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“Não teremos paz enquanto derramarmos sangue de animais”
No livro “Food for the Spirit: Vegetarianism and the World Religions”, de Steven Rosen, lançado em 1987, o escritor judeu e vegetariano Isaac Bashevis Singer afirmou que não teremos paz enquanto derramarmos sangue de animais.
“Foi necessário um pequeno passo baseado na matança de animais para que fossem construídas as câmaras de gás de Hitler e os campos de concentração [gulags] de Stalin. Todas essas ações foram praticadas em nome da [suposta] justiça social. Não haverá justiça enquanto o homem empunhar uma faca ou outra arma para destruir seres mais fracos que ele”, queixou-se.
Gary Francione rebate críticas bem-estaristas e explica por que o veganismo é uma questão de justiça
Esta semana, o professor de direito da Rutgers School of Law, de Newark, New Jersey, Gary Francione, uma das referências na luta pelo abolicionismo animal, publicou um artigo intitulado “Veganism as a Matter of Justice: A Short Reply to the Welfarists” nos sites Ecorazzi e Abolitionist Approach. No texto, Francione rebate as afirmações dos bem-estaristas de que o veganismo não é possível no mundo em que vivemos enquanto um imperativo moral, e que é preciso se adaptar à realidade da exploração animal – considerando apenas que devemos minimizar a violência e a crueldade contra as criaturas não humanas, mas sem abrir mão do consumo de alimentos e produtos de origem animal.
Para apoiar essa posição, os bem-estaristas alegam que se compramos alimentos veganos em lojas que vendem produtos de origem animal, não estamos sendo justos, logo não podemos assumir que sob essa perspectiva de permissividade o veganismo está em total acordo com o princípio da justiça que defendemos. Porém, o professor Gary Francione aponta que esse discurso é fragilizado porque, embora tenha como eixo norteador uma suposta baliza moral, é usado de forma capciosa em um contexto bastante específico, sem ponderar abrangência, possibilidade e até mesmo comparação com outras formas de preconceito e condicionamento que vão na contramão da justiça social, embora permitam uma avaliação de cenários congêneres.
Francione diz que quando ele promove o veganismo como um imperativo moral, pelo simples fato de que o veganismo é algo que nós somos moralmente obrigados a adotar, já que não temos o direito de criar e matar animais para nos beneficiar, algum bem-estarista costuma dizer que ao comprar comida vegana no supermercado e dar dinheiro para um explorador de animais, ele não é diferente daqueles que consomem “compassivamente” ovos de galinhas livres de gaiolas, carne de porco criado foras de grades, ou até mesmo daqueles que fazem a “segunda-feira sem carne; ou que trapaceiam e consomem alimentos de origem animal de vez em quando; ou que comem alimentos baseados em animais o tempo todo, mas apenas em pequenas quantidades:
“Os bem-estaristas afirmam que não tenho razão em dizer que o veganismo é uma questão de justiça ou um imperativo moral porque estou sendo injusto e não estou reconhecendo o veganismo como uma obrigação. Mas esse argumento não funciona. Não possui princípio limitativo e leva a uma conclusão aberta. Todo dinheiro é sujo. Então, mesmo que eu compre a minha comida em uma loja vegana, e não em um supermercado convencional, se essa loja emprega pessoas que não são veganas, ou se a loja vegana recebe produtos de pessoas que entregam produtos de origem animal para outras lojas; ou se os alimentos veganos vendidos na loja vegana são criados ou produzidos por fazendeiros ou produtores não veganos, ou se os fazendeiros veganos e os produtores veganos empregam trabalhadores não veganos, eu estou, seguindo o raciocínio dos bem-estaristas, apoiando a exploração. Portanto, os bem-estaristas estão comprometidos com a posição de que até que tenhamos um mundo vegano, não podemos ter a obrigação de nos tornarmos veganos, porque enquanto não tivermos um mundo vegano, não importa o que fizermos, estaremos dando dinheiro para exploradores de animais. Mas isso é claramente absurdo.”
