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Dias Fernandes: “Fazer mal aos animais é indício de mau-caráter”
O poeta e jornalista paraibano que lutou pelo vegetarianismo nas primeiras décadas do século 20
Teria uns 45 anos. Frugal e vegetariano, nem fumava, nem bebia. Apresentava um aspecto juvenil de atleta, mantendo a forma através da ginástica sueca. Era alvo e corado, o cabelo esvoaçante, castanho claro. Algumas vezes ostentava petulante monóculo nos olhos azuis. Foi quem inaugurou andar sem gravata e sem chapéu. Com essas palavras, o intelectual Osias Gomes narra a chegada do jornalista, escritor e ativista vegetariano Carlos Dias Fernandes à redação do jornal A União, de Parahyba do Norte, atual João Pessoa, em 1919. Gomes dizia que Fernandes era o maior poeta da Paraíba, inclusive considerava seu trabalho superior ao de Augusto dos Anjos.
E para além das preferências pessoais, de acordo com o jornalista paraibano Gonzaga Rodrigues, Fernandes fez do Jornal A União uma escola de jornalismo por onde passou quase toda a juventude intelectual das primeiras décadas do século 20. Era muito admirado e respeitado, e justamente porque destoava da maioria. Não se importava com casamento formal, tinha uma dieta avessa à das pessoas com quem convivia, gostava de atividades físicas, se vestia sem atender as normas sociais e possuía imensa bagagem cultural.
“Aos 15 anos, segundo testemunho de Castro Pinto, amigo de infância, Carlos Dias Fernandes confundia os professores na análise gramatical dos mais difíceis trechos de Os Lusíadas. Foi influenciado por Cruz e Sousa [de quem era muito amigo] e esteve ao lado de outras diversas personalidades jornalísticas e poéticas do cenário brasileiro. Atuou na imprensa de Pernambuco, do Rio de Janeiro, do Pará e da Paraíba. Sua obra é extensa e variada, abarcando romances, discursos, poesias, monografia e livro didático”, informa a pesquisadora Fabiana Sena.
Embora hoje não seja muito conhecido fora do meio literário paraibano, o satírico e prosaico Fernandes lançou importantes obras, como Solaus, de 1901; Palma de Acantos, de 1907; A Renegada, de 1908; O Cangaceiro, também de 1908; Mirian, de 1920 e A Vindicta, de 1931. No entanto, se suas qualidades literárias não fizeram dele um autor famoso, as suas perspectivas sobre o ideal civilizatório fizeram menos ainda.
Um homem à frente do seu tempo, ao longo de anos realizou conferências e palestras sobre vegetarianismo, defendendo que a abstenção do consumo de alimentos de origem animal era o único meio de assegurar o respeito aos animais em um contexto moral e ético. E para reafirmar sua posição, o autor apresentou argumentos envolvendo saúde e higiene, considerando-os imprescindíveis como ferramentas de convencimento.
Controverso, Carlos Dias Fernandes chamou muita atenção quando publicou na edição de 5 de junho de 1918 do Jornal A União uma matéria em que defendeu fervorosamente a prática da medicina natural, confrontando laboratórios farmacêuticos. Também realizou uma grande conferência sobre feminismo em 1924, justificando que os direitos e deveres das mulheres precisavam estar de acordo com suas aspirações. Muito antes de livros como The Sexual Politics of Meat: A Feminist-Vegetarian Critical Theory, de Carol J. Adams, lançado em 1990, o escritor já argumentava que as mulheres, de forma semelhante aos animais, eram subjugadas, privadas de liberdade.
Para Fernandes, a melhor forma de ampliar a aceitação do vegetarianismo seria incentivando o desenvolvimento intelectual das mulheres e preparando-as para ocuparem grande espaço na vida pública. Ele tinha fé que elas poderiam ser o novo norte de uma educação que mostrava às crianças, logo nos primeiros anos, a importância de uma alimentação isenta de ingredientes de origem animal.
