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Romain Rolland: “Milhares de animais [atualmente milhões] são assassinados todos os dias, sem sombra de remorso”
“Ele tentava elevar a própria fronte, gemendo como uma criança, balindo e pendendo a língua cinza”
Vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 1915, o escritor francês Romain Rolland, autor de “Jean-Christophe”, um dos romances mais importantes do século 20, também dedicou sua vida à defesa dos direitos dos animais e da dieta vegetariana. Importante pensador, Rolland influenciou Sigmund Freud e se tornou amigo de Mahatma Gandhi. Em 1922, o alemão Hermann Hesse, também vencedor do Nobel de Literatura, dedicou o livro “Sidarta”, um dos romances mais espiritualistas da literatura mundial, ao seu querido amigo Romain Rolland.
“Milhares [atualmente milhões] de animais são desnecessariamente assassinados todos os dias, sem sombra de remorso. Se alguém fizesse menção a isso, seria considerado ridículo. Por isso esse crime é imperdoável”, escreveu Romain Rolland no romance “Jean-Christophe”, publicado em dez volumes entre os anos de 1904 e 1912. Na obra com viés autobiográfico, o autor francês narra a história de um gênio musical alemão que adotou a França como lar. A partir daí, ele sincretiza suas visões musicais, questões sociais, internacionalismo humanista e direitos dos animais.
“Ele não podia mais suportar ver uma das cenas mais ordinárias que testemunhara centenas de vezes – um bezerro chorando em uma cesta de vime, com seus grandes olhos salientes, seus tufos brancos encaracolados sobre a testa, seu focinho roxo e suas pernas dobradas. Havia um cordeiro com as quatro pernas amarradas sendo transportado por um camponês. Pendurado de cabeça para baixo, ele tentava elevar a própria fronte, gemendo como uma criança, balindo e pendendo a língua cinza. Havia aves amontoadas em uma cesta e podia-se ouvir ao longe os guinchos de um porco sangrando até a morte, além de um peixe a ser limpo em uma cozinha”, registrou Rolland em “Jean-Christophe”.
Em 1886, o que o influenciou a se tornar vegetariano e a adotar um estilo de vida frugal foi a obra “O que devemos fazer”, de Liev Tolstói, em que o escritor russo aborda a miséria, as desigualdades e os índices de mortalidade nas grandes cidades. Tolstói se questionava sobre finalidade do dinheiro e a divisão do trabalho, além de criticar o sistema político vigente. Ao saber que o escritor russo, um tradicional aristocrata, adotou o vegetarianismo e optou por trabalhar com camponeses, Roland enviou-lhe uma carta e obteve uma longa e alentadora resposta.
Mais tarde, inspirado pela filosofia vedanta, e principalmente pelas obras de Swami Vivekananda, um dos responsáveis pela introdução da vedanta e do yoga no Ocidente, Romain Rolland, um jovem exigente e tímido, se empenhou na redescoberta de si mesmo. Embora trabalhasse como professor, não gostava de lecionar. Sua vocação e satisfação maior era a escrita, tanto que em 1912, quando conseguiu garantir uma renda mensal modesta com a literatura, a sua primeira decisão foi pedir demissão do cargo de professor.
Pacifista ao longo de toda a sua vida, Romain Rolland protestou contra a Primeira Guerra Mundial. Quando se mudou para a Suíça, ele escreveu “Au-dessus de la mêlée”, uma crítica à guerra, publicada no Jornal de Genebra em 22 de setembro de 1914. Dez anos depois, lançou seu livro sobre o líder indiano Gandhi, de quem se tornou amigo em 1931, após o primeiro encontro dos dois. Em 1923, Rolland começou a se corresponder com o austríaco Sigmund Freud, criador da psicanálise. Os dois tinham grande admiração um pelo outro, tanto que em uma das cartas, Freud admitiu: “Trocar uma saudação com você continuará a ser uma feliz memória até os meus últimos dias.”
