoas aqui e nenhuma abelha veio receber a gente?
— É mesmo, Paulinho! E que roupa estranha é aquela que tão usando ali?
— Acalmem-se, meninos! É cedo ainda para começar a reclamar.
Logo um homem carregando uma máscara se aproximou para recebê-los. Era o administrador da Fazendinha Douradina, de onde saía o mel que Paulinho tanto apreciava.
— Vieram conhecer nosso trabalho? Sejam bem-vindos, meus amigos!
— Cadê as abelhas?, questionou Paulinho sem titubear.
— Elas estão naquelas caixas ali.
— Ué, mas cadê a colmeia? Aquilo não parece uma, reclamou Inácio.
Sem saber o que responder, o homem desconversou e os convidou para irem até a área industrial da fazenda, onde o mel era processado e embalado. Antes de segui-lo, Paulinho não gostou de ver pessoas manipulando as abelhas nas caixas. Quanto mais eles mexiam, mais os insetos ficavam agitados. Paulinho e Inácio sentiram o desconforto das abelhas através da frequência dos zunidos.
No depósito, enquanto passeavam por expositores com milhares de potinhos de vidro, que traziam na embalagem abelhinhas felizes voando sobre um caldeirão de mel, Paulinho perguntou onde era o banheiro. Disfarçadamente caminhou até um senhor que observava o trabalho da equipe de apicultores.
— Você sabe o que eles estão fazendo ali?, perguntou Paulinho.
— Sei sim. Estão se preparando para substituí-las. Com esse calor e trabalhando na produção de mel, as operárias cansam muito rápido, não vivem mais do que 45 dias. Vão trocar também a Rainha porque ela fez dois anos e está colocando menos de dois mil ovos por dia. Inclusive já devem ter achado as “realeiras”. É difícil evitar que elas morram nesse processo, revelou o motorista da Fazendinha Douradina.
Paulinho ficou surpreso, sentiu os olhos fumegantes e se esforçou ao máximo para não chorar. Seus lábios tremiam e ele não conseguiu desfazer o bico. Sensibilizado, o homem se arrependeu de ter contado a verdade.
— Não, filho! Não é bem assim. Não fique triste, por favor!
De repente, Paulinho sentiu uma leve picada na panturrilha. Quando se agachou, viu uma abelhinha estonteada desfalecendo sobre o chão calcinado. Junto dela, contou mais sete, oito, nove, dez abelhas mortas.
— Nunca mais vou comer nada com mel! Juro por tudo!, berrou o menino antes de correr até os caixotes e derrubar um por um com as próprias mãos nuas. Contrariando todas as probabilidades, as abelhas não atacaram Paulinho, simplesmente partiram voando e zunindo, deixando para trás tudo que produziram.
Quando os apicultores perseguiram o menino, o motorista gritou:
— Não! Deixem ele! Toda criança tem razão porque sua ação vem da pureza do coração.
Cansado, Paulinho deitou ileso numa porção de relva que parecia ter brotado naquele momento, aspirando à vida que ele assistia preenchendo o céu em forma de abelhas. Parou de lacrimejar e sorriu, levantando as mãos para o firmamento, onde o zunido da última abelhinha foi interpretado por ele como um tipo de agradecimento.
O suposto motorista era na realidade o dono da Fazendinha Douradina. Ele não repreendeu Paulinho. Também não se queixou com a mãe do menino. Muito pelo contrário, o agradeceu. No final da tarde, não havia mais abelhas nem mel no local. Pela primeira vez em 20 anos a fazenda fez jus ao próprio nome, quando a luz inédita do sol dourou tudo que renascia sob o canto de um rouxinol.
Curiosidade
“Realeira” é uma grande célula de onde emerge a nova rainha.
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Tazinha e a galinha Jurema
Aquele molho envolvia partes de um ser idêntico àquele que corria pelo quintal com o viço de uma criança
Tazinha chegou em casa e encontrou uma galinha. Ela nunca tinha visto uma de perto, a não ser descaracterizada dentro de uma panela, dividida em peito, pés, coxas e outras partes que depois de consumidas davam a impressão de que o animal reduzido a alimento jamais existiu.