Gary Francione afirma que a posição bem-estarista em relação ao veganismo não é diferente de dizer que não podemos promover a ideia de que o sexismo ou o racismo são injustos se patrocinarmos um negócio que é de propriedade de pessoas que são sexistas ou racistas, considerando que muitas empresas são de propriedade de corporações, e corporações são de propriedade de acionistas. Dado o nível de sexismo e racismo na população, isso significa, na sua concepção, que 99,9% do tempo, quando fazemos compras, estamos patrocinando um negócio que é de propriedade de racistas ou sexistas. Mesmo que esse negócio não seja de propriedade de racistas ou sexistas, existem racistas e sexistas que têm alguma conexão com o negócio para cujos bolsos nosso dinheiro está indo. Portanto, na perspectiva de Francione, o discurso dos bem-estaristas dá a entender que não podemos dizer que o sexismo ou racismo é injusto porque estamos sempre colocando dinheiro nos bolsos de racistas ou sexistas em algum ponto do caminho:
“Mas ninguém diria que não devemos falar sobre igualdade com um imperativo moral, porque ainda não alcançamos a igualdade. A maioria das pessoas veria o completo absurdo dessa posição. Mas ‘pessoas animais’ promovem essa posição absurda quando se trata de animais [não humanos]. E isso é muito especista.”
O professor Gary Francione também declara que os bem-estaristas não raramente afirmam que não podemos ser ‘100% veganos’ porque há produtos de origem animal em plásticos, superfícies de estradas, pneus e muitas outras coisas com as quais não podemos evitar contato. Portanto, segundo eles, não podemos insistir no veganismo como um imperativo moral e como um princípio de justiça porque não há diferença entre uma pessoa que tem um celular feito de plástico e contém algum subproduto de origem animal, e uma pessoa que come um pouco de queijo, ou ovos de galinhas “criadas soltas”, ou caldo de galinha em uma sopa de legumes, etc.:
“Mais uma vez, esta posição é absurda. Primeiro de tudo, ser vegano significa não comer, vestir ou usar produtos de origem animal na medida do praticável – onde se tem uma escolha significativa. Podemos decidir o que comer e usar ou quais produtos usar. A justiça exige que não escolhamos coisas que contenham partes do corpo de pessoas exploradas – humanas e não humanas – sempre que tivermos uma escolha. Nós não temos escolha sobre o que foi colocado na superfície das estradas ou em plásticos, que são usados para quase tudo que existe. Em segundo lugar, a razão pela qual há subprodutos de origem animal em tudo é porque matamos mais de um trilhão de animais em todo o mundo anualmente. Os subprodutos de matadouros são baratos e prontamente disponíveis. E isso continuará enquanto continuarmos a consumir produtos de origem animal.”
Para Francione, é importante compreender que nunca aceitaríamos tal argumento se isso se aplicasse ao contexto humano. Essa transigência só existe porque falamos de seres de outras espécies, que são vulneráveis, e culturalmente e historicamente estão sob o jugo humano há muito tempo:
“Considere o seguinte: em uma sociedade racista e sexista, pessoas brancas e homens se beneficiam porque o racismo e o sexismo efetivamente transferem riquezas (dinheiro, oportunidades de trabalho, etc.) para longe de pessoas que são discriminadas e para aqueles que estão em classes ou grupos privilegiados. Se aplicássemos o argumento bem-estarista a esse contexto, teríamos que concluir que os brancos não podem argumentar que o racismo é injusto porque os brancos privilegiados não têm escolha a não ser se beneficiar do racismo (assim como os veganos não têm escolha senão usar os caminhos oferecidos). Teríamos que concluir que os homens se beneficiam do sexismo e da misoginia apenas em virtude de serem homens (assim como os veganos entram em contato com os plásticos que estão em tudo). Mas ninguém tomaria essa posição no contexto humano.”
Uma afirmação que Gary Francione aponta como uma das mais equivocadas dos bem-estaristas é a de que como não podemos evitar subprodutos de origem animal em tudo que nos rodeia, não podemos afirmar que é injusto escolher consumir esses produtos de origem animal quando “há uma escolha”. Sendo assim, ele defende que a posição bem-estarista é exatamente o mesmo que dizer que, porque as pessoas brancas se beneficiam do racismo, não há diferença entre a pessoa branca que se opõe ao racismo e a pessoa branca que se engaja em uma conduta menos racista.
“A posição bem-estarista é exatamente como dizer que, porque os homens se beneficiam do sexismo mesmo quando se opõem a ele, não há diferença entre o homem que se opõe ao sexismo e o homem que realmente agride as mulheres de vez em quando. Mais uma vez, ninguém tomaria essas posições no contexto humano. Devemos rejeitar a posição flagrante e bem-estarista do especismo por uma questão muito clara. Se você não é vegano, por favor, seja vegano. É uma questão de um imperativo moral. É uma questão de justiça”, argumenta e sugere.