Suas inclinações ideológicas tiveram pouca repercussão no Brasil, mas foram bem recebidas na Europa, tanto que Fernandes aparece com destaque na edição Nº 11 da revista portuguesa O Vegetariano, de 1917. Prolífico, o escritor publicou 38 livros, abordando inclusive temas como feminismo e direitos dos animais. Oscilando principalmente entre o naturalismo e o simbolismo, Dias Fernandes obteve prestígio quando lançou em 1936 o seu romance autobiográfico Fretana, inspirado pelo simbolismo francês.
Sua defesa do vegetarianismo era frequentemente publicada no jornal A União, onde ele tinha total liberdade sobre o que escrever. Exemplos são três matérias veiculadas em agosto de 1916 sob o título O Regime Vegetariano, um desdobramento do que Fernandes já defendia no livro Proteção aos Animais, de 1914. Na obra, Fernandes, que não era religioso, cita religiões e crenças que endossam o papel do ser humano como protetor dos animais e da natureza. Polêmico, chegou a discutir com profissionais de saúde da época que defendiam o consumo de carne. Talvez o maior exemplo tenha sido a sua rixa com o então conceituado médico José Maciel.
A seu favor, o poeta e jornalista tinha o médico higienista Flavio Maroja que publicou no jornal A União de 30 de agosto de 1916 um artigo intitulado Hygiene Alimentar: Regimen Vegetariano e Regimen Carneo, confronto de opiniões, como penso a respeito, que fala dos benefícios do vegetarianismo. Em 26 de janeiro de 1917, Carlos Dias Fernandes comemorou a fundação da Sociedade Vegetariana Brasileira, sediada no Rio de Janeiro, e publicou matéria sobre o assunto. “Vai ganhando surto em todo mundo civilizado o regime vegetariano como solução prática do problema moral, economico e therapeutico dos povos. (…) Vegetarianismo quer dizer vida de accôrdo com a natureza”, registrou.
Segundo a pesquisadora Amanda Sousa Galvíncio, Fernandes reforçava seus argumentos sobre o assunto através de referências internacionais. Algumas delas foram os médicos Dujardin-Beaumetz, do Hôpital Cochin, na França; João Bentes Castel-Branco, autor do livro A Cultura da Vida, e Amilcar de Souza – diretor da revista O Vegetariano, além do biólogo Ernest Haeckel e do químico Eduard Buchner.
Porém, foi a própria literatura que conduziu Carlos Dias Fernandes ao vegetarianismo. Ele deixou de consumir alimentos de origem animal depois de ler Liev Tolstói, Lord Byron e Jean-Jacques Rousseau. Conforme Amanda Galvíncio, Fernandes citava com frequência pensadores como Sócrates, Hipócrates e Plutarco, além do Buda e Jesus Cristo, principalmente em suas palestras.
O que também reafirma a influência do vegetarianismo na vida e na obra do poeta são seus personagens que não raramente eram animais. No geral, a natureza sempre foi um tema recorrente em seus poemas e contos. Nascido em Mamanguape, na região da Mata Paraibana, em 20 de setembro de 1874, Carlos Dias Fernandes faleceu no Hospital da Cruz Vermelha no Rio de Janeiro em 9 de setembro de 1942.
Infelizmente, poucas pessoas compareceram ao seu enterro, um intrigante paradoxo na vida do homem que vivia rodeado de pessoas. Em seus últimos versos, jamais publicados, os animais ainda ocupavam posição de destaque. E apesar de esquecido pela literatura que tanto amou, uma de suas frases mais famosas, sobrevive ao tempo: “Fazer mal aos animais é indício de mau-caráter.”
Briário e Centímano (um dos poemas mais conhecidos de Fernandes)
Solitário coqueiro miserando,
Que as tormentas não deixam sossegar!
E, de contínuo, as palmas agitando
Pareces um vesânico a imprecar.
Desgraçada palmeira, como e quando
Irão teus pobres dias acabar;
E com eles ou teu destino infando
De cativo da Terra ao pé do Mar?