Com cinco anos, Tazinha não imaginava que aquele molho vermelho e borbulhante cobrindo fatias grossas de batata-inglesa envolvia partes de um ser idêntico àquele que percorria o quintal com o viço de uma criança. Quando viu a garotinha de olhos amendoados e graúdos, a galinha se escondeu atrás de um pedaço de capoeira e cacarejou, mantendo os olhos castanhos e vibrantes bem esgazeados. Também abriu as asas mescladas de preto, amarelo e branco e esfregou os pezinhos em uma porção de terra arenosa, fazendo poeirinha.
Para conquistar a ave, Tazinha correu para dentro de casa e perguntou: “Mãe, o que a galinha come?” Então caminhou até a despensa, afundou a mãozinha em um fardo de ração com cheiro de farelo de milho e se apressou em direção ao quintal, arrastando os chinelinhos e deixando um rastro louro como o sol daquela manhã de verão. Ainda desconfiada e hesitante, a galinha a assistiu estendendo as mãos e os farelos deslizando entre os vãos de seus dedos miúdos. Tazinha sorriu apreensiva. Não sabia se devia se aproximar mais ou simplesmente lançar o que restou da ração sobre o chão de terra batida.
Tomou uma decisão. Se ajoelhou, fez um coraçãozinho na terra com o dedo indicador da mão direita e o preencheu com os farelos. Logo que a galinha deu o primeiro passo, Tazinha recuou quase 20 metros, sentou à sombra da jabuticabeira e assistiu a ave se alimentando. Vez ou outra, erguia a cabeça e observava a criança. “Seu nome vai ser Jurema”, disse antes de engolir uma jabuticaba e enterrar a casca. A galinha a olhou rapidamente, cacarejou e continuou comendo, sem levantar a cabeça. Depois daquele dia, sempre que Tazinha corria até o quintal, Jurema a aguardava.
Balouçava as asas e caminhava até a garotinha que a abraçava e acariciava suas penas com o dorso da mão direita. Tazinha sentia cócegas quando a galinha se espichava, esfregando a plumagem contra o seu pescoço. Sua gargalhada era tão alta que atraía a atenção de vizinhos curiosos que penduravam no muro para ver o que estava acontecendo. Em menos de uma semana de convivência, Jurema começou a presentear Tazinha com preciosidades que ela encontrava no quintal.
“Que linda, Jurema!”, comentou assim que a galinha abriu o bico e lançou uma pedrinha colorida na palma de sua mão. Com os presentes, Tazinha fez um colar. Numa noite, quando seus pais questionaram o porquê dela nunca tirá-lo do pescoço, ela respondeu: “Ué, porque a Jurema é minha melhor amiga e quero sempre sentir ela pertinho de mim. Ela teve tanto trabalho pra juntar as pedrinhas.”
Tazinha gostava tanto da galinha que após muita insistência seus pais permitiram que ela levasse Jurema para passear pelas ruas pelo menos três vezes por semana. “Ela também quer se divertir”, justificava, crente de que sua amizade com a galinha seria eterna, e que as duas nunca se separariam. Porém, quando a galinha estava perto de completar seis meses, ela ouviu uma conversa que a entristeceu:
— A galinha que meu irmão deu tá ficando velha, quase seis meses de vida já. Se demorar mais, passa do ponto. E o Alberto chega no final de semana e quer galinha caipira ao molho pro almoço de domingo – disse o pai.
— Meu Deus! E o que vamos falar pra Tazinha? – perguntou a mãe.
— A gente arruma outra galinha pra ela – respondeu o pai.
Desesperada, Tazinha correu até o quintal, pegou a Jurema, a levou até o seu quarto e a escondeu dentro do guarda-roupa, onde passou a noite abraçada com a galinha. Pela manhã, seus pais ouviram um som suspeito vindo do quarto. Encontraram Tazinha chorando e acariciando as penas de Jurema que se mantinha em silêncio, com o bico recostado em seu ombro.