Referência
Francione, Gary. Veganism as a Matter of Justice: A Short Reply to the Welfarists. Ecorazzi (2 de abril de 2018).
Sou um justiceiro social…
Sou um justiceiro social, odeio as desigualdades sociais, as mazelas econômicas e políticas, sou contra a formação de latifúndios, mas não abro mão de ir ao mercado comprar minha carne, minhas caixinhas de leite e meus ovos.
Não me importo que isso signifique a manutenção do status quo, que esse dinheiro seja usado com finalidades que não me interessam, que sirva para eleger políticos que vão legislar em causa própria ou em benefício daqueles que os financiaram.
Tanto faz se isso tem impacto no meio ambiente, se nesse meio há casos de mão de obra análoga ao trabalho escravo; e menos ainda me importa se animais vão sofrer por causa disso. O mais importante é eu não saber de nada disso, porque assim posso continuar lutando por “justiça para todos”, uma justiça pela qual sou capaz de tudo, menos readaptar o meu paladar.
O que você pensa sobre as desigualdades sociais?
Não é muito difícil descobrir ou pelo menos inferir o que uma pessoa pensa sobre as desigualdades sociais. Basta questioná-la sobre o que ela acharia de um mundo baseado em igualdade; onde uns não seriam absurdamente mais ricos do que outros. Até mesmo a hesitação, a expressão, pode dar um indicativo da resposta. Você já pensou sobre isso?
Estaria tudo bem para você não ter mais dinheiro do que os outros? Mais coisas do que os outros? Não poder se exaltar de suas aquisições materiais? E simplesmente porque o que você tem o outro também tem? Ou pelo menos ter o direito de ter se ele quiser. Ou imagine então um mundo onde as pessoas não dariam a mínima para coisas, porque coisas são basicamente o que são – em muitos casos, produtos aos quais atribuímos mais valor pelo que nos custam, pela exceção, pelo distanciamento que existe entre elas e os outros, do que pelo que são em um sentido funcional ou mesmo hedonista.
Há também pessoas com muito dinheiro que tendem a considerar seus chamados esforços, envolvam eles atividades ilícitas ou não, desrespeito ou não à vida e a dignidade humana e não humana, como sendo únicos, singulares, e por isso devem ser recompensados de forma dissemelhante, mesmo que isso signifique uma diferença do tipo: “O que você jamais ganhará a vida toda eu ganho em uma semana”. “Eu fiz o que você não seria capaz de fazer. Por isso estou onde deveria estar, onde não é o seu lugar.”
“Porque o meu esforço é muito maior que o seu, sou muito mais inteligente que você, então mereço, de fato, ganhar muito mais que você; e a você resta me servir, mesmo que para isso tenhamos que criar um simulacro de evolução para evitar que você ache que sua vida não está melhorando.” Em síntese, uma sutil estagnação oscilante. “Afinal, porque isso é o que cabe à sua limitada competência que está sempre longe de se igualar à minha”, diriam.
Muitas das mazelas que existem no mundo estão intrinsecamente relacionadas ao fato de que muitos daqueles que têm poder encaram sua força e distinção econômica como uma forma de certidão de superioridade, e o mundo diz que eles estão certos, por mais que leis que não valem na prática tentem informar o contrário. Porque leis são fundamentadas na plasticidade. Existem mais para parecer do que para ser.
E a sociedade e o sistema em que estamos imersos manda iterados sinais de que isso é pura vericidade. E o que dificulta qualquer mudança não é a incapacidade de reconhecer que isso não é benéfico para a maioria, mas sim que desde sempre, até mesmo entre os mais miseráveis há aqueles que não gostariam de um mundo justo, de igualdade; logo jamais lutariam por isso se desejam ocupar a posição daqueles que “estão no topo”, sejam eles criminosos ou não. Claro, porque a sua inexistência é uma consequência natural do que você não possui, segundo a perspectiva comum. Então perpetua-se a crença de que existirei à medida do que terei.
Veganos e o compromisso de não contribuir com a exploração animal
De vez em quando me deparo com alguém dizendo que veganos são hipócritas porque não estão livres de usarem algo de origem animal. Sim, essa pessoa tem razão ao dizer que não estamos livres de usarmos algo de origem animal, ou testado em animais. Mas sabe por que não somos hipócritas?
