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Por que os muçulmanos usam barba

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Segundo a lei islâmica, a barba só pode ser aparada quando atingir o tamanho de uma mão fechada

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Segundo Abu Darba, o profeta Maomé diz não ter nenhuma ligação com aquele que não tem barba (Foto: Reprodução)

No mundo todo, é grande o número de pessoas que não sabem o motivo pelo qual os muçulmanos usam barba. Foi pensando nisso que o Mufti Afzal Hoosen Elias, jurisconsulto e intérprete do Alcorão, escreveu o folhetim “Sobre o Comprimento da Barba”.

Nele, Elias explica que o uso da barba é uma forma dos homens sentirem-se mais próximos dos ensinamentos do profeta Rasulullah (Maomé). “Para aqueles que veem a barba como algo trivial, que Alá possa guiá-los. Mas para aqueles que desejam aprender e praticar o que é certo, tenho provas suficientes da importância da barba. E elas foram extraídas do Hadith, do Alcorão”, escreveu o Mufti Elias.

Nas palavras registradas por Abu Darda no Hadith 501, do Alcorão, o profeta Maomé diz não ter nenhuma ligação com aquele que não tem barba. Segundo os ensinamentos de Hadhrat Ammar Bin Yaasir, Abdullah Ibn Umar, Sayyidina Umar, Abu Hurairah e Jaabir, a barba deve ser cultivada longa. Somente durante o Haji ou Umrah, quando os muçulmanos peregrinam até a Meca, que eles aparam suas barbas, mas sem deixá-las menores do que o tamanho de um punho.

“Aqueles que imitam os descrentes e morrem nesse estado, se juntarão a eles no Dia do Qiyamat (juízo final]”, escreveu Hadhrat Abdullah Ibn Umar em referência aos que abandonam, por exemplo, a barba. Em relato de Ibn Umar, no Hadith 498, Rasulullah recomenda que os homens mantenham o bigode curto, mas deixem a barba crescer. Recomendação parecida aparece no Hadith 500.

Maomé diz também que nenhum homem sem barba tem direito ao perdão de Alá, de acordo com transcrição de Ibn Abbas. Além disso, a recomendação de Al-Tirmidhi, registrada por Ibn Umar, é de que a barba seja aparada somente quando ela atingir o tamanho de uma mão fechada.

No contexto do islamismo fazer a barba se enquadra como haraam, ou seja, um ato proibido pela fé islâmica. O Muwatta, uma das primeiras coleções do Hadith, escrito por Imam Malik, o primeiro sheik do Islã, diz que os únicos que não usam barba são os hermafroditas, ou seja, pessoas que possuem tanto o órgão sexual masculino quanto o feminino.

Para a Hanbali, uma das quatro escolas sunitas ortodoxas, referência em jurisprudência islâmica, o crescimento da barba é fundamental e cortá-la é pecado. Tal defesa pode ser encontrada em livros como “Sharahul Muntahaa” e “Sharr Manzoomatul Aadaab”.

“Um homem sem barba é um sujeito injusto e legalmente falando jamais seria concedido a ele o direito de ser um imã [um estudioso do Islã]”, consta na página 523 do primeiro volume do livro islâmico “Shami”. Para os fundamentalistas, muçulmanos sem barba não devem ter o direito de votar ou de se candidatar a algum cargo no contexto da Charia. “A chave para a felicidade total encontra-se em seguir a Sunnah e imitar a vida de Rasulullah no que diz respeito a tudo, incluindo sua maneira de comer, dormir e falar”, escreveu o Imã Ghazzali.

“Santo é o ser rodeado de homens com barba e mulheres com tranças”, consta na página 331 do terceiro volume de “Takmela e Bahr al Raiw.”

 Saiba Mais

Abu Darda era um dos companheiros do profeta Maomé.

O Hadith é o registro dos preceitos de Maomé.

Após o Alcorão, a Sunnah é a segunda fonte mais importante das leis islâmicas.