Estudioso do misticismo oriental, Romain apresentou a Sigmund Freud, com quem se correspondeu por mais de 15 anos, o conceito de “sentimento oceânico”, uma impressão de vínculo e comunhão com o mundo, desenvolvido através de suas pesquisas. Mais tarde, o austríaco publicou em 1929 o livro “Civilizações e Seus Descontentes”, que traz logo nas primeiras páginas um debate sobre a origem desse sentimento. Depois de ler a obra “O Futuro de uma Ilusão”, Rolland fez algumas observações que serviriam como premissa para Freud escrever “O Mal-Estar na Civilização”. O escritor francês exerceu influência sobre o austríaco e suas obras até 1939, quando Sigmund Freud faleceu.
Em 1928, Rolland e o filósofo húngaro e pesquisador da vida natural, Edmund Bordeaux Szekely, fundaram a Sociedade Biogênica Internacional com a intenção de expandir suas ideias sobre a integração entre mente, corpo e espírito. A instituição advogava em favor do estilo de vida simples e da alimentação vegetariana.
“As torturas inomináveis que os seres humanos infligem a essas criaturas inocentes fez seu coração doer. Concedendo aos animais um raio de razão, imagine o quanto o mundo pode ser um pesadelo terrível para eles. Um sonho com homens de sangue frio, cegos e surdos cortando suas gargantas, abrindo-as, eviscerando-os, fatiando-os, cozinhando-os vivos e às vezes rindo da forma como eles se contorcem de agonia. Existe algo mais atroz entre os canibais da África?”, escreveu Romain Rolland em “Jean-Christophe”.
O escritor francês foi uma das principais inspirações da ativista canadense Anita Krainc, co-fundadora do movimento vegano Toronto Pig Save, que em 22 de junho de 2015 foi presa após dar água a porcos confinados em um caminhão a caminho de um matadouro na Grande Toronto.
Romain Rolland e a internacionalização do humanismo
Nascido em Clamecy, Nièvre, em 29 de janeiro de 1866, o escritor francês veio de uma família diversificada, formada por grandes investidores da área urbana e pequenos agricultores. Na Escola Normal Superior de Paris, Romain Rolland estudou filosofia, mas desistiu porque não gostou do viés ideológico e impositivo do curso. Por isso optou por se graduar em história.
Em 1889, se mudou para Roma, onde viveu dois anos e se tornou amigo da escritora alemã Malwida von Meysenbug, amiga do filósofo Friedrich Nietzshe e do compositor Richard Wagner. As ideias de Rolland, aliadas aos ensinamentos de Liev Tolstói e as lições de Malwida, moldaram sua visão política e humanitária, internacionalizando suas ideias.
De volta à França em 1894, Rolland obteve seu título de doutorado com a tese “A Origem do Teatro Lírico Moderno – A História da Ópera antes de Lully e Scarlatti”. Ao longo de 20 anos, lecionou em vários liceus de Paris, até que foi nomeado diretor de educação musical da Escola de Estudos Sociais Avançados entre os anos de 1902 e 1911. Em 1903, também assumiu a primeira cadeira de história da música da Sorbonne.
Seu primeiro livro foi publicado em 1902, aos 36 anos, quando ele estudava o teatro popular e defendia a democratização do teatro. No ensaio “Le Théâtre du peuple”, publicado em 1913, Romain Rolland diz que o palco e o auditório devem sem abertos para as massas. “Precisamos que o teatro seja assistido pelo povo, mas antes temos que criar algo que seja voltado para eles”, sugeriu.
Como humanista, também abraçou o trabalho dos filósofos da Índia. Muitas de suas pesquisas foram registradas oralmente, através de conversas com Rabindranath Tagore e Mahatma Gandhi. Místico, Rolland enxergava a si mesmo como alguém com uma ancestralidade muito curiosa, e isto o inspirou a escrever a novela Colas Breugnon, publicada em 1919. Em seguida, vieram “Clérambault” e “Pierre et Luce”, de 1920; além do seu segundo romance de sete volumes – “L’âme Enchantée”, escrito entre os anos de 1922 e 1933.
Na primavera de 1919, o francês convidou o escritor irlandês George Bernard Shaw, também vegetariano e pacifista, para assinar uma petição em favor da paz. Rolland também se correspondeu com Albert Einstein, e juntos fundaram um comitê antifascista. Em 1920, o escritor francês retomou seus estudos sobre a filosofia mística da Ásia, especialmente da Índia, o que rendeu uma biografia sobre Gandhi, publicada em 1924.
