Archive for the ‘Juventude’ tag
As malandragens de Nebrão
“Sofri tanto que nunca mais quis saber de me meter noutra roubada do tipo”
Há alguns anos, conheci na Vila Alta, periferia de Paranavaí, o jovem Nebrão. Hoje, ele leva uma vida pacata atuando como servente de pedreiro, mas nem sempre foi assim. Sua infância, um “misto de coisas boas e ruins”, como ele mesmo define, foi marcada por muita malandragem, assim como a adolescência e os primeiros anos da fase adulta.
“Eu era ‘terrorista’, quebrava as coisas da minha mãe, fazia bagunça e judiava da minha irmã. Depois ela se vingava de mim. Eu vivia brigando com a molecada na rua. Dos 8 aos 10 anos, todo dia eu batia em alguém e depois corria. Daí se juntavam para me pegar”, conta rindo.
Naquele tempo havia uma família no bairro que prometeu não dar paz a Nebrão depois que ele matou a coruja importada do patriarca. “O homem ficou louco quando soube. Eu era novo de tudo e uma vizinha que denunciou. Passei a mão no estilingue e matei o bicho. Rapaz, e a coruja não era do velho? Veio uma tropa de molecada e eu pensei: ‘Agora é perna pra quem tem. Saí no pau’”, relata às gargalhadas, acrescentando que no dia seguinte o espancaram em retaliação pela morte da coruja.
E a vingança continuou. Em dia de festa no bairro, caso algum familiar do dono da coruja morta visse Nebrão passeando, a recomendação era dar-lhe uma nova surra. “Já baguncei nesta Vila Alta, hein? Muito mesmo! Eu catava cavalo que tinha dono e saía por aí montando. Eles procuravam o bicho e nada. Aquela barragem lá embaixo tinha uma caixona fechada de concreto que dava pra gente nadar legal. Então tinha época que eu nem queria trabalhar. Só ficar na barragem, curtindo um sol de ‘arrancar o coriri’. Lá era o lugar. Só paramos de ir lá depois que começaram a matar gente”, reclama.
Malandro, Nebrão se envolveu em situações que quem não o conhece diria que não passa de invencionice. Um dia quando ele ouviu que um conhecido morador do bairro faleceu na Santa Casa de Paranavaí, não pensou duas vezes antes de subir na carroça para visitar a casa do homem. Chegando lá, Nebrão viu que não havia ninguém e fez “várias viagens” transportando todos os móveis do falecido na carroça.
Em casa, não conseguiu velar a alegria ao observar a bela mobília. Chegou a deslizar as mãos por ela como se estivesse tocando o corpo de uma mulher. A imaginou se destacando em sua humilde residência improvisada com tábuas. Em pouco tempo soube que mentiram para ele. O homem estava vivo e prestes a receber alta. Então correu para devolver todos os móveis. “Ele morava sozinho e não tinha família, por isso fiz o que fiz”, justifica Nebrão que admite ter se arrependido.
Mas as estripulias do rapaz não pararam aí. Uma vez ficou sabendo que havia uma madeireira em Paranavaí que comprava pontes desmontadas a “preço de ouro”. “Fiquei ambicioso e armei um plano. Fui até o Bosque Municipal de Paranavaí e desmontei sozinho a bela ponte de madeira que cobria o córrego. Fiz ‘várias viagens’ de carroça e fui entregar numa madeireira pra receber o meu. Só que alguém me denunciou e a polícia militar veio no meu encalço”, lembra.
Depois do flagrante, Nebrão teve de levar a ponte de volta para o bosque e os policiais que o acompanharam assistiram ele remontá-la. “O trabalho ficou supimpa, irmão! Comigo não tem erro. Serviço de primeira! Só que sofri tanto que nunca mais quis saber de me meter noutra roubada do tipo”, pondera rindo.
As transformações da Vila Alta
Era um abandono total e você pode não concordar, mas acredito que o nosso trabalho tem parte nisso
Fiquei feliz e emocionado hoje quando visitei o artista plástico Luiz Carlos Prates de Lima, o Tio Lú, idealizador da Oficina do Tio Lú, na periferia de Paranavaí. Durante um tranquilo bate-papo, ele me relatou que a Vila Alta não é mais o mesmo bairro de três anos atrás.
“Aqui antigamente você via briga direto nas ruas, nem que fosse bate-boca e confusão por bobagem. Assassinatos ou outros tipos graves de crimes não acontecem no bairro tem muito tempo. São raros. Nem sei te dizer quando foi a última vez. E notei que até moradores agressivos estão mais tranquilos, mais civilizados, mais tolerantes. Sempre fico sabendo de novos casos de criminosos que abandonaram a vida errada. Até as crianças estão mais conscientes de certo e errado, de suas obrigações. Parece que muita gente do bairro hoje se sente mais humana, menos insignificante. É como um renascimento. Aqui era um abandono total e você pode não concordar, mas acredito que o nosso trabalho tem parte nisso. Foi só depois que você começou a frequentar o bairro, ajudando, dedicando tempo, fazendo documentários e reportagens sobre a oficina e a vida dos moradores da Vila Alta, que surgiram melhorias, que a atenção se voltou um pouco para este lugar, melhorando até a autoestima da população. Você fez a Vila Alta existir para quem nem sabia que existia periferia em Paranavaí. Claro, não somos perfeitos, a oficina tem suas falhas, mas acredito que ela também tem feito a diferença no bairro, principalmente na vida dos mais jovens. E vejo os pais e avós também reconhecendo isso, o que é muito importante. Estou perto de completar 86 anos e às vezes tenho a impressão de que estou chegando no fim da linha, mas quero persistir e ver novas mudanças. Com a sua ajuda, quero continuar sonhando mais pelos outros do que por mim. Não tenho mais ambições pessoais na vida, a não ser ajudar essa molecada.”
A Oficina do Tio Lú é um dos trabalhos mais belos que conheci e tive o privilégio de acompanhar de perto. Durante a conversa, não pude deixar de dizer como é admirável ver alguém se doar tanto aos 85 anos, ainda mais levando em conta que nessa etapa da vida o ser humano tem grande facilidade em sofrer com crises existenciais. Também acho justo dizer que não consigo enxergar meu trabalho como tão importante, mas é muito gratificante ouvir algo assim do Tio Lú, de quem me tornei amigo no início de 2009.
O amor de Zoltán
Preferia cultivar um amor platônico, talvez às avessas na sua peculiaridade heteróclita
Foi num dia das mães que perdi o meu melhor amigo, Zoltán, um poeta vegetariano que nunca se considerou poeta. Embora morássemos na mesma cidade, o conheci por meio da internet em 1999. Tínhamos a mesma idade e inúmeras afinidades. Era um jovem de aspecto tranquilo, mas existencialmente buliçoso. Vivia mais dentro da própria mente do que fora dela. Amava as pessoas, só não fazia muita questão de se aproximar delas. Preferia cultivar um amor platônico, talvez às avessas na sua peculiaridade heteróclita. Começou a escrever sobre os animais e os seres humanos na adolescência, e mesmo com o passar dos anos e centenas de obras arquivadas nunca considerou nada do que produziu como “bom o bastante”. Na realidade, não se via como escritor, mesmo escrevendo melhor do que muitos autores profissionais. Apesar da minha insistência, Zoltán nunca quis participar de concursos, festivais ou procurar editoras que pudessem se interessar pelo seu trabalho. Nutria justa mágoa pelo mercado editorial.
“Eles sempre vão privilegiar os escritores das metrópoles, sujeitos que possam trazer-lhes benefícios em curto prazo. Eles defendem que lá é o berço da universalização. Se debruçam sobre o próprio reflexo, ignorando tudo que é produzido fora dos grandes centros, independente de qualidade. E esse tipo de pensamento é partilhado por muitos escritores, logrados pelo próprio pedantismo. Eu particularmente pouco consigo distinguir entre os chamados grandes autores da atualidade. O que vejo com frequência é o enfadonho excesso de academicismo ou escritores que saíram das ‘páginas literárias’ dos grandes veículos de comunicação. Ou seja, gente do meio que nenhuma dificuldade teve em incluir-se mais ainda nele. E muitas vezes soam elitistas e distantes da população em geral com seu hiperbólico requinte. Não é de se admirar que os brasileiros leiam pouco, se quem produz literatura já cria esse distanciamento. Também temos aqueles que se colocam como baluartes da contracultura e publicam tudo que escrevem, sem o menor critério – coisas que não somos capazes de avaliar porque basicamente não possuem estrutura definida. Há quem qualifique isso como arte revolucionária. A história se repete à exaustão. Não existe espaço para quem segue na contramão disso, então não vejo motivo para que eu me meta em algo assim”, desabafou em uma conversa que tivemos em 2003 em uma rede de Internet Relay Chat (IRC).