Justamente porque tomamos para nós a responsabilidade de não contribuir com a exploração animal. Afinal, nos esforçamos para evitá-la. Sabemos que a exploração existe, e temos conhecimento do mal que ela causa. E é por isso que entendemos que não temos o direito de fazer isso com os animais. Então ser vegano é um esforço constante de se livrar das armadilhas de uma indústria que explora os animais o máximo possível.
Hipocrisia, no meu entendimento, e aproveitando esse discurso agressivo que não raramente encontro por aí, é o fato de saber que a exploração animal existe, que é possível se esforçar para não tomar parte nisso, e ainda assim virar as costas e apontar o dedo para quem tenta contribuir com uma vida mais digna para os animais não humanos.
Muitos veganos se empenham em conscientizar as pessoas sobre as consequências que envolvem a fabricação dos muitos produtos de origem animal. E a partir do momento que a indústria reconhece que as pessoas já não aprovam o uso de animais em um produto, ou que sejam realizados testes em animais, ela é obrigada a rever o seu papel, se não junto aos animais, pelo menos junto aos consumidores, o que já força uma desaceleração que envolve esse tipo de exploração.
É importante não ignorar que se estamos imersos em um universo onde a maior parte dos produtos é de origem animal, ou pelo menos traz algo de origem animal na composição, é porque a maioria da população segue indiferente à exploração e ao sofrimento animal; assim inexistindo uma grande demanda que poderia mudar os rumos das nossas relações com os animais. Sem dúvida, as opções de alimentos e outros produtos isentos de exploração animal vão surgindo conforme as pessoas se recusarem a alimentar esse sistema injusto e mortífero.
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Não brigo para parecer mais ou menos vegano aos olhos de ninguém
Não brigo para parecer mais ou menos vegano aos olhos de ninguém. O foco do meu trabalho não é esse, mas sim informar, conscientizar e sensibilizar as pessoas sobre a exploração animal. Sou um cara comum, que anda e vive como uma pessoa comum. Como já disse outras vezes, as pessoas podem me chamar do que elas quiserem: vegano, vegetariano ou nada. Eu me importaria ou brigaria por algo assim se a minha luta fosse por identidade, mas não é. Minha luta é por justiça, e essa luta independe disso.
Abdicar do consumo de laticínios é um ato de justiça em prol dos animais
Considero um equívoco quando alguém me diz que o problema do sofrimento dos animais nos grandes laticínios poderia ser resolvido se as pessoas comprassem leite de pequenos produtores. Tudo bem, então você compra leite do pequeno produtor e eu também. Daí quando as pessoas perguntarem, explicamos que o ideal é nunca comprar de grandes produtores.
Em pouco tempo, teremos uma infinidade de pessoas indo pelo mesmo caminho, e assim esses pequenos produtores serão obrigados a tornarem-se grandes produtores ou a saírem do negócio, já que eles deverão suprir a demanda ou ceder espaço para quem faça isso. A verdade é que enquanto as pessoas continuarem consumindo leite, inclusive muito mais do que os próprios bezerros, a intensa exploração da vaca vai continuar. Afinal, usa-se leite em quase tudo, até mesmo na composição de adoçantes.
Não há uma solução mais sustentável do que abdicar desse consumo, muito menos como evitar que todas as vacas do mundo passem por algum tipo de sofrimento ou privação enquanto as pessoas consomem quantidades exorbitantes e mesmo nocivas de laticínios. Não existe nem mesmo área para que todas as vacas da indústria leiteira sejam criadas de forma “humanizada”. Afinal, essa é a realidade do sistema industrial predominante, que atua conforme a demanda. E se a demanda é grande, o ritmo de produção é acelerado, o que significa que mais do que nunca o lucro se torna prioritário.
Além disso, os produtores de leite do Brasil descobriram há muito tempo que é possível lucrar até três ou quatro vezes mais criando o gado leiteiro sob regime de confinamento, seguindo o exemplo de países como os Estados Unidos. Logo não vejo por qual motivo eles iriam abdicar desse sistema se não for por força de uma grande desaceleração no consumo, já que o mercado age em conformidade com as reações dos consumidores.
Um fato a se considerar sobre a produção nacional de leite é que em 2015, de acordo com dados da Leite Brasil, somente as 15 maiores empresas do ramo de laticínios do Brasil foram responsáveis por quase 10 bilhões de litros de leite. Só a Nestlé respondeu por 1,8 bilhão de litros. Levando isso em conta, como alguém pode afirmar que não contribui com a exploração industrial das vacas simplesmente porque não bebe o leite comercializado por grandes produtores? Isso não diz nada.