Dois anos depois, ele se aprofundou nos estudos sobre o yoga e lançou as biografias dos gurus Vivikananda e Ramakrishina. Em 1932, ingressou no Comitê Mundial Contra a Guerra e o Fascismo, organizado por Willi Münzenberg. Depois se mudou para Villeneuve, às margens do Lago Genebra, no cantão de Vaud, e se entregou ainda mais à escrita.
Em 1935, Romain Rolland viajou para Moscou, a convite do escritor russo e também vegetariano Maxim Gorky. Como um tipo de embaixador dos artistas franceses na União Soviética, ele tentou convencer Josef Stalin a parar com a repressão contra seus opositores. Chegou a pedir clemência para o escritor anarquista Vicor Serge. Em 1937, Rolland retornou para Vézelay, uma comuna francesa da Borgonha, ocupada pelos nazistas em 1940. Se isolou e seguiu produzindo em ritmo intenso, até que faleceu em 30 de dezembro de 1944.
Saiba Mais
Em 1966, a União Soviética lançou um selo comemorativo no centenário de nascimento de Romain Rolland. A homenagem foi justificada como um tributo aos nobres ideais de sua produção literária, e ao amor e a simpatia com a qual ele descreveu os mais diferentes seres vivos.
Romain Rolland também escreveu biografias sobre Beethoven, publicada em 1903; Hugo Wolf, em 1905; Michel-Angelo, em 1906; e Tolstói, em 1911.
Seu grande amigo, o escritor austríaco Stefan Zweig lançou a biografia “Romain Rolland – The Man and his Work” em 1921.
Frase célebre de Romain Rolland
“O pessimismo da inteligência não deve abalar o otimismo da vontade.”
Referências
Rolland, Romain. Jean-Christophe (1904-1912). Editora Globo (1986).
Zweig, Stefan. Romain Rolland – The Man and his Work (1921). Disponível em archive.org.
Cruickshank, John. Rolland, Romain. The Penguin Companion to Literature 2: European Literature. Harmondsworth: Penguin (1969).
Parsons, William B. The Enigma of the Oceanic Feeling: Revisioning the Psychoanalytic Theory of Mysticism. Nova York. Oxford University Press (1999).
Bradby, David. Rolland, Romain. The Cambridge Guide to Theatre. Cambridge University Press (1998).
Sobre Adolf Hitler e Josef Stalin
Há pesquisadores que afirmam que Adolf Hitler foi o responsável pela morte de 17 milhões de pessoas durante o regime nazista. Josef Stalin foi além, sendo responsabilizado pela morte de 23 milhões de pessoas, o que significa claramente que ele superou Hitler. No entanto, Hitler comandou a Alemanha por 11 anos e Stalin liderou a União Soviética por 29 anos. Embora tenham sido dois genocidas, os fatores de comparação não costumam ser os mesmos.
Inclusive historicamente a influência de Stalin no mundo foi muito maior do que a de Hitler, endossada pelos Estados Unidos até o início da década de 1950, quando a Guerra Fria abriu espaço para o surgimento do macartismo, o período de caça às bruxas, permitindo que os EUA investissem maciçamente em propaganda e espionagem com a intenção de desqualificar outras formas de governo. Mas tudo isso não com a intenção de buscar paz ou justiça, mas tão somente desestabilizar economias estrangeiras que pudessem oferecer algum tipo de risco à hegemonia estadunidense.
Mais diplomacia e menos guerra
Crise na Ucrânia vai muito além do que a grande mídia informa
Penso que a situação na Ucrânia não é menos delicada do que foi a do Kosovo, Tchetchênia, Sérvia e Montenegro. E pra citar dois períodos hoje remotos, o fim do Império Austro-Húngaro em 1918 e a invasão Bolgar muitos séculos antes. Não há nada simplista quando se trata de povos que, embora dividam o mesmo espaço, e estão sujeitos às mesmas conjunturas sociais e econômicas, possuem formações culturais e posições políticas convergentes e divergentes.
Não acho que o problema da crise na Ucrânia seja apenas político e econômico, embora tenha surgido na grande mídia com tal conotação, até porque esse foi o estopim. Vai muito além disso. Infelizmente, a imprensa tem a mania de aproveitar o fato de que não pensamos em plano cartesiano. Então nos bombardeiam com informações que nos confundem demais ou nos permitem julgar algo da maneira mais superficial possível.