Referências

Elias, Agzal Mufti. From The Shari Length of the Beard.

http://www.islam.tc/beard/beard.html

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Written by David Arioch

September 30th, 2016 at 10:45 pm

Um ataque suicida por um lugar no paraíso

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Crianças e adolescentes respondem por 80% dos ataques terroristas no Afeganistão

Ataque a santuário em Cabul matou nove familiares de Tarana Akbari (Foto: Reprodução)

Ataque a santuário em Cabul matou nove familiares de Tarana Akbari (Foto: Reprodução)

No início de 2013, o jornalista canadense Shane Smith, um dos fundadores da companhia de mídia Vice, esteve no Afeganistão para produzir o documentário “The Killer Kids of the Taliban”, lançado em abril do mesmo ano. Na ocasião, teve a oportunidade de entrevistar muitas crianças e adolescentes convocados pelo Taliban para participarem de ataques suicidas. São jovens que só não morreram porque a Polícia Secreta Afegã conseguiu impedir que as bombas fossem acionadas.

Ainda hoje muita gente se pergunta por que o maior movimento fundamentalista islâmico do Afeganistão usa crianças em seus ataques terroristas. A reposta é simples. Os mais jovens passam pelos postos de segurança com facilidade e podem circular por qualquer lugar sem serem notados. O porta-voz do Diretório Nacional de Segurança (DNS) da Polícia Secreta Afegã, Lutfullah Mashall, disse a Smith que desde a invasão dos Estados Unidos o país registra todos os anos mais de cem ataques suicidas. Do total, pelo menos 80% são cometidos por crianças e adolescentes. “Eles são os preferidos do Taliban porque muitos são pobres, analfabetos e não conhecem de verdade o Alcorão”, revelou.

“The Killer Kids of the Taliban” é um documentário sobre a realidade dos jovens terroristas afegãos (Fotos: Reprodução)

“The Killer Kids of the Taliban” é um documentário sobre a realidade dos jovens terroristas afegãos (Fotos: Reprodução)

De acordo com Mashall, um talib, estudante do livro sagrado, é capaz de lutar e morrer pelo que acredita, mas jamais usaria um colete-bomba. “The Killer Kids of the Taliban” mostra que as crianças não têm real conhecimento das consequências de seus atos. “O imã Marouf [uma autoridade religiosa] nos disse para ir até a província de Logar e cometer suicídio. Ele falou: ‘Coloque as bombas em seu corpo e aperte o botão. Eles morrerão e você continuará vivo’”, relatou um garoto não identificado.

Entre os convocados pelo Taliban, há muitos jovens que não sabem que os coletes são explosivos. Alguns pensam que estão apenas transportando documentos. Em 2013, para se ter uma ideia da gravidade da situação, uma criança de seis anos conduziu um ataque suicida na Província de Paktika, a 244 quilômetros de Cabul. Com base nesses exemplos, o jornalista da Vice deixa claro que o poder de persuasão, mesmo baseado em mentiras, é a principal ferramenta do Taliban na hora de recrutar crianças e adolescentes.

O discurso de que é preciso ficar em frente a um hotel até a hora certa se repetiu muitas vezes. Normalmente, as bombas são acionadas por controle remoto quando chega algum comboio estadunidense, da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) ou Força Internacional de Assistência para Segurança (Fias). Um garoto afegão preso na sede do DNS, chamado Kanjar, recebeu treinamento quando estudava no Paquistão. Os próprios professores o ensinaram a cometer suicídio, afirmando que assim ele iria para o paraíso.

“Não tivemos tempo de ler o Alcorão o suficiente para entendê-lo. Só nos disseram que o suicídio era permitido e deveríamos nos preparar para o paraíso. Quando coloquei o colete, me perguntei por que eu iria explodir a mim mesmo?”, contou Kanjar que em um grande momento de tensão só pensou na possibilidade de ficar em pedaços. Depois de preso, o jovem percebeu que o suicídio não poderia lhe proporcionar nada de bom. Além disso, a prática é condenada pelo Alcorão. Embora esteja arrependido, Kanjar continua preso, acusado de crime hediondo.

Abdul, outro adolescente entrevistado por Shane Smith, justificou que quis colaborar com o Taliban porque soube que há muitos infiéis rasgando o Alcorão e o jogando na latrina. “Fiquei nervoso ao saber que o nome do profeta é profanado”, comentou. Abdul, que nunca leu o Alcorão, também recebeu treinamento para usar um colete-bomba, crente de que assim ganharia um lugar no paraíso. Na turma do adolescente havia centenas de garotos se preparando para cometer ataques suicidas.