— Por favor! Não mata ela! Eu não sabia que a carne da panela vinha dos bichos. Olha, a Jurema anda, brinca e fica assustada que nem a gente. Coloca a mão aqui, pai! Coloca, mãe! Dá pra sentir o coraçãozinho dela batendo forte. Não mata ela! Por favor! Ela só quer viver!
No domingo, quando Alberto, tio de Tazinha, chegou para o almoço, ele se aproximou do fogão e ergueu a tampa da panela. “Mas que cheiro delicioso é esse, cunhada? Que maravilha!”, declarou. Lá dentro, o molho vermelho borbulhava, exalando olência da combinação de batata, cebola, alho, cebolinha, salsinha, tomate, páprica, azeite e folhas de louro. No quintal, Tazinha amarrava uma fitinha no pescoço de Jurema antes de alimentá-la com um pouquinho de ração.
— Por isso, você me olhou assustada no primeiro dia que te vi. Desculpa! Não precisa mais ter medo, Jurema. A gente nunca mais vai comer carne aqui em casa. Prometo!
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O livreiro da Rua Artur Bernardes
De longe, ele parecia um personagem suspeitoso, saído de uma das histórias de Charles Dickens
Pelo menos uma vez por mês, o livreiro João Romani passava em casa, na Rua Artur Bernardes, quando eu tinha nove anos. Por entre os galhos da sete-copas, eu o via atravessando a Rua Silvio Meira e Sá Bezerra e descendo em minha direção, carregando a mesma mala acastanhada, adornada com nomes de dezenas de escritores.
De longe, ele parecia um personagem suspeitoso, saído de uma das histórias de Charles Dickens. Não tinha mais de 35 anos, estatura mediana, pele cor de oliva, um andar peculiar e se vestia como um homem da década de 1920, com seu chapéu fedora cuidadosamente alinhado e paletó cinturado. Junto à mala, sempre trazia um guarda-chuva que podia ser desmontado e usado como bengala.
Quando o conheci, ele estava no portão de casa conversando com minha mãe, oferecendo uma coleção de 16 volumes da Enciclopédia Barsa. Conforme o livreiro falava, num crescente paroxismo, tudo ganhava vida e se tornava mais importante do que realmente era. Ele sorria, gesticulava e movia os pés de um lado para o outro, fazendo da apresentação da enciclopédia uma performance teatralmente didática.
E foi assim que João Romani a convenceu a comprar a coleção numa negociação mais motivada pelos seus métodos de venda do que pela qualidade do produto. Seu poder de convencimento talvez só não superasse suas qualidades humanas mais virtuosas. E naquele dia, ele pediu autorização da minha mãe para descansar por alguns minutos na varanda. Ela consentiu sem pestanejar.
Convidado a entrar, ele sentou em uma cadeira com cordas de nylon e minha mãe foi até a cozinha buscar uma xícara de café enquanto a garoa resplandecia serena sobre o nosso jardim. Antes de abrir a mala, tirou o chapéu da cabeça e o manteve sobre a ponta do guarda-chuva escorado na grade da janela. Ajeitou os cabelos castanhos e ondulados e perguntou meu nome. Respondi e ele deu um grito entusiasmado:
“Uau! Estupendo! David! Será que se seus pais escolheram seu nome por causa do jovem David Copperfield? Você conhece a história dele?” Sorri e, entusiasmado com o seu carisma, questionei se ele falava do mágico ou do menino. “Isto! O menino!”, comentou. Com a simplicidade inerente às crianças, relatei que ele era órfão e sofreu muito porque vivia sozinho no mundo. Apesar disso, acreditava no ser humano, em um mundo melhor.
Muito bom! Sabe de uma coisa, David? Sou de origem romani, cigana, e nós nunca acreditamos que nomes são escolhidos ao acaso. Tenho certeza que o seu diz muito sobre quem você é e vai ser. David Copperfield era extremamente perseverante, um sonhador, e embora eu tenha conhecido você há pouco, acredito que você também será assim. Este nosso encontro tem um significado especial que um dia talvez faça mais sentido na sua vida – declarou o livreiro com uma expressão enigmática que destacou ainda mais seu rosto quadrado e seus olhos grandes e amendoados como o fruto da sete-copas.
