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O pendão e o pé de feijão
Me dava a impressão de que queriam romper o telhado e ganhar os céus
Um dia, quando eu tinha seis anos, eu e meu irmão Douglas estávamos em casa, na sala de estar, ladeados pelos colossais pendões ornamentais de minha mãe. Eram sarapintados e tão bonitos que ficamos em torno deles os observando e tocando. “Parece cabelo de milho, só que colorido!”, comentei.
A maneira como se esforçavam para acariciar o teto quando a brisa invadia a sala me dava a impressão de que queriam romper o telhado e ganhar os céus. Suas formas delgadas e perfiladas convidavam nossas mãos miúdas a fazerem cócegas um no outro com suas franjas. Em pouco tempo, e mais vermelhos do que um dos pendões, rolávamos pelo chão às gargalhadas, coçando a cabeça, o rosto e os braços. As cutucadas nas orelhas intensificavam as casquinadas.
A balbúrdia era tão grande que o piso de tacos, recém-lustrado pela minha mãe, vibrava e ganhava marcas de dedos, cotovelos e solas de pé. A verdade é que os pendões nos serviam até para brincadeiras de esconde-esconde. Sofria diante de nossa presença, e às vezes eu suspeitava que ele tremulava mais por medo do que por incidência fortuita da aragem.
“Agora vêm esses loucos em miniatura”, talvez aventasse, contraindo-se timidamente. Parecia que se encolhia com a nossa chegada, como menina empenhada em não ser notada. Muitas vezes, assim que cheguei da escola, joguei a mochila sobre a cama e fui até a sala. Corria em torno dos pendões, imitando um índio aprendiz de guerreiro. Ocasionalmente, enfiava a cabeça entre eles, observando a ausência de luz de um candeeiro. Fechava os olhos e sentia um quimérico e tenro perfume alvissareiro.
Imaginava um rio caudaloso, para onde eu poderia fluir como suas águas, se me lançasse sem sobrosso. Com as canetinhas de colorir, fazia alguns riscos no rosto. Urrava com voz falsa e continuava a incomodar os pendões até a hora de ir para a escola. Um dia, arrastei o vaso para mudá-lo de posição e senti uma força me impelindo quase à exaustão. Embora dissessem que os pendões não tinham vida, me assustei ao ver um pouquinho de água no piso de tacos, em torno e debaixo do vaso.
Achei que os pendões tivessem chorado por minha causa e parei de incomodá-los até a tarde em que conheci o conto “João e o Pé de Feijão”, do inglês Benjamin Tabart. À noite, em casa, deitei no beliche com olhos intumescidos, divaguei pela história narrada pela professora Inês, e considerei: “Se não tem vida, por que ele parece maior? Estranho…muito estranho…”
No dia seguinte, minhas dúvidas aumentaram exponencialmente quando vi que estavam maiores do que nunca. Contei ao meu irmão Douglas o que aconteceu e ele também se aproximou para confirmar a minha suspeita do pendão se passando por pé de feijão.
Minutos antes do almoço veio a certeza de que algo precisava ser feito. Havia grãos de feijão em torno do pendão. Sorrimos com chiata, coçamos as mãos e olhamos um para o outro, movimentando maquinalmente a cabeça de cima para baixo, em concordância. “Quer dizer que não consegue mais fingir? Uhum…”, concluí.
No dia seguinte, enquanto minha mãe e meu tio conversavam na varanda, eu e meu irmão fomos até a sala. Antes observamos o entorno para ter certeza de que não seríamos surpreendidos por ninguém. Douglas tirou um isqueiro do bolso e eu tirei outro. Frente a frente, acenamos com a cabeça, e acendemos os dois – encostando-os nos pendões que queimaram como gigantescos busca-pés silenciosos, privados de assobiar.
Logo se transformaram em um nada incandescente. O fogo subiu tão rápido que me lancei para trás, sentindo o corpo quente e a visão ligeiramente turva. Inclinando a cabeça para cima, enxerguei o teto esbraseado. O fogo, vivo como nunca tinha visto, transfigurou suas formas até o momento em que Tio Lu, com o auxílio de minha mãe, se aproximou para impedir que ele se espalhasse.
Assistimos tudo em inércia. A intervenção rápida só não impediu que o forro ficasse preto. E assim ganhamos o nosso próprio céu enlutado, sem lua ou estrelas, apenas uma estática escuridão que ofuscava a réstia escabreada que tentava iluminar os restos de pendão.
Ficamos de castigo por um bom tempo. Apesar disso, nos sentíamos heróis, crentes de que evitamos que o gigante comedor de gente jamais desceria pelo pé de feijão transformado em pendão. “Não ia demorar até ele chegar. Fizemos bem”, comentamos. Depois de algumas cintadas e uma semana sem sair para brincar, minha mãe descobriu porque ateamos fogo nos pendões.
No dia da revelação, fiquei sabendo que antes do acontecido o vaso dos pendões foi trocado por outro igual, porém com fundo raso, dando a impressão de que eram maiores. Além disso, a água em torno dos pendões foi derramada na manhã em que minha mãe foi ao nosso quarto com um balde de água para limpar o piso.
“Os grãos caíram no chão quando corri pela sala com um pacote aberto de feijões para atender ao telefone”, confidenciou. Ouvimos em silêncio, entendemos e reconhecemos nossa culpa. De volta ao quarto, sorrimos um para o outro. Atirei um grão de feijão cru em meu irmão e ele atirou outro em mim. Não era preciso articular palavra. “A inocência não se envergonha de nada”, dizia Jean Jacques-Rousseau.
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