Em 2013, pouco antes da chegada da equipe da Vice a Cabul, um santuário foi alvo de um ataque terrorista que matou 58 pessoas. Entre as vítimas estavam nove familiares de Tarana Akbari, uma garotinha que sobreviveu, mas ficou marcada por estilhaços da bomba. Naquele dia, o fotógrafo afegão Massoud Hossaini tinha ido ao local para registrar a procissão do flagelo com correntes. “Foi quando tudo aconteceu. Vi muitas pessoas correndo da fumaça e, de repente, ela desapareceu. Me vi cercado por cadáveres de crianças, mulheres, homens jovens e idosos”, explicou ao canadense. Hossaini testemunhou o momento em que Tarana começou a chorar e gritar.

Caída ao chão, a mãe de Tarana pediu ao fotógrafo para ajudá-la a pegar o seu filho, uma criança pequena. Um homem que estava mais próximo recolheu o menino do chão e viu que havia muito sangue saindo da cabeça. “Aí ele me disse: ‘Esse menino já foi’. O pôs no chão e simplesmente foi embora”, destacou Hossaini. Tarana enfatizou que os corpos caíram como se fossem ovelhas. No ataque terrorista, além do irmão, a jovem perdeu tias e primos.

“Todas as mulheres estavam lá, assim como muitas crianças. Era um santuário. Não havia um lugar melhor para eles atacarem, como um gabinete do governo? Eles atingiram só pessoas inocentes e indefesas!”, desabafou o pai de Tarana. Outro familiar questionou por que a Al-Qaeda está matando tanta gente no Afeganistão se isso vai contra tudo o que está no Alcorão. “Será que nunca leram o livro sagrado? Se tivessem lido, saberiam que não é permitido matar!”, disparou.

Mesmo com o intenso trabalho do Diretório Nacional de Segurança, que tenta evitar que jovens se tornem terroristas, a prática ainda é frequente e reincidente. Após o lançamento do documentário “The Killer Kids of the Taliban”, Shane Smith foi informado que dois garotos perdoados por serem jovens demais foram coagidos mais uma vez e flagrados se preparando para novos ataques.

Com um calmo tom de voz, um dos homens mais importantes do Taliban, Syed Mohammad Akbar Agha, um ex-jihadista e mujahidin que lutou contra os russos e comandou muitas tropas, deixou claro a Smith que enquanto os EUA estiverem no Afeganistão os ataques vão se intensificar cada vez mais. “Tudo vai Continuar. Não tenha dúvida”, garantiu. Quando o jornalista da Vice o interpelou sobre os ataques suicidas, defendendo que são condenáveis pelo Alcorão, Akbar Agha sorriu e respondeu apenas que o Taliban tem grandes muftis, estudiosos islâmicos, que reconhecem a legitimidade da prática.

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O brasileiro e o suposto atentado da Maratona de Boston

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O brasileiro precisa refletir mais com urgência

Mais uma vez, os supostos culpados são muçulmanos (Foto: Reprodução)

Mais uma vez, os supostos culpados são muçulmanos (Foto: Reprodução)

Tenho acompanhado de acordo com minhas possibilidades o suposto atentado da Maratona de Boston e com base em tudo que li até hoje, até mesmo por parte de estadunidenses e outros estrangeiros, ouso dizer que o brasileiro mediano consegue ser extremamente medíocre quando se trata da falta de análise crítica e profunda dos fatos. Que falta de bom senso e mínima capacidade reflexiva é essa que faz as pessoas acreditarem em qualquer informação divulgada pelos meios de comunicação mainstream de países de “Primeiro Mundo”?

Nem mesmo quem mora nessas nações costuma simplesmente absorver essas informações como se fosse apenas uma mera esponja, um receptáculo de pseudo-elucubrações. E ainda com conteúdo reproduzido copiosamente e com uma conivência surreal dos veículos de imprensa do Brasil que tratam os EUA como se fossem um país exemplar, o que não é. Claro, muitas vezes, a grana que os sustenta costuma vir de lá, principalmente de conglomerados comandados por magnatas sionistas. Curioso que os acusados do atentado em Boston são muçulmanos tchetchenos, não? Para citar um exemplo, o que será que Rupert Murdoch pensa a respeito do assunto?