Tão rápido minha mãe retornou com o café, João Romani agradeceu e o bebeu em silêncio, observando Happy e Chemmy brincando no jardim, rolando na grama úmida, com olência de jasmim, e teimosamente saltando sobre o canteiro de plantas. Com olhar curioso, o livreiro sorria diante do espetáculo da vida cotidiana. Perscrutava com tanto rigor o trivial que até a mais ordinária das cenas parecia transmitir algo de surreal.
Quando ameacei tirar Happy e Chemmy da grama, evitando que se sujassem mais, ouvi um som duplo e sincronizado. O livreiro estava abrindo a mala. No mesmo instante, me afastei dos dois poodles e me aproximei, intrigado em saber o que ele carregava.
“Olhe, vou contar um segredo. Não costumo mostrar para ninguém o tesouro que carrego comigo, mas como acredito que você seja um genuíno David Copperfield, sei que não há problema”, argumentou, em seguida pedindo que eu fechasse os olhos e estendesse os braços. Logo senti algo plastificado entre meus dedos pequenos.
Sobre as minhas mãos estava um exemplar esmerado de David Copperfield. A capa era esverdeada e trazia instigantes ilustrações das aventuras vividas pelo jovem órfão. Embora eu não entendesse em profundidade a importância daquele momento, fiquei muito feliz em segurar a obra nas mãos. E o semblante de Romani deixou subentendido que eu estava diante de uma oportunidade inestimável.
“É diferente do livro da Escola São Vicente de Paulo. Parece que esse é mais velho e menos colorido. Lembra uma revista antiga, uma cartilha”, comentei sem velar a inocência. O livreiro deu uma breve gargalhada, tirou a obra da embalagem que a protegia e pediu que eu lesse o que estava escrito na capa. “O senhor me desculpe, não sei tanto assim de inglês”, justifiquei. Então ele explicou que não era para eu ler tudo e me mostrou o ano grafado – 1849.
Aquela era a primeira edição de David Copperfield, o maior tesouro da família de João Romani. Seu bisavô Vladimir recebeu o exemplar das mãos do próprio Charles Dickens pouco tempo após o lançamento. “Ele fugiu para a Inglaterra em 1846 e mais tarde conheceu o autor na esquina da Editora Bradbury e Evans, em Londres. Meu bisavô trabalhava como engraxate, e um dia Charles Dickens conversou com ele. Se não me falhe a memória, falou o seguinte antes de entregar David Copperfield: ‘Aqui está uma semente. Quem sabe se torne um presente’”, narrou o livreiro sorrindo.
O jovem cigano encontrou Dickens mais três vezes. No último encontro, o autor fez o garoto de 15 anos chorar quando comentou que talvez tivesse escrito uma história melhor se David Copperfield fosse baseado na vida de Vladimir. Nascido na Romênia, o bisavô de João Romani foi um serf, escravo de um boiardo valaquiano – aristocrata da Transilvânia. Órfão, passou a maior parte da infância realizando serviços domésticos e trabalhando no garimpo em troca de comida, até que um dia conseguiu fugir.
Mesmo ainda criança, fiquei boquiaberto com o relato, e a desenvoltura do livreiro garantia mais realismo à história. O exemplar de David Copperfield, que segurei com as duas mãos, tinha uma dedicatória, e o nome de Vladimir escrito por Charles Dickens figurava sobre o nome do protagonista, num singelo gesto de afeição.
Houve um momento em que o notei com os olhos marejados, se esforçando para não lacrimejar. Fez tanta força que as veias do pescoço saltaram e revelaram uma tatuagem discreta, porém vivida, perto do pescoço. Era baseada em uma combinação de cores que não consegui identificar. Não havia desenho, somente duas palavras – Pacha Dron que descobri há alguns anos que significa O Caminho da Vida.