Na minha avaliação pessoal, as manifestações na Ucrânia têm a ver com a sua própria trajetória e as muitas transições que surgiram em centenas de anos, começando pelo século 7. É um país com uma história bem complicada de dominância e submissividade. Me recordo que a Ucrânia já sofreu influência russa, búlgara, polaca, lituana, cossaca, mongol, cazar, tártara, viking e bizantina. E acho que tem mais por aí…
Hoje, muitos preferem não pensar muito sobre o assunto, incorrendo no erro de simplesmente amar ou odiar a Rússia, concordar ou discordar das manifestações na Ucrânia. Acho que mais importante do que julgar objetivamente a influência oriental ou ocidental é a necessidade de ponderar sobre uma resolução baseada na diplomacia. Sim, os nacionalistas ucranianos odeiam a Rússia e isso tem muito tempo. Usam símbolos controversos para afrontar os russos.
Não são poucos os jovens que desfilam pelas ruas de Kiev gritando “Heil Hitler”, o popular 88 do movimento nazista, bem como as 14 palavras do slogan “Devemos assegurar a existência de nosso povo e um futuro para as crianças brancas.” São clichês perpetuados há muito tempo. Entretanto, até que ponto e em que proporção isso representa o pensamento do povo ucraniano? Simplesmente não representa. É apenas uma das vozes da Ucrânia moderna, mas está longe de conquistar a simpatia da maioria, como alguns tentam pincelar.
Considero justas algumas reivindicações dos nacionalistas. Embora dentre os defensores do Nacional Socialismo ucraniano tenha muita gente endossando o movimento somente durante as manifestações, há boas justificativas para não simpatizarem com a Rússia. Entre os anos de 1917 e 1921, os soviéticos perseguiram Nestor Makhno, o maior líder da Revolução Ucraniana. Contrário aos bolcheviques, se tornou o principal desafeto de Leon Trotsky.
À época, o intelectual marxista contratou dois homens para assassiná-lo. Não conseguiram porque o ucraniano fugiu para a França, onde viveu até morrer de tuberculose. Nem todos tiveram a mesma sorte. Antes o Exército Vermelho dizimou milhares de ucranianos. Pouco tempo depois, em 1930, foi a vez de Josef Stalin promover dois dos maiores genocídios do povo ucraniano. Com isso, a Ucrânia enterrou parte de sua herança cultural, já que entre os mortos estavam muitos artistas e intelectuais. Isso explica, mas não justifica o ódio generalizado dos nacionalistas ucranianos contra os russos.
O nacionalismo surge como força transformadora em momentos de grande vulnerabilidade. Ele é contraditório em essência porque consegue ser bom e ao mesmo tempo ruim. É bom porque obriga o ser humano a assumir uma posição ativa, olhar para si mesmo, para sua história e a dos seus. Em concomitância, é ruim porque o cega para suas falhas e o faz julgar o que é diferente como uma deformidade, uma degeneração com um viés idiossincrásico bem limitado. Além disso, como defender um Estado e uma cultura homogênea quando a própria arquitetura do país simboliza a diversidade? Uma das sete maravilhas da Ucrânia é o Castelo Kamianets-Podilskyi, um símbolo do multiculturalismo do Leste Europeu.
É importante levar em conta que a Ucrânia é um país com mais de 7,5 milhões de pessoas de origem russa. Sendo assim, o que aconteceria com os ucranianos de origem russa, caso os nacionalistas assumissem o poder? Quando falo em diplomacia, penso que seria justo os ucranianos terem direito a uma maior “ocidentalização”, se for o desejo da maioria, assim como ouvir e avaliar as queixas dos nacionalistas.
Por outro lado, também é certo assegurar os direitos dos russos que vivem na Ucrânia, afinal, eles também estão lá para contribuir, trabalhar e constituir família. Não devem ser responsabilizados por algo que não fizeram. Ser Pró-Rússia na Ucrânia é ainda uma forma de autodefesa para muitos descendentes de russos e outras minorias.
Ouso dizer que a história da Ucrânia faz parte da história da Rússia e vice-versa. O maior exemplo disso é “A Crônica Primária”, um trabalho que ganhou status de documento em 1767. A obra é de autoria de Nestor, considerado um dos maiores estudiosos da cultura eslava de todos os tempos.