Seria uma grande ilusão, a não ser que a pessoa seja vegetariana ou vegana, porque quem consome laticínios, ou não lê os rótulos dos produtos (que costumam conter derivados lácteos) e os compra, naturalmente contribui para a manutenção desse sistema. Mesmo que alguém afirme que as vacas sejam “bem tratadas”, que não sofrem violência, isso não muda o fato de que elas são submetidas à ordenha natural ou mecânica por anos, até que, com a queda da produção, são vendidas aos frigoríficos, abatidas e reduzidas a pedaços de carne expostos em um açougue. Não podemos ignorar também que muitos bezerros também têm a morte como destino por causa da alta demanda de laticínios. Ou seja, o leite que seria usado para alimentar o filhote da vaca é destinado aos seres humanos.
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Ensine seu filho a ser justo com os animais
Ensine seu filho a ser justo com os animais, e assim ele também será justo com os seres humanos. Mas se permite que ele seja pernicioso com os animais não humanos, provavelmente ele entenderá que não há problema em ser injusto também com os de sua espécie, já que o seu senso de justiça há de diluir-se em seu ego.
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Coetzee: “É mais fácil bloquear nossas simpatias enquanto torcemos o pescoço do frango que vamos comer”
Um vencedor do Nobel de Literatura preocupado em mudar as mentes e os corações das pessoas em relação aos animais
O escritor sul-africano J.M. Coetzee, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 2003, é conhecido como um homem tímido e recluso, que não gosta de dar entrevistas desde 1974, quando iniciou sua carreira literária. Porém, para veículos que atuam em defesa dos direitos animais, ele sempre se mostrou mais receptivo e disposto a fazer concessões.
Um exemplo é uma rara entrevista, intitulada “Animals, Humans, Cruelty and Literature”, publicada em maio de 2004 na revista Satya, fundada em 1994, no Brooklyn, em Nova York. A matéria, baseada na entrevista que o jornalista Henrik Engström realizou com Coetzee por e-mail, veio a público pela primeira vez no jornal sueco Djurens Rätt. Mesmo após a entrevista, o jornal que aborda os direitos animais conseguiu manter contato com o escritor sul-africano ao longo de um ano.
O que diferencia Coetzee de muitos outros atores que abordam a questão animalista é que ele não qualifica o amor e a compaixão pelos animais como imprescindíveis na causa animal. Para o escritor, o mais importante é que os seres humanos reconheçam que não existe justiça quando matamos animais para transformá-los em comida ou produtos, independente de espécie. Ou seja, a exploração animal é inaceitável do ponto de vista moral e ético.
E foi por causa dessa visão que ele recebeu o Prêmio Nobel de Literatura. A sua indicação veio logo após o lançamento do livro “Elizabeth Costello”, de 2003, em que ele dedica dois capítulos a discutir a relação dos seres humanos com os animais. “Os animais estão na minha ficção ocupando um papel subsidiário, em parte, porque eles realmente ocupam um papel meramente subsidiário em nossas vidas. E em parte, porque não é possível escrever sobre a vida dos animais com a devida complexidade”, justificou.
Questionado se ele acredita que a indicação do seu livro ter sido feita justamente pela abordagem da questão animalista, Coetzee admitiu que um único livro não é capaz de mudar o mundo em relação a isso, mas talvez tenha um pequeno impacto. Embora “The Lives of Animals” e “Elizabeth Costello” tenham se popularizado nesse aspecto, a discussão em torno dos direitos animais na literatura do sul-africano começou com o romance “Desonra”, em que os animais ocupam papel consideravelmente proeminente, principalmente quando ele decide realizar trabalho voluntário em um local onde cuidam de animais enfermos e abandonados.
E o que decepcionou Coetzee à época foi o fato de que as editoras ignoraram o papel dos animais em seu livro. “Eles mencionam que o herói do romance se envolve com os defensores dos direitos animais, e ficam nisso. Os personagens refletem a forma como os animais são tratados no mundo em que vivemos, como existências insignificantes que só reconhecemos quando suas vidas cruzam as nossas”, lamentou a Engström.