Nas poucas vezes que saímos juntos pelas ruas de Paranavaí, alguns conhecidos perguntavam se éramos irmãos, tão insólita era a semelhança, já que além dos traços mediterrâneos e da mesma estatura, tínhamos também postura e comportamento bem parecidos. O cenho sisudo, o olhar insondável, entranhado, e um andar lesto e hermético, de quem percorre mais o próprio interior do que o mundo. Zoltán era tão ponderado que até seu sorriso era versado. Nada nele era exagerado, a não ser o amor que descobriu pela primeira vez em 2007 quando conheceu uma moça de São Paulo da mesma idade. Seu nome era Linda e ela se aproximou dele porque gostou de uma prosa poética que ele publicou em seu blog. No texto, Zoltán abordou o amor genuíno como uma livre forma de existir, isenta de posses, e a partir daí desenvolveu uma parábola sobre um peixe que vivia em um aquário e num dia de enchente saltou da janela, partindo com a correnteza.
“O amor para ser verdadeiro não pode ser afugentado. Ele tem vida própria e está acima dos nossos anseios, da nossa existência. Quer maior prova do que a sobrevivência do amor de um Montecchio e um Capuleto após centenas de anos? O amor é uma das poucas coisas da nossa natureza que resiste à morte porque ele não é palpável, é intangível, pode ser imortal, ao contrário de nós. O ódio nunca vai superar o amor porque ele não frutifica na mesma proporção. Além disso, o que o amor enaltece a cólera corrói; e tudo que é deletério mortifica o homem em vida enquanto o amor na sua pureza o sublima”, dizia meu amigo no paradoxal arrebatamento da serenidade.
Zoltán e Linda conversavam todos os dias pela internet e pelo telefone celular. Sua confiança em mim era tão grande que fazia questão de me relatar em detalhes o que sentia por aquela jovem que despertou nele sentimento inédito. Conforme eu o ouvia, seus olhos rutilavam como bolinhas de serendibite. Ele sorria e ruborizava como um bebê reconhecendo o poder da vida nos olhos da mãe. Em todos os sentidos, Linda fazia jus ao nome, e o que mais extasiava Zoltán era o fato de ter encontrado uma moça que mergulhava em sua essência como ninguém. Sobre ela, começou a escrever todos os dias. Criou obras dos mais diferentes formatos e gêneros. Mas nem tudo ele mostrava ou publicava. “Só envio à Linda o que me afaga o coração”, justificou um dia. A conexão entre os dois era tão profunda que um dia estávamos na rua e Zoltán teve um mau pressentimento, uma sensação ruim que o fez transpirar subitamente numa manhã fria.
Quando ligou para Linda, ele soube que ela estava internada em um hospital por causa de um problema gástrico. Algumas semanas depois, Linda sentiu um mal-estar na casa da tia e teve de se deitar. Mais tarde, ela soube que naquele horário Zoltán se envolveu em um acidente perto do Porto São José, quando seu carro quase foi engolido por uma cratera velada por um amontoado de terra. Apesar da distância, se respeitavam e se amavam, entregues a um relacionamento sem contato físico, alimentado por palavras rapidamente transformadas em emoções, sentimentos e sensações.
Eles faziam planos, mas temiam o que poderia acontecer. Talvez a iminente felicidade os amedrontasse. Linda trazia no coração cicatrizes de um velho relacionamento em que flagrou o ex-namorado a traindo com a melhor amiga. Zoltán, que nunca se interessava por ninguém, tinha uma trajetória de vida em que sempre se viu como o lobo da estepe. Com o passar dos anos, e sem jamais terem se encontrado, continuavam se resguardando. Em 2012, Linda adoeceu e nenhum médico descobriu qual era o seu problema de saúde. Temendo ser um fardo para Zoltán, ela o evitava, chegando a passar meses sem usar o celular. Preocupado, ele enviava mensagens e e-mails demonstrando interesse no bem-estar dela.
Continuou escrevendo sobre Linda, não com a mesma intensidade, porém o suficiente para provar que seu sentimento perseverava imaculado. Um dia testemunhei Zoltán com o rosto umedecido quando Linda publicou um novo comentário em seu blog. Alanceados e sensíveis demais, os dois se completavam como ouro e platina no subsolo dos Montes Urais. “Mesmo com as incertezas do futuro, prefiro ter no coração a plenitude de um sentimento lídimo, que faz de mim um ser humano melhor do que um oco pertinaz motivado a buscar nas noites sinuosas o prazer efêmero que nada toca além da carne”, escreveu.
Zoltán era um Werther maduro, com motivações muito mais genuínas do que o protagonista de Goethe, vencido por uma disforme e equivocada concepção do amor. A maior prova disso foi o que aconteceu no dia das mães de 2014. Vivendo em Curitiba, Zoltán foi encontrado morto em seu apartamento, vitimado por um ataque cardíaco. Só consegui localizar Linda um mês depois e entreguei a ela um e-mail que ele me enviou duas semanas antes de sua morte.
Zoltán tinha um problema cardíaco congênito. E ele sabia que não viveria muito. Porém, optou por não dizer nada a ninguém. Passou seus últimos dias de vida fazendo o que mais gostava – escrevendo. Linda caiu em prantos quando soube da tragédia. Sem saber o que dizer, contei a ela que o céu também desabou quando ele morreu. Naquele dia, saí de casa e ouvi através do som ruidoso e sorumbático dos trovões a voz de Zoltán. A chuva parecia especialmente salgada, como lágrima concentrada. “Meu melhor amigo, como protagonista de uma epopeia, não teve a chance de formar sua própria alcateia. Ainda assim, amando morreu como um tipo superior de Romeu”, concluí.
Hoje me surpreendi com o dia das mães porque com muita chuva e uma sequência de trovões não deixei de ver no céu o rosto de Zoltán carinhosamente descortinado por um véu. “O amor de verdade é uma concessão, sobrevive sem vida e até fora do coração. Ele é nosso enquanto vivemos e torna-se imortal quando morremos. Amar você foi o meu maior presente porque através dele mergulhei no mais sublime sonho fremente”, registrou em um pequeno trecho de um e-mail enviado à Linda.
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Igão, uma vida dura e sonhos modestos
“Eu achava comida no lixo e comia. Sentia fome, né? Tinha bolo, pão doce, essas coisas de padaria”
Na adolescência, depois de ser expulso da casa da avó pelo tio, Igão deixou a Vila Alta e vagou sem rumo, até que seu pai o convidou para morar com ele e a madrasta na casa da sogra na Vila City, também na periferia de Paranavaí, no Noroeste do Paraná. “Logo que comecei a trabalhar eu nem conhecia dinheiro e tive que forçar o cérebro. Catei material reciclável por quase três anos e quando fui pra lá ajudei a sogra do meu pai na mesma atividade. Naquele tempo eu achava comida no lixo e comia. Sentia fome, né? Tinha bolo, pão doce, essas coisas de padaria. Algumas vinham embaladinhas e outras não. A vida era doida”, conta.
Igão, que hoje tem 34 anos, se recorda que por “viver de favor” na Vila City tinha que seguir a disciplina da casa – horário para comer e dormir. “Nunca tive hora pra isso e não consegui seguir o ritmo, então ficava sem comida às vezes. Meu pai sentia dó e me dava o prato dele quando eu chegava”, relata. Meses mais tarde, por não ter conseguido se adaptar, acabou saindo da casa.
Ainda coletando materiais recicláveis, um dia o rapaz desmaiou de fome, caindo sobre o asfalto. “Não é todo dia que as pessoas estão de bom humor pra receber alguém na porta de casa e dar um prato de comida. E como era normal não ganhar o suficiente pra marmita acontecia de apagar na rua mesmo”, narra.