David Arioch, apenas um entusiasta da cultura do Leste Europeu.
Independência e sangue
O que o mundo ignorou sobre a Guerra da Tchetchênia
Nos anos 1990, a Guerra da Tchetchênia entrou para a história como um dos grandes momentos de selvageria e carnificina da humanidade, chegando a ser comparada com a Segunda Guerra Mundial. O conflito foi desencadeado ao Sul da Rússia, desestabilizando completamente uma região ocupada por uma população castigada por condições precárias de vida.
A primeira fase da Guerra da Tchetchênia teve início em 1994, quando tropas russas atacaram indiscriminadamente cidades e vilas. Tudo em represália à tentativa dos tchetchenos de serem independentes e criarem um estado autônomo. Os soldados russos não hesitavam em matar e estuprar civis, além de saquear e queimar residências e lojas. O trunfo da Mãe Rússia eram as grandes formações de aviões e tanques com artilharia pesada que em poucas horas causavam enormes estragos.
Nem mesmo as crianças eram poupadas, tanto que a beligerância é lembrada como um momento histórico de revelia aos direitos humanos e às leis de guerra. Sobre o assunto, até hoje o mundo e a grande imprensa pouco se manifestou, segundo o jornalista estadunidense Barry Renfrew que por muitos anos atuou como correspondente de guerra da Agência Associated Press.
Matar ou morrer por um ideal
A guerrilha tchetchena se articulou para dar o troco nos opressores e conseguiu. Mais motivados e bem preparados que os russos, os guerrilheiros lutavam pelo nacionalismo e ódio étnico. O propósito era matar ou morrer por um ideal. Já os russos chegaram a um ponto em que estavam mais preocupados em sobreviver às investidas dos guerrilheiros do que vencer. “Foi uma guerra tão selvagem que não há justificativas para explicá-la”, comenta Renfrew que assistiu de perto o constituído governo democrático russo buscar no seu passado de ferocidade medieval e totalitarismo os métodos mais cruéis para punir o povo da Tchetchênia.
Enquanto os russos viam os tchetchenos como selvagens traiçoeiros e criminosos, os tchetchenos encaravam os russos como conquistadores cruéis e espoliadores de sua pátria. “A Rússia é uma colcha de retalhos formada por muitos grupos étnicos que foram conquistados à força. E todo governo russo, independente de ideologia, sempre acreditou que a preservação desse império deve ser mantida a qualquer custo”, diz o jornalista. A dissolução da União Soviética já havia sido encarada como um pesadelo que feriu profundamente o orgulho russo, então a possibilidade de perder qualquer território, por menor que fosse, era algo inaceitável.
Um povo nacionalista e marcial
Os tchetchenos, desde sempre conhecidos como um povo nacionalista e marcial, foram os últimos a serem conquistados pela Rússia Czarista do Século XIX. Certa vez, na década de 1940, em punição a não subserviência dos tchetchenos, o líder soviético Josef Stalin deportou centenas de milhares de homens, mulheres e crianças para a Ásia Central, onde a maioria morreu sob terríveis condições. A resistência dos tchetchenos chegou ao ápice em 1991, quando aproveitaram o colapso da União Soviética e declararam independência.
“Para eles, ser independente é um fato indiscutível da natureza, assim como as montanhas que cercam suas terras. Eles não precisam se justificar. E se você tenta questioná-los sobre isso, recebe um olhar reprovador”, explica Barry Renfrew. Quem também não se posicionou sobre essa guerra foi a Justiça Internacional. O Ocidente fechou os olhos para a Tchetchênia e tratou o conflito como uma questão interna sem base legal para intervenção externa, mesmo ciente de que os russos foram responsáveis pela morte de milhares de civis tchetchenos. “A verdade é que o Ocidente preferiu apoiar Boris Iéltsin e o seu dito governo pró-ocidental em Moscou. Se limitou a simplesmente fazer apelos por uma conduta ‘mais moderada’”, frisa o jornalista.