Coetzee é um escritor que não prioriza a conquista de direitos legais para os animais. Sua maior preocupação é mudar as mentes e os corações das pessoas em relação aos animais. “O mais importante de todos os direitos, é o direito à vida. Não posso prever que um dia os animais terão esse direito em forma de lei. Então o que podemos fazer é mostrar para o maior número de pessoas o custo psíquico e espiritual da forma como tratamos os animais, e assim talvez mudar nossos corações”, enfatizou.
O escritor não qualifica os seres humanos como naturalmente cruéis. Ele exemplifica o fato de que para sermos cruéis teríamos que fechar sempre os nossos corações para o sofrimento do outro. “É inerentemente mais fácil bloquear nossas simpatias enquanto torcemos o pescoço do frango que vamos comer do que anular nossas simpatias pelo homem que vamos enviar para a cadeira elétrica. […] Evoluímos nossos mecanismos psíquicos, sociais e filosóficos para lidar com a matança de aves. Por razões complexas, usamos os mesmos mecanismos para permitir a matança de seres humanos somente em tempos de guerra”, avaliou.
Segundo J.M. Coetzee, um erro que cometemos com muita frequência é o de não perceber que o modo de consciência das espécies não humanas é bem diferente da consciência humana. Acredita-se que o ser humano é capaz de habitar a consciência de um animal, enquanto que por meio da faculdade da simpatia é possível para o ser humano saber como é ser alguém. “Os escritores são reputados por possuir fortemente esta qualidade particular. Se é de fato, ou pelo menos muito difícil habitar a consciência de um animal, então ao escrever sobre os animais, há uma tentação de projetar sobre eles pensamentos e sentimentos que podem pertencer somente à nossa própria mente humana e coração”, ponderou.
Coetzee crê que somos sempre tentados a procurar nos animais o que desperta com mais facilidade nossa simpatia ou empatia, na tentativa de favorecer espécies animais que, por uma razão ou outra, nos parecem quase humanas em seus processos mentais e emocionais. “Assim os cães são tratados como quase humanos, enquanto os répteis são tratados como completamente estranhos”, citou em referência ao especismo, conduta humana que legitima a exploração animal.
Sem animais de estimação em casa, o escritor se contenta em dizer que “considera” ter uma relação pessoal com pássaros e sapos que visitam sua propriedade. “Mas não creio por um minuto que eles acham que têm relações pessoais comigo. Sim, sou vegetariano. Acho que a ideia de encher a minha garganta com fragmentos de cadáveres é extremamente repulsiva, e fico surpreso por tantas pessoas fazerem isso todos os dias”, confidenciou.
Referência
Engström, Henrik. Satya Mag. Animals, Humans, Cruelty and Literature – A Rare Interview with J.M. Coetzee (2004).
http://www.satyamag.com/may04/coetzee.html
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Coetzee: “Animais não precisam do meu amor. Não me preocupo com amor, me preocupo com justiça”
“Basta apenas um olhar para que uma criança se torne vegetariana por toda a sua vida”
Basta apenas um olhar para que uma criança se torne vegetariana por toda a sua vida. Com essas palavras, o escritor sul-africano John Maxwell Coetzee, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 2003, e considerado um dos maiores autores de língua inglesa da atualidade, emocionou uma grande plateia em Sidney, na Austrália, no dia 22 de fevereiro de 2007, quando falou sobre os direitos dos animais. A repercussão foi tão positiva que seu discurso foi publicado em alguns dos mais importantes jornais do mundo.
“Animais felizes transformados de forma indolor em nuggets, o sorriso da vaca do comercial de leite que diz doar o próprio leite para nós. Dada a chance, as crianças sempre verão além das mentiras com as quais somos bombardeados pelos anunciantes. A respeito disso, crianças nos fornecem as mais brilhantes esperanças. Elas têm corações ternos, que não foram endurecidos por anos de conivência com a crueldade e com o comportamento antinatural”, declarou o vegetariano J.M. Coetzee.
Para o escritor avesso a entrevistas, qualquer pessoa disposta a refletir sabe que há algo de muito errado na relação entre os seres humanos e os animais, e isso se tornou mais aberrante nos últimos 100 anos, quando a pecuária se apropriou dos métodos industriais de produção. “A indústria de alimentos supera o comércio de peles e o uso de animais em laboratórios quando falamos em números de vidas animais afetadas. A grande maioria usa e consome produtos dessas indústrias, mas se sente mal quando pensa no que acontece nas fazendas industriais e nos matadouros. Por isso, eles organizam suas vidas de tal maneira que eles evitam pensar nisso. Também fazem de tudo para garantir que seus filhos sejam mantidos na escuridão, porque sabemos que crianças têm bom coração e mudam facilmente”, enfatizou.