Apesar da vida difícil, Igão nunca desistiu de lutar. Ainda assim, no início da fase adulta não conseguia escapar da miséria. “Saía cedo pra pista e não tinha hora pra voltar. Quando não conseguia nada chegava em casa estressado. Sou um cara que mal sabe ler e escrever, é complicado conseguir qualquer coisa. Já quem tem estudo vai em frente de um jeito que ninguém acredita”, diz.
Em um dia, Igão percorria até os bairros mais distantes da Vila Alta, como Jardim Morumbi, Vila City, Jardim Ipê e Sumaré – distrito de Paranavaí. Igão é muito conhecido na Vila Alta por suas boas ações. Já afastou crianças e adolescentes do mundo do crime e das drogas. Também convenceu alguns a retornaram para a escola, chegando inclusive a levá-los até a entrada do colégio. Além disso, sempre que a chuva arrasta a terra da estrada em frente ao Bosque Municipal até a Rua B, ele reúne alguns amigos para fazer a limpeza de forma voluntária. “Apesar de todas as dificuldades, amanheço sempre alegre e agradecendo a Deus por mais um dia de vida”, garante e afirma que sonha em conseguir um trabalho com carteira assinada.
O rapaz, que já atuou em lavouras de mandioca e algodão, tem experiência como servente de pedreiro e trabalhou na construção de muitas bocas de lobo na Vila Alta. “Atuei nesse ramo por um bom tempo. Torci para que minha carteira esquentasse. O problema é que me demitiram antes. Se tivesse carteira de pedreiro, conseguiria um bom trabalho fácil. A melhor fase da minha vida foi quando trabalhei registrado como operador de betoneira. Tinha até planos de fazer a minha casa”, revela.
Saiba Mais
Igão não tem boas lembranças do trabalho no campo porque a jornada diária ultrapassava 12 horas. “Chegava em casa até oito horas da noite e molhado de orvalho. Era sofrido demais”, justifica.
Uma noite alucinante ou fuga de cães raivosos
Escaparam pelo portão de uma casa e vieram correndo no meu encalço como duas crianças famintas
Houve uma época da minha vida em que eu caminhava todos os dias no mesmo horário, e não para me exercitar, mas somente para espairecer ou refletir. Andar diariamente 10 quilômetros ou até mais no final da tarde ou início da noite me ajudava a ter boas ideias e também a me desligar de tudo que não me interessava naquele momento. Em síntese, era uma excelente forma de manter o equilíbrio.
Na realidade, era imprescindível, já que eu passava muito tempo em frente ao computador produzindo textos e lendo. Então havia dois horários do dia que eram sagrados para me manter longe de qualquer máquina. De manhã, por volta das 5h50, quando eu ia à academia, e após às 17h ou 18h. Eu nunca carregava o telefone celular comigo, hábito que mantenho até hoje.
Conforme eu andava, tentava captar a boa essência ao meu redor, principalmente o aroma sinestésico e verdejante das árvores quando o calor arrebatador do dia partia com o poente. Um dia, saí de casa no início da noite. Desci a Rua John Kennedy até chegar à Avenida Parigot de Souza. Tudo parecia tão tranquilo, difícil crer que era uma segunda-feira. Continuei andando, observando os animais da vizinhança revirando sacolas enquanto os lixeiros não passavam para recolhê-las ao lado do meio-fio.
Mandriões, quatro gatos, não sei se por fome ou capricho, miavam ruidosamente com desejo de se aproximar dos sacos ocultados por três cães. Entendi. Era o dia preferido dos negligenciados, já que as sobras de comida do sábado e do domingo se acumulavam em tantas sacolas, criando um cheiro variegado e sui generis que as narinas dos famintos sorviam com o paroxismo de quem se vê pela primeira vez diante de um banquete etrusco.
Sensibilizado com a cena, chamei a atenção de dois cães e os afastei de uma das sacolas, entre as tantas que monopolizavam, permitindo que os gatos também vasculhassem seu tesouro em meio aos orgânicos detritos da glutonaria. Acredito que ficaram satisfeitos. Silenciaram, e segui meu caminho depois de vê-los com os bigodes sujos de contentamento.
Passei por um trecho da Avenida Paraná e segui em direção ao centro. Na Rua Getúlio Vargas, pessoas saíam do trabalho, embora quase todas as portas das lojas estivessem fechadas. O aspecto de cansaço no rosto de tanta gente a pé, sobre os bancos das motos e no interior dos carros dava mostras do quão intenso pode ser o limiar da semana.
Um ou outro ainda sorria, raros num mar de expressões macambúzias de desânimo. “Será que não gostam do que fazem da vida? Alguns parecem infelizes. Posso estar enganado também. Talvez seja apenas uma má impressão minha”, refleti. Então mirei o céu por entre os galhos e vi um céu ainda avermelhado envolvendo a lua tímida que pouco despontava, mal sendo notada.
A passos rápidos, subi um trecho da Getúlio Vargas e assisti dois homens maltrapilhos, talvez andarilhos ou mendigos, sentados no banco da praça da Igreja São Sebastião dividindo um pão francês e tomando uma bebida escura, provavelmente café, em copos descartáveis. A cada gole e mordida, os dois riam como se nada na vida valesse mais do que o momento, a paradoxal plenitude do efêmero.
Contavam piadas sem sentido um para o outro e gargalhavam como crianças, pressionando as mãos contra suas barrigas cobertas por camisetas em frangalhos. Dois carros pararam em frente à praça e os motoristas testemunharam com espavento a alegria dos dois marginalizados. “Do que esses doidos estão rindo? Que nada a ver, rir nessa situação. Deviam chorar”, talvez pensem alguns.
Percorri mais cem metros e notei um automóvel se aproximando vagarosamente. Um homem colocou a cabeça para fora e me chamou. Sem problema. Deveria ser alguém perdido por aquelas bandas. Não, não era. “Ô camarada, você gosta de se divertir?”, questionou o motorista. “Quê?” E ele repetiu a pergunta. “Olhe, eu e minha mulher, dê uma olhada nela aqui do meu lado, estamos a fim de umas aventuras. O que você acha de vir com a gente? Tudo no sigilo, temos local próprio e bem discreto.”
Agradeci o convite e falei que não tinha interesse. “Como não tem interesse na minha mulher? Olha aqui, cara! Isso não existe. Temos altas ferramentas aqui. Vambora que você não vai se arrepender”, falou o homem com a voz alterada, revelando um misto de nervosismo e raiva. De repente, o sujeito se virou em direção ao banco traseiro e retirou uma maça medieval de borracha, mas com um adorno de spikes que parecia muito real. No banco ao lado, a mulher apenas sorria, retocando o batom vermelho com uma das mãos e piscando para mim, sensualizando.
“Você tem cara de bad boy. E minha mulher só curte homem assim. Vem, cara! A gente paga!” Insisti, falei que não aceitava, que tinha namorada e andei a passos céleres, sem ter a mínima ideia do que aquele casal era capaz. Virei à esquerda e para piorar ainda ouvi o som do motor me acompanhando e a sombra de uma pessoa apontando em minha direção. “E se esse maluco sacar um revólver e atirar em minhas costas?”, aventei, rendido a uma criatividade que me assustava e entorpecia. Afinal, me tornei refém de um universo de possíveis impossibilidades.
“Seu viado filho da puta!”, foi a última frase que ouvi antes de sentir uma cálida rajada que repentinamente aqueceu meu corpo álgido. Consegui respirar melhor quando o carro desapareceu no horizonte do Jardim Paulista. Feliz por estar vivo, retomei a caminhada sentindo-me mais leve que o próprio vento que ocasionalmente massageava minhas orelhas.
Perto da antiga Escola Jean Piaget, na Rua Manoel Ribas, fui surpreendido novamente pelo acaso quando dois cães enormes e negros como a noite escaparam pelo portão de uma casa e vieram correndo no meu encalço como duas crianças famintas. Seus olhos amarelos rutilavam como vagalumes graúdos. Só tive tempo de saltar, pendurar e me equilibrar sobre a fragilizada grade da escola que por pouco não cedeu, o que me deixaria à mercê dos meus algozes.