Hemos conformes nossos tristes fados.
Tu, germente Briaréu dos vendavais
Eu, Centímano de cem mil cuidados.
Um retorcido aos ventos outonais
Outro com os seus anelos sossobrados…
Nem sei qual de nós dois braceja mais
Saiba Mais
Carlos Dias Fernandes assumiu a direção do jornal A União em 1913. O convite foi feito em 1912 por Castro Pinto. Em 1928, o governador João Pessoa o demitiu do cargo. Desapontado, ele se mudou para o Rio de Janeiro, onde viveu até falecer.
Referências
Galvíncio, Amanda S. Atuação Educacional de Carlos Dias Fernandes na Parahyba do Norte (1913-1925): jornalismo, literatura e conferências (2013).
Sena, Fabiana. A tradição da civilidade nos livros de leitura no Império e na Primeira República. João Pessoa, PB. Tese de doutorado. PPGL/UFPB (2008).
Sena, Fabiana. A imprensa e Carlos Dias Fernandes: o processo de legitimação como autor de livro didático. Educação Unisinos, vol. 15, núm. 1, enero-abril, 2011, pp. 70-78.
Coutinho, Afrânio; Sousa, J. Galante de. Enciclopédia de literatura brasileira. São Paulo. Editora Global (1995).
O Vegetariano: mensário naturista ilustrado, Volume VIII, Nº 11 (1917).
Rodrigues, Gonzaga. Surgimento de A União. Disponível em http://auniao.pb.gov.br/nossa-historia/a-uniao-uma-viagem-no-tempo/leitura-contextual-do-surgimento-de-a-uniao.
Vegetarianismo. Imprensa Oficial. Parahyba (1916).
Santos, Idelette Fonseca. Antologia Literária da Paraíba. João Pessoa. Grafset (1993).
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O vegetarianismo na literatura de Mary Shelley
“Não tenho que matar o cordeiro e a cabra para saciar o meu apetite”
A escritora britânica Mary Wollstonecraft Shelley, famosa pela criação do monstro de Frankenstein, um dos mais emblemáticos da literatura mundial, teve uma vida pautada pelo vegetarianismo. Quando decidiu escrever aquela que se tornaria sua grande obra-prima, a maior inspiração da autora não foi basicamente o mito grego do titã Prometeu, um defensor da humanidade que roubou o fogo de Héstia e presenteou os mortais, mas também o conceito de nobre selvagem, cunhado pelo filósofo suíço e defensor do vegetarianismo Jean-Jacques Rousseau.
“Mas considerai primeiro que, querendo formar o homem da natureza, não se trata por isso de fazer dele um selvagem e de relegá-lo ao fundo dos bosques, mas, envolvido em um turbilhão social, basta que ele não se deixe arrastar nem pelas paixões, nem pelas opiniões dos homens; veja ele pelos seus olhos, sinta pelo seu coração; não o governe nenhuma autoridade, exceto a de sua própria razão”, declarou o suíço em O Bom Selvagem.
Em primeiro lugar, a busca pelo autoconhecimento; depois o interesse pela linguagem e pelas convenções sociais. Seguindo essa premissa idealizada por Rousseau, Mary Shelley moldou um anti-herói vegetariano que nada mais é do que o ser humano em seu estado mais impermisto e natural. A maior prova disso é que ainda isento dos vícios da civilização, o monstro vive na floresta, onde se alimenta estritamente de bagas e oleaginosas, não de carne, já que ele não vê sentido nem necessidade em matar animais para se alimentar.
No século 19, embora o romantismo enquanto arte tivesse estreita relação com o vegetarianismo, a verdade é que fora dos círculos literários quase ninguém reconhecia ou falava sobre a abordagem vegetariana no livro Frankenstein. Na realidade, muita gente reconhecia as qualidades de Mary Shelley como escritora, mas menosprezavam seu estilo de vida.
