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Fargo, poesia audiovisual do absurdo
Uma série de TV sangrenta com requinte satírico de tragédia grega
Para quem gosta de séries de anti-heróis, e que misturam drama, suspense e humor mórbido, vale a pena conhecer a série Fargo, da FX, que estreou em 2014. Melhor ainda para quem já assistiu ao filme homônimo dos Irmãos Coen, lançado nos Estados Unidos em 1996. Vale a pena investir algumas horas na série e no filme, já que como a storyline é diferente, assim como atores e personagens, um se soma ao outro nas suas mais diversas perspectivas.
Intrigante e envolvente, a primeira temporada da série tem como ponto alto um elenco composto por atores de séries como Sherlock, Breaking Bad e Dexter, além do tarimbado Billy Bob Thornton no papel de um mercenário enigmático, metódico, idealista e desdenhoso. Quem assiste ao primeiro episódio já fica na ânsia de acompanhar os demais.
Na segunda temporada, de 2015, Fargo recomeçou com um novo elenco e sem qualquer associação com o desenvolvimento da primeira temporada. Após um acidente fatal provocado pela esposa Peggy Blumquist (Kirsten Dunst), o incauto assistente de açougueiro Ed Blumquist (Jesse Plemons), o Todd de Breaking Bad, se vê às voltas com a máfia. Sem se dar conta das próprias ações, causa uma guerra entre mafiosos. A situação só não se torna pior do que já é porque tem como atenuante o policial Lou Solverson (Patrick Wilson) e o xerife Hank Larsson (Ted Danson).
Embora as histórias das duas temporadas sejam completamente distintas, alguns padrões são mantidos. Por exemplo, sempre há a moral, o imoral e o amoral, além de personagens que banalizam a vida e se colocam acima da lei para alcançar qualquer objetivo. Outras similaridades entre os personagens incluem prevaricação, comportamento sociopata e negação dos fatos e da realidade, além de anseios eversivos e autodestrutivos.
E o mais curioso é que tudo isso se mistura também à ingenuidade, irreflexão e descomedimento. Excessos de confiança e de profissionalismo também são apresentados como nocivos. São características que cegam os personagens para as falhas e vulnerabilidades percebidas apenas por quem não compõe aquele cenário ou contexto belicoso.
Um exemplo é a cena em que Hanzee Dent (Zahn McClarnon) planeja executar o casal Blumquist, crente de que, por serem pessoas comuns, eles não mostrariam nenhum tipo de resistência. É cômico reconhecer que a experiência também pode levar à tolice e à subestimação, e o que deveria ser uma vantagem se torna uma desvantagem.
Por pior que seja, a ideia da morte em Fargo não chega ao espectador de forma pesarosa, a não ser a de Betsy Solverson (Cristin Miloti), a esposa do oficial Solverson que sofre de câncer. No mais, o passamento parece inevitável e até incentivado como um recurso maior. Ele reforça os desdobramentos meândricos e tresloucados de uma obra cruenta com requinte satírico de tragédia grega.
A desgraça é apresentada em Fargo como uma poesia do absurdo, do tout est possible, mergulhada numa estética carmesim. E nela quase tudo de significante ou insignificante soa mais valoroso que a própria vida – quase relegada a recurso de figuração em meio a um caos de degenerescências.
Gondry, Kaufman e as dores da alma
Eternal Sunshine of the Spotless Mind aborda a instabilidade humana frente às adversidades das relações amorosas
Lançado em 2004, Eternal Sunshine of the Spotless Mind, que chegou ao Brasil com o fidedigno título Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças, é um filme do gênero drama do cineasta francês Michel Gondry em parceria com o estadunidense Charlie Kaufman, roteirista muito conhecido por obras conceituais como Being John Malkovich, de 1999, e Adaptation, de 2002.
Protagonizado por Joel (Jim Carrey) e Clementine (Kate Winslet), que se somam a outros personagens interpretados por famosos como Elijah Wood, Kirsten Dunst e Mark Ruffalo, Eternal Sunshine of the Spotless Mind é um filme interessante sobre a ficcional possibilidade de desconstrução das emoções e sentimentos. Após um conflito amoroso, Clementine decide se submeter a um procedimento neurocirúrgico para apagar Joel de sua memória. A iniciativa parte de uma premissa e anseio de idealização instintivamente humana após grande, mas natural experiência de sofrimento.
Ao saber do ato de Clementine, Joel opta por fazer o mesmo. Durante o processo se arrepende e começa uma batalha psicológica e emocional para preservar fragmentos de sua vida com a namorada. A dor se intensifica ainda mais conforme a mulher se desvanece da memória de Joel. Momentos vividos a dois tornam-se vazios quando o homem é relegado a ser o único personagem de uma realidade que só poderia ser intensa se vivida de forma compartilhada. Tudo parece desértico, difuso e disperso em um contexto mental fugidio e atroz, onde a dor desequilibra a essência humana e submete o homem ao desespero das incertezas da própria existência.
A introspecção leva Joel ao cume da solidão, assim o filme se eleva a um caráter metafórico excepcional. Juntos, Joel e Clementine, inertes em mundos paralelos, mas dissonantes, chegam a representar a desmaterialização do amor. É algo tão dolorosamente humano que lança turbilhões de luz sobre as falhas da natureza social, principalmente a individualização motivada pela insegurança e franca possibilidade de incompreensão. No fundo, tudo é sustentado como consequência de uma comunicação canhestra.
Em suma, Eternal Sunshine of the Spotless Mind é uma obra bela e triste que mistura humanismo, existencialismo e surrealismo. Muito bonita ao traduzir a interiorização e as dores da alma com requinte poético, mas sensivelmente tétrica em premeditar e denunciar o princípio do fim das boas e tradicionais relações humanas. Afinal, o filme parece se embasar na ideia de que em situações de conflito amoroso e existencial cresce o número de pessoas que preferem reclamar de não ter acesso a uma tecnologia capaz de eliminar os desconfortos que as afligem. Não se dão conta que melhor seria ponderar e tentar lidar de frente com as situações mais complicadas.