O papel do exército
Em dezembro de 1994, os soldados russos chegaram à Tchetchênia, onde se surpreenderam com a grande quantidade de mulheres e crianças tentando bloquear a entrada dos tanques. A maioria implorava para que voltassem para a Rússia. Um general decidiu suspender a invasão alegando que o papel do exército não era lutar contra os próprios cidadãos. Mas nada disso impediu a tragédia que estava por vir. Mais tropas russas invadiram a Tchetchênia em uma ação prevista como rápida e inofensiva para os civis.
“A situação saiu de controle e se transformou em um desastre. Os russos começaram a bombardear os assentamentos civis. Bem organizados, os tchetchenos capturaram aviadores inimigos e em alguns casos nem se deram o trabalho de transformá-los em prisioneiros. Para servir de lição, alguns foram mortos lá mesmo”, enfatiza Renfrew que viu o despreparo do exército russo nas investidas em solo tchetcheno.
Quando Grozny sucumbiu
Grozny, a capital, sucumbiu diante de uma truculenta batalha campal. Enquanto por terra a artilharia pesada dos tanques martelava a cidade. Pelos céus, os russos apelavam para as sequências de bombardeamentos aleatórios, como se não houvesse uma real estratégia de atuação. “A meta parecia ser pulverizar a cidade, pois estavam destruindo tudo”, lembra. Um fato curioso é que a maior parte de Grozny era ocupada por uma população de etnia russa. Desesperados, os sobreviventes fugiam para as aldeias vizinhas.
A capital foi a mais castigada porque a Rússia acreditava que a maior base insurgente se situava no coração de Grozny. Até aquele momento, os tchetchenos se refugiavam em grandes blocos de apartamentos, onde era possível reforçar as proteções, tornando-as mais resistente aos ataques. “Eu podia ver claramente que ambos os lados fariam de tudo para ganhar. O interesse maior era derrubar o inimigo”, comenta Renfrew. Embora contassem com menos armamento militar, os tchetchenos conseguiram render muitos inimigos. Aqueles que não foram mortos receberam bom tratamento e foram até liberados.
No Verão de 1996, o Kremlin declarou ao mundo que a vitória na Tchetchênia estava assegurada, após um ataque surpresa que culminou na captura de vários líderes do movimento separatista. “Não foi bem isso que aconteceu. A Rússia retirou suas forças da Tchetchênia para salvar a própria imagem. Não havia esperança de vitória militar”, avalia o jornalista estadunidense.
A imposição russa em 2000
A Rússia apenas conseguiu se impor sobre os separatistas em 2000, quando restaurou o domínio direto da Tchetchênia ao destruir Grozny. Resistentes, os rebeldes montaram uma base de ataque nas colinas. Com o passar dos anos, os tchetchenos sofreram grandes baixas. Uma das maiores foi a morte do líder separatista Aslan Maskhadov em março de 2005, seguida pela do comandante militar Shamil Basayev, assassinado em julho de 2006.
Entre as muitas crianças mortas pelos russos entre os anos de 1999 e 2000 estava Tapa Arskeyov, irmão de Dmitri Arskeyov. Tapa que tinha 12 anos acompanhava o pai Sergey, na tentativa de convencer um grupo de soldados russos a não invadir uma área escolar em Grozny. Foi uma tentativa em vão, embora um dos invasores tenha se sensibilizado com a situação.
“Outros que vinham atrás viram meu pai e Tapa com as mãos para o alto; apenas acenavam. Antes que os russos perguntassem qualquer coisa, atiraram contra suas cabeças. Os dois caíram mortos”, confidencia Dmitri Arskeyov que hoje tem 25 anos. Enquanto alguns russos ficaram chocados com o acontecimento, outros simplesmente riram e seguiram adiante, sem se importar com os corpos de pai e filho já caídos sem vida sobre o solo. Dmitri e a mãe Lydia tiveram de recolhê-los com um carrinho de mão.
Um criminoso de guerra no poder
Em 2007, Ramzan Kadyrov, filho do ex-presidente Akhmad Kadyrov, assassinado em 2004, assumiu a presidência da Tchetchênia, tendo como principal apoiador o presidente russo Vladimir Putin. Na segunda fase do conflito, as forças russas e seus aliados tchetchenos foram acusados de abuso generalizado de civis, incluindo desaparecimentos, torturas e matança indiscriminada. Grupos de direitos humanos internacionais estimaram que até cinco mil civis foram sequestrados por forças russas ou pró-Rússia.