Ao contrário de muitos autores que se tornaram vegetarianos ao longo da vida, ela teve a oportunidade de crescer em uma família que sempre simpatizou com o vegetarianismo, inclusive quase todos os amigos de seu pai William Godwin também eram vegetarianos. Assim, desde cedo, Mary foi incentivada a entender que o consumo de carne dependia do sofrimento animal.
Na juventude, depois de conhecer alguns dos maiores intelectuais que defendiam esse estilo de vida, a escritora começou a ler obras como An Essay on Abstinence from Animal Food: as a Moral Duty, do britânico Joseph Ritson e The Return to Nature, or, a Defense for the Vegetable Regimen, de John Frank Newton, precursores do veganismo, assim como William Lambe, de quem ela leu o livro Water and Vegetable Diet. Shelley também se inspirou em Plutarco, John Milton e nos textos em grego antigo e latim que abordavam o estilo de vida de Pitágoras, que era ovolactovegetariano.
Cercada por pessoas que não consumiam alimentos de origem animal, ela acabou se casando em 1816 com Percy Bysshe Shelley que, além de ter sido um dos mais importantes poetas românticos da Inglaterra, era um ativista vegetariano e também precursor do veganismo. O poeta lançou obras polêmicas como A Vindication of a Natural Diet e On the Vegetable System of Diet. No prefácio do primeiro, ele publicou um excerto do seu poema Rainha Mab:
Não mais agora
Ele mata o cordeiro que o observa
E terrivelmente devora sua carne mutilada;
Além do casal Shelley, outros românticos como Alexander Pope e Thomas Tryon ajudaram a promover o vegetarianismo na Europa. No entanto, nenhuma obra daquele período superou a popularidade de Frankenstein. Em uma das passagens do livro, a criatura se emociona ao dizer que sua comida não é a mesma dos homens:
“Não tenho que matar o cordeiro e a cabra para saciar o meu apetite. Bolotas e bagas são o suficiente para a minha alimentação. Minha companheira vai ser da mesma natureza que a minha, e vai se contentar com o mesmo que eu. Faremos a nossa cama de folhas secas; o sol vai brilhar sobre nós da mesma forma que brilha sobre os homens, e ele vai amadurecer a nossa comida. A imagem que apresento a vocês é humana e pacífica.” Ou seja, na essência, o monstro de Mary Shelley carregava em si a perfeição moral que faltava ao homem mediano, rendido aos excessos da ganância e da megalomania.
Embora haja controvérsias sobre até que ponto Mary Shelley foi vegetariana ao longo de sua vida, a verdade é que ela trouxe grandes contribuições para o vegetarianismo e, quem sabe, a maior seja a idealização de uma criatura desafortunada que desprezava o hábito humano de se alimentar de animais.
“Por que há de o homem vangloriar-se de sensibilidades mais amplas do que as que revelam o instinto dos animais? Se nossos impulsos se restringissem à fome, à sede e ao desejo, poderíamos ser quase livres. Somos, porém, impelidos por todos os ventos que sopram, e basta uma palavra ao acaso, um perfume, uma cena, para provocar-nos as mais diversas e inesperadas evocações”, escreveu Mary Shelley em Frankenstein, externando sua antipatia pela jactância e pelos caprichos do ser humano.
Saiba Mais
Mary Shelley nasceu em Londres em 30 de agosto de 1797 e faleceu em 1º de fevereiro de 1851.
Referências
Shelley, Mary. Frankenstein. CreateSpace Independent Publishing Platform (2015).
Shelley, Percy Bysshe. A Vindication of Natural Diet: Being One in a Series of Notes to Queen Mab (Disponível em ivu.org)
Bellows, Martha. Categorizing Humans, Animals and Machines in Mary Shelley ’s Frankenstein. Página 6. University of Rhode Island (2009).
Fortes, Luis Roberto. Rousseau: o bom selvagem. 2º ed. – São Paulo: Humanistas: Discurso Editorial (2007).
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