Sem subestimar a astúcia animal, pulei sobre uma árvore no jardim da escola e fiquei observando eles por instantes, limpando minhas mãos repletas de vestígios de cal. Encolerizados, seus músculos se contraíam enquanto seus dentes afiados mal cabiam dentro da boca. A saliva dos dois caía grossa sobre a grama.
Me senti vitorioso, mas não zombei deles porque nunca sei o que o dia seguinte me reserva. Persistentes, mantinham as patas pressionadas contra a grade e os olhos fixos em mim. Eram fortes, ágeis e pouco inteligentes. Só precisei fingir que iria fugir pelo outro lado para despistá-los. Logo ficaram confusos e perderam seu ponto de referência – eu.
Corri até a Rua Chozo Kamitami e não vi mais eles. Um tremendo alívio que fez minhas pernas pararem de bambear. “Nada mais pode acontecer hoje. Acredito que atingi a minha cota”, achincalhei o meu próprio azar. Após restabelecer a serenidade, tudo parecia em harmonia quando ouvi cigarras cantando e corujas piando em meio aos pisca-piscas dos pirilampos.
“Agora é só prosseguir minha caminhada e curtir a noite”, ponderei absorvendo a amorável calmaria notívaga. Voltando para casa pela Avenida Rio Grande do Norte, mais uma vez fui parado por um carro. Um rapaz gritou um nome, vi que não era comigo e continuei andando. “É você, mano! É você! É você mesmo! Calmae, calmae!”, falou com malemolência.
Não o reconheci e pensei que fosse um bêbado querendo confusão ou jogar conversa fora. “Ué, Mafud! Vai tirar na cara dura? Vai dar de louco pra cima de mim, manon?”, replicou. Fiquei sem reação e depois declarei que ele me confundiu com outra pessoa. Em seguida, olhei atentamente e vi que em sua mão direita, parcialmente velada na altura da barriga, tinha um revólver de calibre 38.
“Conheço essa sua barba em qualquer lugar, manon. Tem erro não. Quero saber se tu tá metido nos esquemas da gravataria lá ainda ou se já deu linha. Conta pro seu manon aí!”, indagou. Não consegui pensar com clareza e de repente as luzes dos faróis de um segundo carro foram sinalizadas em nossa direção. Outro rapaz acenou com a mão através da janela, chamou a atenção do jovem que me abordou e gritou:
“Esse não é o Mafud, cara! Tá fazendo merda de novo. Simbora!” Antes de partir, ele sorriu, abriu a carteira e lançou cinco notas de R$ 100 em minha direção. “Mal aí, meu chapa! Esquece a parada que tudo segue de buena”, sugeriu. Fui embora e deixei um repentino vento sortido arrastar as notas para longe de mim. Com receio de novas abordagens, equívocos e confusões, respirei fundo e voltei para casa correndo, mergulhado em um turbilhão de pensamentos. Sem dar margem ao azar e ao acaso, sequer olhava para o lado, agulheado pela ferocidade do imponderado.
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Parque de Exposições, alegria e pesadelo para jovens famintos
“Tinha dia que malemá alguém dava uma dentada num lanche, cachorro-quente, e deixava de lado”
Dos 10 aos 15 anos, mesmo sem dinheiro, I.O. e mais 10 a 15 amigos, moradores da Vila Alta, na periferia de Paranavaí, percorriam mais de cinco quilômetros para chegarem ao Parque de Exposições Arthur da Costa e Silva em época de ExpoParanavaí, tradicionalmente realizada no mês de março na entrada da cidade. Sem pagar, entravam pelos fundos, pelas cocheiras, pelas baias, como ele mesmo diz. Iam a pé ou de bicicleta. Quem ia de bike, levava mais dois amigos. Chegavam lá às 15h e ficavam até as 10h do dia seguinte. Jamais se ausentavam à tarde e à noite.
Tentando invadir o Parque de Exposições, uma vez I.O. ficou pendurado de ponta cabeça, preso pelo tênis, até que conseguiu tirar o calçado e entrar correndo descalço. Na fuga, recebeu uma relhada que deixou um vergão enorme nas costas. Não era fácil. Jogavam óleo queimado na área de travessia preferida dos não-pagantes. “Se chegasse com calça branca, logo ficava toda marcada. Dava pra saber quem pulava e quem não pulava. Tinha uns peões bravos que queriam tirar a gente, daí começava a guerra porque ninguém queria sair. Eu era o mais velho e o resto era tudo piazada”, relata I.O.
O jovem conhecia um segurança “gente boa” que liberava a entrada dele e dos amigos. Lá dentro, atravessavam o parque e ouviam o próprio estômago roncando quando sentiam o aroma de comida e viam os visitantes se fartando diante das barracas. “Tinha dia que malemá alguém dava uma dentada num lanche, cachorro-quente, e deixava de lado. Você ia lá, catava e comia, não queria saber de nada. Queria encher a barriga – beber e comer”, informa I.O que não se esquece do dia que um cara abriu uma latinha de refrigerante e saiu de perto para falar com alguém.
Malandro, seu primo foi lá, tomou um gole e se mandou. I.O. também ficou com vontade, desceu no embalo e “colou”. “Encostei o bico na lata e tomei um surdão. Aquele dia eu apanhei, hein? O cara vinha e meu primo não falou nada. Rodei na ‘pista’ e saí de lá que nem mendigo – descalço, sem camisa, todo estropiado”, reclama. Há 12 anos sem entrar no Parque de Exposições, I.O. lembra das vezes em que encostava nos cantos das barracas e falava: “Faz um lanche aí, irmão!” Os barraqueiros pensavam que ele iria pagar. Quando enchia de gente, I.O. e sua turma sumiam no meio da multidão. “Comia lanche de todo jeito, servido com toda aquela qualidade”, afirma às gargalhadas.
Também “batia um rango” com as sobras das barracas dos restaurantes. Eram motivados pela coragem – só o que tinham naquele momento. Se algo saísse mal, voltavam com o “couro ardendo”. Um dia uma comerciante flagrou o primo de I.O. de olho em uma batata recheada. Percebendo a expressão de desejo no rosto do adolescente, a mulher disse: “Você quer? Espera que vou te dar!” Todo feliz o garoto pensou que a noite era sua. “Achou que tava fácil. De repente, chegou uns caras, nossa galera ficou encurralada e o ‘couro comeu pra todo mundo’. Era cilada, irmão!”, garante I.O que viu a turma partindo, gente correndo por todos os lados e barraqueiro gritando: “É pra matar, não é pra aleijar não!”
Vendo que o “couro ia estalar”, I.O. conseguiu sumir. Em outra ocasião, escapou de ser espancado por dois brutamontes que correram no seu encalço. “Se pegasse, eles me destruiriam. Agora tudo mudou e nunca mais fui lá. Foi assim durante uns quatro anos da minha adolescência, quando não tinha muita segurança”, argumenta. Hoje o jovem sorri ao se recordar da quantidade de comida e bebida que achavam nas arquibancadas. Até garrafinha de suco que o namorado dava para a namorada e ela não queria. Largavam no canto e a garotada chegava antes do pessoal da limpeza recolher tudo. No último dia de exposição a alegria de I.O. e sua turma era imensa. O motivo era a distribuição de alimentos feita pelos comerciantes que precisavam se desfazer das sobras.
“A primeira vez que nós achamos o caminho não perdemos mais o carreador, era só não esquecer da cara do dono da barraca. A nossa turma era de moleques que passavam o dia sem comer, né? Não era fácil. Minha avó e meu tio me tocavam de casa e eu ficava morrendo de fome. Lá na exposição, você achava carne, pão, cachorro-quente, outros tipos de lanche, um monte de coisa, irmão. Comia com vontade mesmo. Não é mentira não! Sobrava resto de maionese, aquelas coisas, e trazia tudo embora”, enfatiza.
Espertos, os garotos conheciam muito bem o sistema de distribuição de energia elétrica do Parque de Exposições, tanto é que ocasionalmente davam um jeito de desligar a chave geral. Enquanto a energia não voltava, comiam cocada que pegavam direto das barracas. “Tinha moleque que passava a mão em pingente, cordinha. O que der tempo no escuro é a hora [risos]. Quem iria ver alguma coisa naquele breu?“, declara I.O. rindo.