Afinal, todo estadunidense sabe que recentemente ele tentou assumir o controle de toda a grande mídia dos EUA, o que só não foi possível por causa das limitações legais do oligopólio midiático. Claro, e não posso deixar de mencionar que esse mesmo líder das comunicações é um dos maiores incentivadores do Estado de Israel, inclusive financiando ações do governo que partem de Tel Aviv e Jerusalém.

Por que quando um meio de comunicação de um país pobre, subdesenvolvido ou que vive um sério conflito civil divulga algo sempre há brasileiros colocando em xeque o conteúdo, mesmo sem entender do que se trata? E ainda em um tom de superioridade que demonstra uma severa incapacidade de autorreflexão, para não dizer uma inclinação mais do que obtusa e falseada do pensamento “americanizado”.

Eu não diria que o brasileiro desinformado costuma ser apolítico, ele consegue ser pior que isso. Não se importa em aceitar tudo que lê sem questionar – e quando o faz prefere ser jactante e frívolo. Assuntos complexos envolvem sim abstração de raciocínio e exigem boa bagagem cultural. Criticidade e bom senso parte do princípio de que tudo que você lê deve ser avaliado cuidadosamente como um cardápio de restaurante. Ou seja, é imprescindível descartar aquilo que não faz bem ao nosso organismo.

Veteranos de guerra protestam contra a condenação do tchetcheno à pena de morte (Foto: Nicolaus Czarnecki/Metro)

Veteranos de guerra protestam contra a condenação do tchetcheno à pena de morte (Foto: Nicolaus Czarnecki/Metro)

Sinto vergonha ao ver tantos brasileiros reverenciando os EUA por terem encontrado os supostos acusados do atentado de Boston no dito tempo recorde. Há “leitores” dizendo que isso deveria servir de exemplo ao Brasil. E pior, vejo brasileiros divagando na superficialidade, admirando as fardas dos estadunidenses responsáveis pelo assassinato do jovem Tamerlan Tsarnaev (quando ainda era um suspeito, não um criminoso). Dizem que é algo que impõe mais postura e respeito. Vestimenta agora é uma alusão ao senso de justiça?

Se eu não for preguiçoso e quiser saber sobre o que realmente está acontecendo nos EUA, prefiro buscar informações e discutir sobre o assunto com pessoas que acompanham a mídia considerada independente, seja nacional ou internacional – formadores de opinião que não sejam de extrema direita nem esquerdistas radicais. E claro, sempre partindo da base de que em menor ou maior proporção os livros continuam sendo a melhor fonte de informação para entender esse tipo de situação.

Ainda considero Noam Chomsky uma importante referência para compreender as problemáticas mais extenuantes da Terra do Tio Sam – seja com relação a conflitos internos e relações internacionais. Outros nomes interessantes que posso citar por ora e do próprio EUA são Benedict Anderson, Bruce Bueno de Mesquita, Norman Finkelstein e Harold Lasswell.

Não sou Anti-EUA, muito pelo contrário, admiro muito a arte produzida por eles, mas simpatizo pouco com o sistema político daquele país e principalmente com os meios de comunicação “mais populares” que estão sempre inclinados sobre si mesmos – como se o mundo se projetasse ao redor da “América”.

 

Independência e sangue

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O que o mundo ignorou sobre a Guerra da Tchetchênia

Os enormes estragos da Guerra na Tchetchênia (Foto: Reprodução)

Os enormes estragos impostos pela guerra na Tchetchênia (Foto: Reprodução)

Nos anos 1990, a Guerra da Tchetchênia entrou para a história como um dos grandes momentos de selvageria e carnificina da humanidade, chegando a ser comparada com a Segunda Guerra Mundial. O conflito foi desencadeado ao Sul da Rússia, desestabilizando completamente uma região ocupada por uma população castigada por condições precárias de vida.

A primeira fase da Guerra da Tchetchênia teve início em 1994, quando tropas russas atacaram indiscriminadamente cidades e vilas. Tudo em represália à tentativa dos tchetchenos de serem independentes e criarem um estado autônomo. Os soldados russos não hesitavam em matar e estuprar civis, além de saquear e queimar residências e lojas. O trunfo da Mãe Rússia eram as grandes formações de aviões e tanques com artilharia pesada que em poucas horas causavam enormes estragos.