Logo que a garoa se dissipou, João Romani embalou novamente David Copperfield e o ajeitou dentro da mala com o mesmo esmero que uma mãe dedica ao filho na hora de colocá-lo para dormir no berço. Quando a mala se fechou, senti um ar morno e fugaz acariciando minhas maçãs. O livreiro se levantou, se despediu da minha mãe e eu o acompanhei até o portão. Lá fora, ele estalou os dedos, apontou para mim e falou: “Até logo, David Copperfield!” Deu uma piscadela e desceu a Rua Artur Bernardes como um singular personagem. Se na vinda, e de longe, ele me parecia um tipo de Uriah Heep, na volta, mais lembrava um híbrido de Ham Peggotty e Dr. Strong.
João Romani me visitou ao longo de um ano. Independente de clima e tempo, ele sempre retornava. Um dia, chovia muito quando o livreiro bateu palmas em frente de casa – estava encharcado, desprotegido pelo próprio guarda-chuva tornado arredio pela violência das águas. “Compromisso é compromisso!”, alegou sorrindo. Depois de ouvir uma boa reprimenda de minha mãe, dessas que os pais dão nos filhos mais travessos, ele velou o riso e aceitou cabisbaixo o reproche, até que começamos a rir.
Afeiçoado a um ofício que entrou na sua família por meio do seu bisavô Vladimir, sua maior satisfação era percorrer as ruas vendendo livros. Para ele, nada era mais importante do que o prazer de contar histórias e despertar sensações. Em uma ocasião, quando foi assaltado, entregou todo o dinheiro e se debruçou sobre a mala no meio do asfalto, protegendo os livros; até que os bandidos desapareceram como se nunca tivessem se aproximado dele.
No nosso último encontro, perto do Natal, João Romani me deixou como guardião de uma caneta Fountain que seu bisavô entregou ao seu avô horas antes de falecer. “David Copperfield, essa caneta foi usada por Charles Dickens no rascunho de Grandes Esperanças. Qual maior exemplo de esperança do que ter nas mãos algo que existe desde 1860 ou até antes? Pois é…”, enfatizou. Aquela foi a última vez que vi o livreiro para quem ainda guardo a Fountain.
Oxalá, quando a realidade cessar de existir para mim, como as sombras vaporosas de que a minha imaginação se separa voluntariamente nesta ocasião, eu possa encontrar o que há de verdadeiramente mais importante ao pé de mim, com o dedo levantado a apontar-me o céu! – escreveu Dickens em David Copperfield, num trecho transfigurado por mim.
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“Ô tio, não leva meu pai! Por favor!”
Há um tempinho, após uma entrevista, saí de uma residência no Conjunto Dona Josefa, na periferia de Paranavaí, e lá fora fui abordado por uma criança que morava na casa vizinha. “Ô tio, não leva meu pai! Por favor! Não leva ele hoje. Ele não teve nem tempo de ficar com a gente”, disse o garotinho de quatro anos com olhos marejados.
Enquanto falava, a criança usava sua trêmula mão esquerda para segurar sem jeito dois dedos da minha mão direita. Expliquei a ele que eu não estava atrás do pai dele. “Por favor, tio! Por favor, deixa ele com nós! Hoje é meu aniversário! Juro que nunca mais faço arte na minha vida!”, continuou repetindo. Depois cruzou os dedos indicadores das mãos e os beijou num estalo sem igual fazendo promessa em forma de sinal.
Só se acalmou quando mostrei meu caderno, meu gravador e minha caneta. O garotinho sentiu um alívio tão grande que seu sorriso se transformou em uma gargalhada. De repente, começou a saltar sobre um pedaço de toco queimado rente ao portão.
Ele estava eufórico e queria dividir isso até com quem não notava sua existência por causa da pequenez. Quando parou de pular, ficou rubro de vergonha e correu para dentro de casa arrastando um par de chinelinhos com elástico junto aos calcanhares. Naquela noite, mais do que uma festinha, ele teria seu pai dormindo em casa.