Porianna, nascimento e morte de um jovem neonazista
Não o reconhecia. Defendia crimes contra migrantes, imigrantes e falava em limpeza étnica
Conheci Piero pessoalmente quando tínhamos 17 anos. Ele era um adolescente comum. Estatura mediana, magro, cabelos e olhos castanhos e uma exímia vontade de existir e ser notado para além dos cravos e das espinhas que o exasperavam. No final dos anos 1990, nos tornamos amigos por meio da música. Eu já gostava muito de heavy metal e ele também. Então começamos a fazer trade em Maringá, onde ele visitava familiares. Eu saía de Paranavaí e ele de São Paulo. Nos encontrávamos na Musical Box, na Avenida Brasil, onde trocávamos CDs e cópias de fitas de shows em VHS.
Piero era mais tímido do que eu. Falava pouco e não saía sozinho, pelo menos a maior parte do tempo. Me parecia sempre inseguro com seu olhar enviesado e vacilante que fortuitamente mirava o chão ou a parede mais distante. “Depois de mais de dois anos trocando ideias, é legal te conhecer, velho!”, eu disse apertando sua mão tão escanzelada que me dava a impressão de que eu estava segurando pés de galinha. Ele deu um sorriso fragilizado e acenou com a cabeça, em concordância, retomando uma postura que se esforçava para velar uma precoce hiperlordose.
Meu primeiro contato com Piero foi pela internet, em um canal de fãs de heavy metal da velha rede social Brasnet, acessada pelo programa mIRC, muito usado pela geração anos 1980. Tínhamos um grupo de dezenas de pessoas e passávamos pelo menos duas horas por dia tentando expandir nosso canal, fazendo brincadeiras e trocando informações sobre música. Era divertido. Eu era um dos operadores do canal, assim como Piero. Na internet ele se soltava mais. Se sentia mais livre e seguro para manifestar suas opiniões, anseios e inclinações. Nessas horas suas mãos não suavam ou tremulavam porque não havia contato físico. Pessoalmente, Piero só perdia a inibição em shows, quando o álcool e a música em volume extremamente alto o livravam das amarras da excessiva ponderação.
Ficava sorridente, falava com estranhos, perdia o medo de se aproximar de garotas e até trocava números de telefone. Sóbrio, continuava vivendo em um mundo que distante da realidade eletrônica parecia-lhe visceralmente acinzentado e taciturno. Mais tarde, descobri que Piero sofria de ansiedade e depressão. Nem mesmo seu pai sabia disso. A verdade é que se sentia feio, deslocado, magro demais e desprezado pelo mundo. Seu único orgulho eram os cabelos longos que movimentava com a destreza de um chicote amendoado nos shows que assistia motivado pela mais bucólica das empolgações. Sorria como criança vendo um pônei pela primeira vez.
A última vez que o encontrei pessoalmente foi em 2001, num festival de bandas de heavy metal no Tribo’s Bar, em Maringá. Ele tinha bebido bastante e estranhei quando percebi que sumiu em meio à multidão. Eram três horas da manhã e Piero estava lá fora, sentado sobre o meio-fio enquanto a aragem repentina fazia seus cabelos velarem seu rosto como uma máscara. Ele ajeitou os fios e vi seus olhos vermelhos e úmidos – vestígios de choro.
“Meu pai me expulsou de casa e agora estou sem rumo. E pra piorar, ele ainda fez eu perder meu emprego. Foi bêbado lá na loja de discos onde eu trabalhava e bateu no meu chefe, falando que ele estava usando a música pra me ensinar a venerar o diabo. Foi punk, mano! Minha sorte é que arrumei um quarto na casa da minha tia em Santo André”, desabafou.
A mãe de Piero faleceu em decorrência de câncer de mama quando ele tinha 13 anos. A convivência com o pai era muito conturbada. Ele não passava um dia sem ouvir críticas e ofensas à sua aparência e estilo de vida. Sempre que o pai bebia demais era obrigado a suportar as consequências. Muitas vezes teve de pular a janela e dormir em banco de praça para não ser espancado no próprio quarto. A hiperlordose de Piero também era resultado de chutes e socos desferidos pelo pai.
Quando se mudou para Santo André, Piero abandonou o nosso canal na Brasnet. O procurei por semanas até encontrá-lo em um canal secreto chamado Porianna. Consegui ingressar no grupo com um novo pseudônimo, me passando por outra pessoa. A liberação levou alguns dias. No grupo, Piero usava o nome de Globocnik, em homenagem ao austríaco Odilo Globocnik, general da SchutzStaffel (SS), a tropa de proteção do Partido Nazista.
Porianna era um grupo neonazista criado em 1999 e que contava com dezenas de participantes, talvez muito mais, principalmente das regiões Sul e Sudeste do Brasil. Alguns defendiam o racialismo pacífico enquanto outros pregavam o ódio contra raças não brancas, defendendo inclusive ações pontuais de violência que eram cuidadosamente articuladas. Muitas eram tão bem mascaradas que a polícia acreditava que eram casos isolados.
Acompanhando o grupo pelo canal da Brasnet, notei o embrutecimento e a transformação de Piero. Não o reconhecia. Defendia crimes contra migrantes e imigrantes. Falava em limpeza étnica e na aquisição coletiva de uma fazenda onde fundariam a sociedade Porianna, um novo país dentro do Brasil, onde pessoas armadas impediriam a entrada de pessoas não brancas.
“Estamos em todas as camadas da sociedade. Temos os boneheads na parte mais baixa da pirâmide, agindo junto ao proletariado, e juízes, advogados, médicos, engenheiros e jornalistas, todos bem preparados para influenciar a opinião pública. Não há como isso dar errado. Pode ser que não tão logo, mas um dia chegaremos lá”, declarou um homem, fundador do grupo que usava o pseudônimo de Plínio Salgado, em homenagem ao criador do movimento integralista ultranacionalista.
À época, registrei o discurso de uma mulher de 29 anos que se dizia juíza e era conhecida no Porianna como Vera Wohlauf por causa da sua simpatia pela esposa do oficial da SS Julius Wohlauf. O casal ficou famoso após passar a lua de mel assistindo e participando do massacre de judeus no gueto polonês de Miedzyrzec-Podlaski em 1942.
“A democracia não funciona, só que devemos fingir que sim. O que precisamos é encontrar, forjar ou criar um ponto de ruptura que faça a população, até mesmo inferiores como pretos, amarelos, pardos e outros mestiços, acreditar que o melhor caminho é uma política austera e ao mesmo tempo flexivelmente reacionária. As pessoas precisam achar que existe liberdade demais e que isso está associado à libertinagem. Façamos de conta que a nossa política há de ser maleável e quando ascendermos ao poder colocaremos em prática o nosso segundo plano que é a instauração de um governo verdadeiramente estoico, de extrema direita, mas muito superior ao molde hitlerista e franquista. Pinochet também descambou para o fracasso. O segredo é fingir que todos estão incluídos em nossas propostas. Nossa propaganda deve ser voltar para isso, uma ilusão factível”, dissertou Vera.
Aproximadamente um mês depois de ingressar no canal, conversei com Piero. Ele parecia mais seguro de si. No entanto, eu não tinha a mínima ideia de como isso poderia ser bom, levando em conta que ele se tornou uma pessoa completamente diferente. Estava morando sozinho e me contou que era bem pago para produzir, distribuir e despachar o material de divulgação do Porianna.
“A nossa sociedade foi construída sob os preceitos da cultura branca, totalmente ocidentalizada, então por que devemos absorver uma cultura que não corrobora esses valores? O resto é irrelevante, meu amigo, não tem o mesmo peso, a mesma significância. E quem não aceita isso merece ser expulso do Brasil, nem que seja à base de chutes e socos. Ter a pele clara também não diz nada. O que vale é a sua origem, sua identidade racial. Se você tem sangue não branco, você não é branco, mesmo que sua pele seja a mais clara do mundo. Cor de pele não prova que você seja caucasiano. Os traços também dizem mais do que a cor da pele”, defendeu Piero numa noite de conversa privada.