Nem mesmo as crianças eram poupadas, tanto que a beligerância é lembrada como um momento histórico de revelia aos direitos humanos e às leis de guerra. Sobre o assunto, até hoje o mundo e a grande imprensa pouco se manifestou, segundo o jornalista estadunidense Barry Renfrew que por muitos anos atuou como correspondente de guerra da Agência Associated Press.

Matar ou morrer por um ideal

Tchetchenos orando antes da batalha (Foto: Reprodução)

Tchetchenos orando antes da batalha (Foto: Reprodução)

A guerrilha tchetchena se articulou para dar o troco nos opressores e conseguiu. Mais motivados e bem preparados que os russos, os guerrilheiros lutavam pelo nacionalismo e ódio étnico. O propósito era matar ou morrer por um ideal. Já os russos chegaram a um ponto em que estavam mais preocupados em sobreviver às investidas dos guerrilheiros do que vencer. “Foi uma guerra tão selvagem que não há justificativas para explicá-la”, comenta Renfrew que assistiu de perto o constituído governo democrático russo buscar no seu passado de ferocidade medieval e totalitarismo os métodos mais cruéis para punir o povo da Tchetchênia.

Enquanto os russos viam os tchetchenos como selvagens traiçoeiros e criminosos, os tchetchenos encaravam os russos como conquistadores cruéis e espoliadores de sua pátria. “A Rússia é uma colcha de retalhos formada por muitos grupos étnicos que foram conquistados à força. E todo governo russo, independente de ideologia, sempre acreditou que a preservação desse império deve ser mantida a qualquer custo”, diz o jornalista. A dissolução da União Soviética já havia sido encarada como um pesadelo que feriu profundamente o orgulho russo, então a possibilidade de perder qualquer território, por menor que fosse, era algo inaceitável.

Barry Renfrew: "Para eles, ser independente é um fato indiscutível da natureza"

Barry Renfrew: “Para eles, ser independente é um fato indiscutível da natureza” (Foto: Reprodução)

Um povo nacionalista e marcial

Os tchetchenos, desde sempre conhecidos como um povo nacionalista e marcial, foram os últimos a serem conquistados pela Rússia Czarista do Século XIX. Certa vez, na década de 1940, em punição a não subserviência dos tchetchenos, o líder soviético Josef Stalin deportou centenas de milhares de homens, mulheres e crianças para a Ásia Central, onde a maioria morreu sob terríveis condições. A resistência dos tchetchenos chegou ao ápice em 1991, quando aproveitaram o colapso da União Soviética e declararam independência.

“Para eles, ser independente é um fato indiscutível da natureza, assim como as montanhas que cercam suas terras. Eles não precisam se justificar. E se você tenta questioná-los sobre isso, recebe um olhar reprovador”, explica Barry Renfrew. Quem também não se posicionou sobre essa guerra foi a Justiça Internacional. O Ocidente fechou os olhos para a Tchetchênia e tratou o conflito como uma questão interna sem base legal para intervenção externa, mesmo ciente de que os russos foram responsáveis pela morte de milhares de civis tchetchenos. “A verdade é que o Ocidente preferiu apoiar Boris Iéltsin e o seu dito governo pró-ocidental em Moscou. Se limitou a simplesmente fazer apelos por uma conduta ‘mais moderada’”, frisa o jornalista.

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A invasão russa se transformou em um desastre (Foto: Reprodução)

O papel do exército

Em dezembro de 1994, os soldados russos chegaram à Tchetchênia, onde se surpreenderam com a grande quantidade de mulheres e crianças tentando bloquear a entrada dos tanques. A maioria implorava para que voltassem para a Rússia. Um general decidiu suspender a invasão alegando que o papel do exército não era lutar contra os próprios cidadãos. Mas nada disso impediu a tragédia que estava por vir. Mais tropas russas invadiram a Tchetchênia em uma ação prevista como rápida e inofensiva para os civis.

