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A sorte e o azar de dois irmãos
O bicho saltou como um João do Pulo canino e correu em nossa direção
A pequena diferença de idade entre mim e meu irmão mais velho, Douglas, permitiu que até certo momento da vida partilhássemos experiências, brinquedos e amigos. Mas desde o princípio começamos a desenvolver necessidades e traços de personalidade bem específicos. Enquanto eu mamava o suficiente, meu irmão mamava gulosamente. Eu era ansioso, meu irmão era calmo. Eu gostava de vermelho e ele preferia preto.
Ainda assim éramos inseparáveis na infância. E isso começou muito cedo, quando eu era bebê e minha mãe levava eu e meu irmão para passear. Claro, eu ia deitado no conforto do carrinho e o Douglas ia atrás, apoiado em um estribo. Quando minha mãe não estava olhando, ele puxava meus cabelos. A ideia de eu ainda ser um bebê e ter mais cabelos o irritava, fora o fato de que eu nunca precisava caminhar. No fundo, acho que ele me via como um pequeno mentiroso que fingia não saber andar para não dividir o espaço no interior do carrinho.
Como fazíamos praticamente tudo juntos, naturalmente nos tornamos amigos das mesmas pessoas. Por volta dos meus sete anos, o nosso grande companheiro era um garotinho agitado chamado Fabiano, filho da dona Maria Bortolotto, a proprietária de um bar que ficava na Avenida Distrito Federal, em frente ao Posto Atlantic, em Paranavaí. Ela tinha pulso firme com os adultos, tanto que deixava embaixo do balcão um taco de beisebol com a palavra “juízo” gravada em caixa alta, o que impedia brigas e afastava bêbados. Com as crianças o tratamento era diferente. Dava paçoca, paçoca e paçoca. Quero dizer, muita paçoca dos mais diferentes tipos, o que aplacava e depois amplificava a minha ansiedade.
Em 1992, brincávamos em obras abandonadas. Eu aproveitava os buracos nas paredes para escalar. Quando havia montanhas de areia lavada em torno do imóvel, subia no ponto mais alto e saltava afundando até metade do corpo. Fingia que estava em um poço de areia movediça e simulava pedir ajuda. Cada dia era uma aventura diferente. Às vezes não queríamos ir muito longe e ficávamos ao lado de casa, no depósito de pedras da minha mãe.
Lá, eu escalava uma árvore sete-copas e, aproveitando as sombras das folhas, sentava e comia com muita satisfação as suas castanhas amarelas e azedinhas. “Você é doido? Isso é comida de morcego!”, provocava Fabiano enquanto ria e se balançava sobre os galhos de uma amendoeira-da-praia. No entorno das árvores havia grandes montes de pedras portuguesas pretas, brancas, amarelas e vermelhas. Também saltávamos sobre as pedras, numa corrida maluca para ver quem conseguia se manter de pé por mais tempo. Paulinho, um rapaz contratado por minha mãe para cortar as pedras, só observava e nos repreendia, gritando e acenando de longe com uma luva grossa feita artesanalmente com borracha de pneu de caminhão.
A diversão era garantida, mas como o risco era grande a atenção tinha que ser redobrada. Uma vez, e por azar, meu irmão deu um passo em falso e caiu com a palma da mão sobre uma pedra pontiaguda branca. Enquanto o sangue escorria pelo monte, corri até em casa e avisei minha mãe. Após estancar o ferimento com gaze e esparadrapo, o levamos até o Pronto Socorro Municipal, onde ele recebeu alguns pontos na mão.
Para acalmá-lo, o lembrei de um episódio em 1991, quando estávamos em Inajá, a pouco mais de 60 quilômetros de Paranavaí. Naquele dia, minha mãe organizou uma festa para os funcionários que trabalharam na construção da Praça Central. Aproveitando a distração de nossos pais, eu, Douglas e uma amiga chamada Bianca pegamos algumas garrafas de cerveja e nos escondemos em cima de uma árvore. Depois do primeiro gole, me perguntei como uma bebida poderia ser tão ruim.
“Toma mais! Falam que é assim mesmo, o gosto demora pra ficar bom”, sugeriu Bianca. Acenei a cabeça em concordância e continuei tomando no gargalo. Antes do sabor melhorar, eu já estava embriagado. Fiquei tão zonzo que esqueci da árvore. Só tive uma breve retomada de consciência ao me ver em pé no chão. Sem entender como não caí sentado ou deitado, continuei segurando a garrafa com uma mão. Minhas pernas tremularam quando minha mãe me pegou pela orelha e me levou para o carro, onde passei horas deitado e confuso. Foi a minha primeira e última experiência com a embriaguez. Meu irmão que também consumiu cerveja saiu ileso do episódio, o que justificou os seus risos diante da lembrança após ter a mão suturada.
Dias depois, logo que a mão do Douglas cicatrizou e nossos pais viajaram para São Paulo, decidimos subir no telhado de uma residência vizinha que estava abandonada. O objetivo era colher drupas de santa-bárbara, que chamávamos de bolinha, para usar como munição nas nossas brincadeiras no quintal. Então começamos a balançar os galhos da árvore e de repente o telhado se rompeu. Eu, meu irmão e Fabiano caímos diretamente no chão da cozinha da casa.
Fabiano saiu ileso. Apenas mordi a língua e observei assustado um garrafão de cinco litros de vinho ao meu lado. Douglas não contou com a mesma sorte. Quebrou o braço e teve de ser levado pela minha tia Paula até a Santa Casa. Ao ser avisada, minha mãe se desesperou e voltou para casa. Apesar do braço engessado e das piadas dos amigos, ele não pareceu tão incomodado.
Na semana seguinte, em uma manhã de sábado, o tio Celso passou em casa para nos levar ao sítio. Em frente à Sanepar, a porta da caminhonete abriu e o Douglas caiu na rua. Com o braço engessado, saiu rolando rente ao meio-fio e gritando: “Espera eu, espera eu. Tô aqui!” Preocupado, Celso parou bruscamente o veículo e correu para socorrê-lo. Apesar das escoriações, das roupas rasgadas e do susto, meu irmão ficou bem.
Meses depois, saímos para brincar com meu primo Wilton. No caminho, assim que vimos um pé de manga em um terreno baldio, entramos e começamos a arremessar pedras para derrubar as frutas mais bonitas e saudáveis. Ao lado, na casa vizinha, um enorme pastor alemão não parava de latir, saltar e mostrar os dentes. Apesar do olhar ameaçador, não vi motivo para temê-lo, até porque o muro era muito alto, tão alto que nunca vi um cachorro saltar daquela altura.
De repente, quando derrubamos a terceira e mais carnosa das mangas, o bicho saltou como um João do Pulo canino e correu em nossa direção. Num reflexo que julgo até hoje como sobrenatural, subi na árvore com a agilidade de um leopardo. Meu irmão e meu primo não tiveram a mesma sorte, principalmente o Wilton que ganhou uma cicatriz permanente na perna. Até hoje acredito que o tal pastor alemão deu inúmeros saltos menores para nos encher de confiança, zombar de nossas limitações. Talvez aqueles dentes arreganhados fossem risos satíricos, aguardando o momento em que cada um estivesse empunhando uma manga.
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