Ele já não ouvia mais heavy metal, somente bandas nacionais e internacionais de hatecore e rock against communism (RAC), grupos que pregavam racialismo, racismo, xenofobia, separatismo, violência e intransigência política e social. “Pela primeira vez eu tenho família, cara! Sou amado de verdade. Sou Porianna até a morte!”, comentou em outra ocasião. Um dia, não resisti e falei a ele quem eu era de verdade.
O questionei sobre o seu sumiço e o novo rumo de sua vida. Deixei claro que era difícil crer que alguém pudesse mudar tanto e se tornar algo completamente avesso a tudo em que ele acreditava. “Você desprezava violência e preconceito, cara. Tudo aquilo que seu pai era te dava repulsa. O que houve nesse entrementes?”, disparei. Piero demorou a responder e fiquei em silêncio aventando o que me esperava. Talvez me denunciasse e neonazistas viessem atrás de mim. Quem sabe a poucos quilômetros de distância houvesse algum simpatizante do Porianna disposto a atear fogo em minha casa quando soubesse que eu não era um deles.
Mas isso não aconteceu, embora a probabilidade não pudesse ser desconsiderada. Isto porque na chamada mais baixa hierarquia, o grupo contava com pessoas sem perspectivas de futuro. Eram capazes de matar ou morrer por um propósito, mesmo que ruim. Confundiam a ficção com a realidade, crentes de que talvez fossem heróis, que a morte não era o fim e que talvez renascessem como um tipo mais contemporâneo de highlander.
“Você é um merda, David! Sempre com esse papo de tolerância e não percebe que a própria vida é uma guerra. Estamos aqui para mostrar que uns merecem mandar e outros nasceram para obedecer. Nem todo mundo deve ter direito à vida, e muito menos o direito de tomar decisões que exigem reflexão. O mundo deve ser comandado pelos fortes, pelos puros de sangue, que conhecem a sua própria história. Não quero um mundo que prega a mistura de raças, a extinção dos povos caucasianos. Brancos não devem ser influenciados por outras raças”, registrou sem velar a irritação.
Depois daquele dia, desapareci do canal e soube que eles migraram para a rede internacional Undernet, onde criaram um vínculo com neonazistas portugueses. Em 2004, Jonas, um amigo em comum com Piero, dos tempos de shows em Maringá, me informou que ele foi assassinado dentro de casa, em Santo André. Além de mim, havia outro jovem infiltrado no grupo e ele estava lá para preparar uma retaliação pela surra que um grupo de simpatizantes do Porianna deu em seu irmão, um sharp (skinhead contra o preconceito racial), perto da Praça da Sé, em São Paulo, o deixando paraplégico.
Piero, que desconhecia o episódio, ouviu alguém batendo palmas em frente à sua casa numa manhã ensolarada de verão. Assim que se aproximou do portão segurando um copo de café, um homem disparou um tiro certeiro contra seu peito. O copo se espatifou no chão e Piero caiu agonizando, ainda com vida. Porém não resistiu às coturnadas que recebeu na cabeça, causando afundamento craniano e morte cerebral. Sobre a estante na sala de Piero havia uma foto em que aparecia eu, ele e Jonas em frente ao Tribo’s Bar em 2001. Naquela madrugada, Piero imobilizou um ladrão, impedindo que um sharp que também estava no Tribo’s fosse assassinado a facadas por um ladrão no Terminal Rodoviário Urbano de Maringá.
A vida de Jero ou fado de um jovem ladrão
“O maluco me colocou na mira de um traficante, falando que eu estava de olho na boca de fumo do mano”
Na semana passada, fui até a Vila Alta, onde conversei com Jero, garoto alto e magro de 16 anos. Sentado no meio-fio, me convidou para sentar numa cadeira com corda de nylon. Empolgado e sorridente, contou que conseguiu um “bico” que o fez sentir-se útil pela primeira vez em muito tempo. “Tô recebendo pra ajudar na limpeza e organização de uma casa daqui da vila mesmo. Já rodei o centro da cidade em busca de trabalho, mas a resposta é sempre a mesma. Acho que eles têm vagas sim, só que não pra menor de idade”, lamenta.
De bermuda, chinelos e sem camiseta, Jero diz pra esperar um pouco que ele vai buscar “um café”. Logo retorna com uma garrafa térmica e uma caneca plástica. “É pra você! Coloca aí!”, diz naturalmente, sem cerimônia. Não costumo beber café, mas tomo um gole em deferência. Embora muito jovem, Jero tem algumas cicatrizes no corpo que revelam conflitos e violência. É como se sua pele contasse sua própria história. Criado nas ruas, em meio à pobreza, foi preso pela primeira vez há dois anos, depois de roubar um “radinho”, como chama os smartphones.
“Já peguei um lá pelos lados da Praça dos Pioneiros. Era só dar bobeira que eu passava na mão leve”, conta. Por causa de pequenos delitos, Jero ficou preso quatro vezes. Três vezes foi encaminhado para o Centro de Socioeducação (Cense) de Paranavaí. Na quarta, o enviaram para o Cense de Cascavel, no Oeste do Paraná. “Gostei mais de lá porque a galera é mais humilde. Quem tá preso lá é mais de boa. Não tem tanta rivalidade como no Cense daqui. Aqui um fica querendo ferrar o outro. É briga de gangue, mano”, comenta esfregando uma das mãos pelos cabelos descoloridos.
Durante a conversa, em cada frase de Jero há sempre alguma palavra que nunca ouvi. O seu vocabulário é tão incomum que até mesmo quem é da Vila Alta tem dificuldade de entender – a não ser os mais jovens que passam o dia nas ruas. A linguagem de Jero é uma mixórdia de referências popularizadas na periferia, onde neologismos e regionalismos se misturam o tempo todo. Nas vezes em que foi preso por furto e roubo, o garoto não chegou a confrontar a vítima ou agredi-la no ato do crime. Não tem o costume de usar armas. “Só que é sujo isso aí. Não vale a pena. E lá na cadeia você sempre encontra um inimigo. É ruim demais ficar preso”, afirma enquanto acende um cigarro paraguaio e dá uma tragada, assoprando fumaça com o esmero de uma criança desenhando paisagem com o dedo no chão de terra.
Além do “careta”, Jero também gosta de fumar maconha. Não todos os dias, mas ainda assim com certa regularidade. Relata que conhece todo tipo de droga, só que nunca se interessou em usar nada mais “pesado”. “Crack é pra quem quer virar escravo ou zumbi. Você cai numa noia tão zuada que esquece até quem você é. Deixa o cara louco. Quem vende crack também se lasca porque tem que aguentar gente colando no seu barraco até de madrugada mendigando pedra. Mano, tu acaba com a vida de muita gente e não ganha quase nada. O dinheiro é dos graúdos”, comenta.
Na terceira vez em que foi preso, Jero ficou sabendo que outro adolescente com quem tinha uma querela de longa data também estava no Cense. “O maluco me colocou na mira de um traficante, falando que eu estava de olho na boca de fumo do mano. Armou pra mim. Queria me ferrar. Inventou mais umas histórias”, garante. Crente de que mais cedo ou mais tarde algo aconteceria, Jero se antecipou.
Um dia pegou a própria escova de dente, quebrou a cabeça e começou a afiná-la, deixando-a pontiaguda. A escondeu dentro da bermuda, até que numa ocasião, após a aula, caminhou a passos leves até o seu desafeto. Enraivecido, gritou o nome do inimigo e ocultou sob os dedos o estoque feito com a escova de dentes. Quando o garoto se aproximou, ele o golpeou quatro vezes na barriga. “Ou eu dava nele ou ele dava em mim. Preferi sair na frente. A intenção não era matar. Fiz isso pra mostrar que não tenho medo dele. O papo é um só – se vier, vai levar!”, justifica, baseando-se em um senso de justiça particularista.
O sangue descia e Jero só assistia, até que a vítima foi socorrida e encaminhada à Santa Casa de Paranavaí com vários ferimentos, embora nenhum grave. Depois do ataque, Jero foi transferido para o Cense de Cascavel, onde cumpriu pena. Quando o soltaram, retornou a Paranavaí e decidiu se afastar do crime, opção que pouco pesou na consciência de seus inimigos. “Tem gente querendo me matar ainda. Sei disso”, admite com sorriso dúbio e plangente. De temperamento volátil, Jero foi convencido por alguns “amigos” a participar do furto de um “radinho” e de uma bicicleta.