“A situação saiu de controle e se transformou em um desastre. Os russos começaram a bombardear os assentamentos civis. Bem organizados, os tchetchenos capturaram aviadores inimigos e em alguns casos nem se deram o trabalho de transformá-los em prisioneiros. Para servir de lição, alguns foram mortos lá mesmo”, enfatiza Renfrew que viu o despreparo do exército russo nas investidas em solo tchetcheno.

Quando Grozny sucumbiu

Grozny, a capital, sucumbiu diante de uma truculenta batalha campal. Enquanto por terra a artilharia pesada dos tanques martelava a cidade. Pelos céus, os russos apelavam para as sequências de bombardeamentos aleatórios, como se não houvesse uma real estratégia de atuação. “A meta parecia ser pulverizar a cidade, pois estavam destruindo tudo”, lembra. Um fato curioso é que a maior parte de Grozny era ocupada por uma população de etnia russa. Desesperados, os sobreviventes fugiam para as aldeias vizinhas.

Grozny depois de destruída pelo Exército Russo (Foto: Reprodução)

Grozny depois de destruída pelo Exército Russo (Foto: Reprodução)

A capital foi a mais castigada porque a Rússia acreditava que a maior base insurgente se situava no coração de Grozny. Até aquele momento, os tchetchenos se refugiavam em grandes blocos de apartamentos, onde era possível reforçar as proteções, tornando-as mais resistente aos ataques. “Eu podia ver claramente que ambos os lados fariam de tudo para ganhar. O interesse maior era derrubar o inimigo”, comenta Renfrew. Embora contassem com menos armamento militar, os tchetchenos conseguiram render muitos inimigos. Aqueles que não foram mortos receberam bom tratamento e foram até liberados.

No Verão de 1996, o Kremlin declarou ao mundo que a vitória na Tchetchênia estava assegurada, após um ataque surpresa que culminou na captura de vários líderes do movimento separatista. “Não foi bem isso que aconteceu. A Rússia retirou suas forças da Tchetchênia para salvar a própria imagem. Não havia esperança de vitória militar”, avalia o jornalista estadunidense.

Capital foi a cidade mais castigada da Tchetchênia (Foto: Reprodução)

Capital foi a cidade mais castigada da Tchetchênia (Foto: Reprodução)

A imposição russa em 2000

A Rússia apenas conseguiu se impor sobre os separatistas em 2000, quando restaurou o domínio direto da Tchetchênia ao destruir Grozny. Resistentes, os rebeldes montaram uma base de ataque nas colinas. Com o passar dos anos, os tchetchenos sofreram grandes baixas. Uma das maiores foi a morte do líder separatista Aslan Maskhadov em março de 2005, seguida pela do comandante militar Shamil Basayev, assassinado em julho de 2006.

Entre as muitas crianças mortas pelos russos entre os anos de 1999 e 2000 estava Tapa Arskeyov, irmão de Dmitri Arskeyov. Tapa que tinha 12 anos acompanhava o pai Sergey, na tentativa de convencer um grupo de soldados russos a não invadir uma área escolar em Grozny. Foi uma tentativa em vão, embora um dos invasores tenha se sensibilizado com a situação.

“Outros que vinham atrás viram meu pai e Tapa com as mãos para o alto; apenas acenavam. Antes que os russos perguntassem qualquer coisa, atiraram contra suas cabeças. Os dois caíram mortos”, confidencia Dmitri Arskeyov que hoje tem 25 anos. Enquanto alguns russos ficaram chocados com o acontecimento, outros simplesmente riram e seguiram adiante, sem se importar com os corpos de pai e filho já caídos sem vida sobre o solo. Dmitri e a mãe Lydia tiveram de recolhê-los com um carrinho de mão.

Um criminoso de guerra no poder

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Kadyrov, líder pró-Rússia responsável por 75% dos crimes de guerra na Tchetchênia (Foto: Reprodução)

Em 2007, Ramzan Kadyrov, filho do ex-presidente Akhmad Kadyrov, assassinado em 2004, assumiu a presidência da Tchetchênia, tendo como principal apoiador o presidente russo Vladimir Putin. Na segunda fase do conflito, as forças russas e seus aliados tchetchenos foram acusados de abuso generalizado de civis, incluindo desaparecimentos, torturas e matança indiscriminada. Grupos de direitos humanos internacionais estimaram que até cinco mil civis foram sequestrados por forças russas ou pró-Rússia.