Muitos inocentes eram violentados brutalmente para assumirem ligação com a guerrilha, mesmo quando não tinham qualquer relação com grupos separatistas. As forças de Kadyrov, conhecida como Kadyrovtsy, são creditadas por levarem a cabo a maior parte das abduções, tanto que a Federação Internacional de Helsinki para Direitos Humanos descobriu que a Kadyrovtsy operava uma rede de prisões secretas na Tchetchênia. O grupo é responsável por 75% dos crimes de guerra cometidos contra os tchetchenos. Ainda assim, quando reassumiu a localidade, a Rússia fez questão de oferecer o cargo de presidente da Tchetchênia ao criminoso de guerra Ramzan Kadyrov.
Como reflexo da guerra, até hoje as forças russas de segurança da Tchetchênia permanecem mal treinadas, indisciplinadas e corruptas. E isso tem relação direta com a pouca responsabilidade pelos abusos que cometeram ao longo de muitos anos. “Todos os militares russos julgados pelos crimes na Tchetchênia foram absolvidos ou receberam penas modestas. Me recordo do episódio de dois soldados que saíram impunes, após matarem seis civis em 2005”, exemplifica o jornalista Barry Renfrew. A justiça russa aceitou a alegação de que os acusados seguiam apenas ordens superiores, algo incompatível com um verdadeiro julgamento de guerra.
A retaliação tchetchena
Conforme se intensificou o ataque aos civis tchetchenos, os guerrilheiros decidiram levar a guerra até a Rússia. Lá, os rebeldes usaram civis como escudos humanos. Um dos episódios mais marcantes foi registrado em outubro de 2002, quando os tchetchenos tomaram um teatro em Moscou durante a realização de um musical popular. Nesse dia, os próprios russos mataram os reféns quando liberaram um gás venenoso.
Dois anos depois, os separatistas fizeram mil reféns em uma escola na cidade de Beslan, o que acabou na morte de 330 pessoas. Também houve ataques a hospitais, concertos públicos e áreas residenciais. O comandante tchetcheno Shamil Basayev declarou em 2005 que era preciso fazer com que todos os russos sentissem a dor da guerra. “A responsabilidade é de toda a nação russa. Se a guerra não chega até eles individualmente, ela nunca terá seu fim na Tchetchênia”, disse Basayev.
A repreensão tardia
Os Estados Unidos e alguns outros países ocidentais tardiamente decidiram repreender a Rússia pela negligência quanto aos direitos humanos na guerra. Em 2000, o então presidente estadunidense George Bush ameaçou interromper a ajuda que dava à Rússia, caso continuassem matando mulheres e crianças – deixando muitos refugiados tchetchenos órfãos. Mas tudo mudou após o 11 de setembro de 2001 e o surgimento de alegações de que alguns comandantes da Tchetchênia tinham ligação com a Al Qaeda e outros grupos terroristas internacionais.
Espertos, os russos aproveitaram o sentimento anti-islâmico para vender a ideia de que a luta na Tchechênia tinha como objetivo evitar a criação de um estado islâmico terrorista. Mesmo recebendo severas críticas da União Europeia, a Rússia conseguiu sair vitoriosa da situação. Em pouco tempo, a questão quase desapareceu das pautas da política internacional. “A Rússia transformou a Tchetchênia em um país perigoso tanto para os tchetchenos quanto para os estrangeiros. Hoje em dia, infelizmente, há pouca discussão pública sobre a Tchetchênia”, lamenta Renfrew.
Sobre Barry Renfrew
O jornalista Barry Renfrew começou a trabalhar na Associated Press em 1978. Desde então, já atuou como correspondente de guerra em Sydney, Moscou, Joanesburgo, Seul, Islamabad, Cabul e Londres. Antes de se tornar um dos diretores mais importantes da AP, Renfrew foi chefe do escritório no Paquistão e trabalhou na sede da Associated Press em Nova York e também na Virgínia Ocidental.
Curiosidade
Imagens do documentário “Melancholian 3 Huonetta” que mostra as consequências da Guerra da Tchechênia. A música é da banda de post-rock finlandesa Magyar Posse – Single Sparks Are Spectral Fires.
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