Na última segunda-feira, fiquei sabendo que ele foi preso novamente. Minha intenção era fazer mais uma entrevista e tirar algumas fotos, mesmo que velando seu rosto. Não deu tempo. Há quem acredite que há males que vêm para o bem. No dia em que Jero retornou à prisão, um detento ganhou a liberdade – um traficante que jurou que o mataria no dia em que fosse solto. Na Vila Alta dizem que Jero se envolveu com a ex-namorada do sujeito. Por enquanto sua salvação está assegurada no ambiente que até então mais desprezava – a cadeia.
Saiba Mais
Jero é um apelido fictício para preservar a identidade do entrevistado.
A Vila Alta fica na periferia de Paranavaí, Noroeste do Paraná.
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Sonya
Tudo nela transparecia veraz, uma antítese da artificialidade do mundo de concreto que nos envolvia
Sempre achei intrigante conhecer pessoas ao acaso, sem planejamento ou intenção. Parece que tudo flui com mais naturalidade, já que não há preocupação em surpreender alguém. Você se vê em um lugar e começa a conversar sem esperar nada da outra pessoa, nem ela de você. Sem tensão, sem ansiedade, existe apenas o momento que pode ser efêmero ou duradouro – e pode ou não se transformar em outra coisa.
Existe beleza no acaso e talvez ela subsista na ausência de expectativas, no fato de que às vezes você pode estar em um lugar simplesmente por estar, para não se perder nem mesmo se encontrar. Clarificando a introdução, vou relatar uma história a ser levada em consideração.
Um dia, na faculdade, assim que terminei um trabalho, me ausentei da sala de aula. Desci a escadaria do terceiro bloco, passei por um grupo de jovens que conversavam tão alto que o papo ecoava pelo prédio e sentei em um banco em frente ao primeiro bloco. Fiquei em silêncio prestando atenção em tudo à minha volta. Havia pouco movimento no pátio, o que era bem previsível, levando em conta que o intervalo tinha terminado.
Ocasionalmente algumas pessoas passavam por mim, indo em direção a outros blocos. As conversas iam desde maledicências até preocupações acadêmicas. Achei inusitado ver moças tão sobejamente bem vestidas que cheguei a inferir quanto tempo não levaram para se arrumar. Roupas caras, postura altiva, nariz hirto, cabelos perfilados quase que geometricamente endossavam no meu ideário a existência de um mundo fátuo em demasia, que aspira a mais tangível das frágeis perfeições. Era belo e triste. Mas eu não estava ali para avaliar ou julgar, a mim isso não significava muito.
“Que me interessava a forma como as pessoas se vestiam?” Eu que ia praticamente uniformizado para a faculdade, quase sempre de calça jeans, camiseta de banda de heavy metal ou algum subgênero e tênis ou coturno. Enxergava o mundo por entre os cabelos de azeviche que deitavam por minha testa e se aplainavam sobre meus olhos escuros como a noite.
No início do segundo milênio, eu já usava um grande labret spike, um piercing alongado e pontudo que fulgurava entre os lábios e o queixo. Até no escuro ele cintilava e atraía olhares curiosos e antevieiros. Perdi as contas de quantas pessoas se aproximaram de mim ao longo de seis anos para fazer perguntas sobre o dito cujo.
Mesmo depois de tantas abordagens, eu continuava explicando que não machucava, que não era difícil de higienizar, que não doía na hora de colocar. “Mas como você beija com isso? Não é desconfortável?”, questionavam. À época, não era comum encontrar pessoas com tal adorno. E foi justamente por causa desse labret spike que conheci uma italianinha de ascendência russa.
Naquela noite, em frente ao Bloco 1, fazia mais de dez minutos que eu estava sentado no mesmo banco. Saí da sala de aula porque não me sentia bem. Então fiquei lá aspirando um pouco da brisa álgida que a noite homiziava e lançava fortuitamente sobre mim. Junto, trazia um punhado de folhas que se juntavam ao redor de meus pés, formando um tapete mesclado de verde e castanho. O tempo passava, e o verdoengo bálsamo da chuva que só ameaçava se intensificava.
“Hoje ela não vem”, prognostiquei, observando o céu parcialmente límpido que há vários dias confundia os meteorologistas. No momento em que decidi me levantar para ir ao banheiro, uma moça se aproximou. Sua voz soava dulcificada e maviosa, carregada de um forte e desconhecido sotaque: “Isso deve doer, não?”, ironizou sorrindo, mostrando o seu labret de bolinha. Respondi que só dói quando caio de queixo no chão – e sorri com brevidade. Depois indagou se poderia se sentar. “Claro, sem problema…”, falei. Seu nome era Sonya e, para minha surpresa, com ela chegou um subitâneo calor outonal que aplacou o frio noturno em velocidade abismal.
Embora fosse estrangeira, falava português com fluência espantosa. Conversamos sobre música e cinema e, sem demora, o papo se transformou numa flama filosófica e existencialista – recheada de sátiras, aforismos improvisados e comentários bifurcados e sem sentido. O comportamento humano, o sentido da vida e nosso papel no mundo figuravam caricatamente entre os tópicos, assim como a essência do inexistente. “As coisas podem fazer sentido, mas nem sempre precisam, certo?”, “O nada não tem necessariamente que ser somente nada nem mesmo mais do que nada.” “Poder não significa dever, senão a liberdade intelectual morre, e com ela a nossa capacidade de fascinar, não é mesmo?”
“Como alguém pode saber que gosto tem a noite se não for capaz de sorver o seu sabor a olhos fechados, reconhecê-la a partir do seu perfume?” “Não quero ter uma existência mecânica, que não me permita ter tempo para pensar e questionar. Se me render completamente ao trabalho, temo que posso deixar de existir. Talvez em alguns anos não veja mais nada diante do espelho. Terei de amargar o desaparecimento do meu próprio reflexo.” “Ni ni ni ni ni.”
Olhando ao nosso redor, parecíamos dois estranhos, dispersos entre a comédia e o drama de um universo matizado, como aqueles que misturam pessoas e personagens de desenho animado. Éramos nós mesmos – desvelados, sem necessidade de simulação – e aquilo alimentava a nossa humanidade ruidosa em abstração. Tive a mesma sensação de quando se é criança e sai para brincar e fazer o primeiro amiguinho. Em poucos minutos, seus olhos não veem mais estranheza e você percebe a leveza de um contato que no limiar da vida é tão essencial e substancial quanto segurar a mão maternal, sentir o excelso e doméstico calor humano.
Depois daquele dia, continuamos nos encontrando. E meu fascínio e deferência por Sonya evoluía até na proporção de tudo que não dizíamos embora entendíamos. Falar, tão necessário quanto silenciar. A vi como uma dessas raras pessoas capazes de fazer alguém mergulhar dentro de si mesmo para se redescobrir maior, mais vivo, mais leve, mais diáfano, mais livre e outros tantos mais.
Ela irradiava alegria; não do tipo postiça, arrebatadora, efusiva ou imponderada, mas plácida, lídima e mélica como seus cabalísticos olhos castanhos-esverdeados; por si só luzes que iluminavam mais do que qualquer lâmpada em nosso entorno. Seus cabelos triguenhos e longos chispavam como fios de ouro contornando seus traços finos e graciosos, realçando ainda mais sua venustidade.
Mesmo sem batom, seus lábios coravam como morangos frescos e silvestres. Quando sorria, exibindo primorosos dentes níveos, suas covinhas brotavam com doçura, mais bela que a mais portentosa iluminura. Tudo nela transparecia veraz, como uma antítese da artificialidade do mundo de concreto que nos envolvia. Aprendíamos mais sobre a vida e a natureza humana nas entrelinhas de nossos olhos. Não era difícil, se nos enxergávamos um no outro, na completude da espontaneidade.