Muitos inocentes eram violentados brutalmente para assumirem ligação com a guerrilha, mesmo quando não tinham qualquer relação com grupos separatistas. As forças de Kadyrov, conhecida como Kadyrovtsy, são creditadas por levarem a cabo a maior parte das abduções, tanto que a Federação Internacional de Helsinki para Direitos Humanos descobriu que a Kadyrovtsy operava uma rede de prisões secretas na Tchetchênia. O grupo é responsável por 75% dos crimes de guerra cometidos contra os tchetchenos. Ainda assim, quando reassumiu a localidade, a Rússia fez questão de oferecer o cargo de presidente da Tchetchênia ao criminoso de guerra Ramzan Kadyrov.

Como reflexo da guerra, até hoje as forças russas de segurança da Tchetchênia permanecem mal treinadas, indisciplinadas e corruptas. E isso tem relação direta com a pouca responsabilidade pelos abusos que cometeram ao longo de muitos anos. “Todos os militares russos julgados pelos crimes na Tchetchênia foram absolvidos ou receberam penas modestas. Me recordo do episódio de dois soldados que saíram impunes, após matarem seis civis em 2005”, exemplifica o jornalista Barry Renfrew. A justiça russa aceitou a alegação de que os acusados seguiam apenas ordens superiores, algo incompatível com um verdadeiro julgamento de guerra.

A retaliação tchetchena

Conforme se intensificou o ataque aos civis tchetchenos, os guerrilheiros decidiram levar a guerra até a Rússia. Lá, os rebeldes usaram civis como escudos humanos. Um dos episódios mais marcantes foi registrado em outubro de 2002, quando os tchetchenos tomaram um teatro em Moscou durante a realização de um musical popular. Nesse dia, os próprios russos mataram os reféns quando liberaram um gás venenoso.

Guerrilheiros decidiram levar a guerra até a Rússia (Foto: Reprodução)

Dois anos depois, os separatistas fizeram mil reféns em uma escola na cidade de Beslan, o que acabou na morte de 330 pessoas. Também houve ataques a hospitais, concertos públicos e áreas residenciais. O comandante tchetcheno Shamil Basayev declarou em 2005 que era preciso fazer com que todos os russos sentissem a dor da guerra. “A responsabilidade é de toda a nação russa. Se a guerra não chega até eles individualmente, ela nunca terá seu fim na Tchetchênia”, disse Basayev.

A repreensão tardia

Os Estados Unidos e alguns outros países ocidentais tardiamente decidiram repreender a Rússia pela negligência quanto aos direitos humanos na guerra. Em 2000, o então presidente estadunidense George Bush ameaçou interromper a ajuda que dava à Rússia, caso continuassem matando mulheres e crianças – deixando muitos refugiados tchetchenos órfãos. Mas tudo mudou após o 11 de setembro de 2001 e o surgimento de alegações de que alguns comandantes da Tchetchênia tinham ligação com a Al Qaeda e outros grupos terroristas internacionais.

Espertos, os russos aproveitaram o sentimento anti-islâmico para vender a ideia de que a luta na Tchechênia tinha como objetivo evitar a criação de um estado islâmico terrorista. Mesmo recebendo severas críticas da União Europeia, a Rússia conseguiu sair vitoriosa da situação. Em pouco tempo, a questão quase desapareceu das pautas da política internacional. “A Rússia transformou a Tchetchênia em um país perigoso tanto para os tchetchenos quanto para os estrangeiros. Hoje em dia, infelizmente, há pouca discussão pública sobre a Tchetchênia”, lamenta Renfrew.

Sobre Barry Renfrew

O jornalista Barry Renfrew começou a trabalhar na Associated Press em 1978. Desde então, já atuou como correspondente de guerra em Sydney, Moscou, Joanesburgo, Seul, Islamabad, Cabul e Londres. Antes de se tornar um dos diretores mais importantes da AP, Renfrew foi chefe do escritório no Paquistão e trabalhou na sede da Associated Press em Nova York e também na Virgínia Ocidental.

 Curiosidade

Imagens do documentário “Melancholian 3 Huonetta” que mostra as consequências da Guerra da Tchechênia. A música é da banda de post-rock finlandesa Magyar Posse – Single Sparks Are Spectral Fires.

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