Para Coetzee, o primeiro sinal de que os animais já não eram mais vistos como algo além de produtos apareceu no século 19, com o surgimento das primeiras fazendas industriais. Desde então, a humanidade tem se negado a reconhecer que animais não são meras unidades disponíveis à exploração humana. “Este aviso veio tão alto e claro que parecia ser impossível ignorá-lo. Mais tarde, um grupo sanguinário da Alemanha [em referência aos nazistas] teve a ideia de adaptar a metodologia dos currais industriais. Eles foram pioneiros nesse sistema que eles não chamavam de matadouro, mas sim de área de processamento de seres humanos”, assinalou.
Segundo o escritor, naturalmente esse horror chocou a humanidade. Muitos diziam: “Que terrível! Tratar seres humanos como gado!” Considerando isso, ele observou que se talvez as pessoas tivessem refletido um pouco mais à época, a queixa teria sido bem diferente: “O mais justo seria falar: ‘Que crime terrível! Tratar seres humanos como meras unidades de um processo industrial.’ E assim veríamos com outros olhos a proporção desse crime, já que é um crime contra a natureza resumir qualquer ser vivo a uma unidade de um processo industrial”, ponderou.
Independente do que diz os utilitaristas, Coetzee argumentou que a pecuária tradicional sempre foi suficientemente brutal. Sobre a exploração animal, pessoas sempre dirão: “Sim, é terrível a forma como vivem as porcas reprodutoras e os vitelos. Mas, quem vai, em seguida, encolher seus ombros e perguntar: ‘O que posso fazer sobre isso?’”, criticou o escritor sul-africano.
O papel do movimento em defesa dos direitos dos animais é oferecer opções para que as pessoas saibam o que fazer logo que descobrem o que acontece com os animais. “As pessoas precisam saber que há alternativas aos produtos de origem animal. Que essa alternativa não exige sacrifícios em saúde e nutrição, e nem mesmo são caras. O único sacrifício envolvido nisso é dos próprios animais não humanos”, destacou J.M. Coetzee.
O escritor também apontou para um fenômeno alentador. O fato de que atualmente as indústrias que exploram animais estão sendo empurradas para a defensiva. Ou seja, hoje, elas são sempre questionadas sobre suas ações. “As organizações de direitos dos animais mostram que as práticas indefensáveis e injustificáveis da indústria têm tão e somente motivações econômicas. A indústria está indo ladeia abaixo e já prevê que uma tempestade vai arrastá-la. Na medida em que há uma guerra de relações públicas, a indústria prova que já perdeu essa guerra”, analisou.
No dia 30 de junho de 2016, J.M. Coetzee também abordou os direitos dos animais no auditório do Museu Reina Sofia, em Madrid, na Espanha. “Eu não sou um amante dos animais. Animais não precisam do meu amor. Não me preocupo com amor, me preocupo com justiça”, informou Coetzee de antemão. Vegetariano, o escritor sul-africano tem ajudado a promover os direitos dos animais há várias décadas.
Uma de suas obras mais importantes, e que fala justamente sobre o assunto, é a novela metaficcional “The Lives of Animals”, publicada pela editora da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, em 1999. A obra de caráter filosófico gira em torno dos conflitos vividos por uma professora e conferencista vegetariana que, ao advogar os direitos dos animais, encontra resistência no âmbito familiar e no trabalho. “Humanos pensam que são muito mais importantes do que os animais. Por isso, rejeitam a consciência animal. As pessoas precisam cultivar sua empatia”, defendeu J.M. Coetzee.
Saiba Mais
John Maxwell Coetzee nasceu em 9 de fevereiro de 1940 na Cidade do Cabo, na África do Sul.
Referências
Coetzee, J.M. Exposing the beast: factory farming must be called to the slaughterhouse. Opinions – Article. The Sydney Morning Herald, Austrália (22/02/2007).
Coetzee, J.M.. Animals can’t speak for themselves – it’s up to us to do it. Opinions – Article. The Age, Austrália (22/02/2007).
AFP. Nobel laureate J.M. Coetzee speaks against animal cruelty. Daily Mail, Reino Unido (01/07/2016).
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