Numa noite em que não tive aula, nos encontramos em seu apartamento. Fomos à cozinha e a ajudei a preparar piroshki, um pãozinho assado que ela recheava com legumes e vegetais. Comemos e sentamos no sofá para assistir “Ladri di Biciclette”, do magistral neorrealista Vittorio de Sica. Na cena em que roubam a bicicleta do miserável colador de cartazes Antonio Ricci, notei meu ombro direito úmido. Quando olhei para o lado, vi Sonya chorando, com os olhos inflamados e a pele ebúrnea tornada vermelha. Sorri, a cutuquei e com inocência fiz troça de sua sensibilidade à flor da pele. Ela escondeu o rosto entre as mãos miúdas, mudou o cenho e retribuiu me dando dois beliscões.
Ao final do filme, me contou a história de Lada, a deusa do amor e da beleza na mitologia eslava. “Ela possuía atributos parecidos com Freya, Isis e Afrodite. Tinha cabelos longos e dourados. Preferia eles em tranças, com uma grinalda de grãos, o que simbolizava abundância. Mas também podia mudar algo na sua aparência, caso não quisesse ser reconhecida. Lada foi muito popular entre os antigos eslavos porque ela era capaz de substituir o abraço frio do inverno por um calor morno, aprazível”, narrou.
Mais tarde, com a chegada de uma moça com quem Sonya dividia o apartamento, caminhamos até a entrada do elevador, onde nos despedimos com um abraço que durou quase cinco minutos. Moradores passaram por nós se queixando do frio que não sentíamos. Se surpreendiam ao me ver de camiseta, com a jaqueta apoiada no braço direito, despreocupado com o que me aguardava nas ruas. Eu sorria e fechava os olhos, absorvendo o bálsamo orgânico de seus cabelos e os predicados que a vida emanava de seu corpo.
Lá fora, a garoa caía e desaparecia antes de tocar minha pele. Muitos caminhavam rapidamente segurando uma bolsa ou uma pasta sobre a cabeça, com receio das gotículas de água suspensa. A mim, pouco importava. Atravessei alguns quarteirões a pé, com o corpo tão aquecido que nem as rajadas de vento que torciam os galhos mais finos das árvores me atingiam. Sentia os braços calorosos de Sonya em torno de mim, mais macios que lençóis de cetim. Na metade do caminho, o sereno se dissipou e o céu turvo por um instante clareou. Alguns passantes apontaram para o firmamento, onde um rosto feminino em movimento sorria enquanto em primazia se desfazia.
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Um dia de foca
Visivelmente encolerizada, a mulher pensou que fomos lá para prejudicá-los, criar um factoide
Ser jornalista já me permitiu passar por muitas situações insólitas. Uma delas surgiu em Querência do Norte, no extremo Noroeste do Paraná, em 2006. Na manhã daquele dia, que pouco importa a data específica, o meu amigo e jornalista Cleber França saiu de Maringá, passou em Paranavaí e juntos fomos para Querência a bordo de um Renault Clio prata, acostumado a circular pelos terrenos mais inóspitos da região.
Sem dúvida, era um carro que surpreendia pelo viço, chegando a voar por metros em áreas de estradas ruins, onde muita gente só trafegaria de caminhão ou caminhonete. A verdade é que ele parecia acostumado a nos transportar pelos mais diferentes destinos da região, em busca de curiosidades, personagens e histórias pitorescas.
No caminho para Querência do Norte encontramos animais silvestres mortos na estrada, o que me parecia sempre trágico, principalmente quando os filhotes cercavam o pai ou a mãe que nunca mais veriam, emitindo gemidos vigorosos ou fragilizados. O som não transformava nada ao seu redor. Sequer parecia mover a tiririca que brotava no canto do asfalto tórrido. Ainda assim a iteração da cena não a tornava menos adventícia. Talvez fosse reles para tantos outros, não para mim que via cada morte animal como um exemplo da nossa displicência e efemeridade existencial.
Bom, continuando. Chegamos em Querência por volta das 9h30. Era um dia quente, dando a impressão de um Sol maior e mais baixo, e não havia muitas pessoas circulando pelas pacatas ruas da cidade, onde os cantos dos pássaros se misturavam aos sons de rodas, latidos e miados. No centro, fomos até uma lanchonete e pedi informações sobre onde poderíamos encontrar um líder do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) da cidade, considerado um dos mais antigos do Paraná.
Então um senhor simpático, usando sandálias, bermuda e camisa, parou de polir as garrafas de cachaça e sugeriu que deixássemos o assunto de lado, alegando que desconhecidos, principalmente jornalistas, poderiam ser hostilizados. “Procure outra história porque essa daí acho que não vai prestar. Vai por mim”, disse o homem sem piscar, mantendo um sorriso enviesado e um olhar fixo em nossa direção. Agradecemos e saímos da lanchonete.
A verdade é que nosso objetivo principal era coletar informações sobre a realidade dos produtores de arroz irrigado. No entanto, como éramos movido pela abelhudice dos focas, jornalistas recém-formados, queríamos fazer muito mais. Em poucas horas, fomos aos portos Natal, Felício e 18. Entrevistamos proprietários e funcionários de balsas, além de ribeirinhos e pescadores. À tarde, voltamos para a área urbana de Querência do Norte e conversamos com alguns produtores de arroz. Todos foram bem receptivos.
Antes de nossa partida, conhecemos um personagem aparentemente bonachão, um agricultor de meia-idade que no passado ocupou posição de destaque no MST da cidade. Ele nos convidou para ir até uma cooperativa fotografá-lo com um saco de arroz. Chegando lá, entramos em um enorme barracão de estocagem, onde havia centenas de sacos bem posicionados. Para ser fotografado, sugerimos que o homem sorrisse, mostrando o conteúdo do saco e também deixando o cereal escorrer entre seus dedos.
Depois de fotografá-lo várias vezes, quando estávamos saindo do barracão fomos interrompidos pela diretora da cooperativa. “O que vocês pensam que estão fazendo?”, questionou. Respondemos que fomos convidados por um senhor bigodudo que se apresentou como sócio da cooperativa. Assim que olhamos para o lado, o homem entrou em seu carro e partiu sem dar explicações.
Visivelmente encolerizada, a mulher pensou que fomos lá para prejudicá-los, criar um factoide. Chamou a atenção de seis ou sete homens que estavam mais próximos e, esbravejando, ordenou: “Tranquem todas as saídas! Eles não vão sair daqui tão cedo!” Na sequência, ouvi o som retumbante do denso portão de ferro se fechando, com a trava já acionada. Dei um sorriso amarelecido e, mesmo tentando velar a tensão, estremeci, sentindo uma perna mais leve que a outra.
Alguns caras à nossa volta nos observavam com desprezo e chalaça, inclusive pressionando as próprias mãos, num gesto de intimidação. Quando tentei explicar quem éramos e o que fazíamos ali, ela disse que não interessava. “Sei muito bem que trabalho vocês fazem. Já recebemos gente como vocês há poucos dias. Única coisa que quero é essa câmera fotográfica”, exigiu olhando diretamente para o Cleber que a segurava com as duas mãos, como se embalasse o próprio filho.
Ele se negou a entregar a câmera e a mulher caminhou em nossa direção. Balançou os braços no ar e ordenou que as fotos fossem apagadas. Com receio de perder todo o nosso trabalho, não deixamos ela tocar no equipamento. Contudo, concordamos em deletar as fotos da cooperativa diante dela. Embora ainda irritadiça, algum tempo depois ela concordou em abrir o portão.
“Olhe a placa do carro e o adesivo no vidro traseiro. Nunca estivemos aqui. A senhora nos confundiu com alguém,” justifiquei, tentando amenizar a situação pela última vez. Sem interesse em dialogar, a mulher apenas recomendou: “Só digo mais uma coisa. Se sair uma foto daqui em algum jornal, pode ter certeza que vou atrás de vocês. Ah, se vou!”, prometeu.
Diante de tanta intransigência, apenas nos calamos e deixamos aquele lugar. Lá fora, rimos pateticamente, como se o medo jamais tivesse nos alcançado. E não evitei de me recordar da profética recomendação do dono da lanchonete ao saber que a diretora da cooperativa também fazia parte do MST. Nem esqueci da expressão do agricultor falsamente bonachão que talvez estivesse rindo de nós e não para nós nas fotos, antevendo a confusão.