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Luta de classes no Brasil não é invenção de um espectro da política partidária
Eu tinha 19 anos quando passei dois dias atuando como boia-fria nas lavouras de cana e mandioca

O facão que peguei emprestado do Seu José Alexandre, boia-fria aposentado, fazia a cana deitar pesada e chorosa (Foto: Reprodução)
Para quem acha que luta de classes no Brasil é uma invenção de um espectro da política partidária, permita-me relatar duas experiências ao invés de citar exemplos teóricos. Uma vez me perguntaram porque escrevo tanto sobre explorações encampadas por latifundiários, quando isso muitas vezes pouco interessa aos leitores e à imprensa em geral, o que é um paradoxo em essência. “Por que também você escreve sobre pobres, miseráveis e outros tipos de marginalizados e injustiçados?”, indagaram em seguida. Não dei uma resposta direta, contei uma história e permiti que interpretassem à sua maneira. Afinal, sempre preferi produzir dúvidas do que saná-las.
Eu tinha 19 anos quando fui ao Jardim Morumbi, na periferia de Paranavaí, conhecer boias-frias que atuavam nas lavouras de cana-de-açúcar e mandioca. O que eu sabia sobre as mazelas e a estupidez humana nas relações de trabalho estava mais relacionado ao ambiente virtual e à literatura do que qualquer outra coisa. Então por dois dias acompanhei um grupo de boias-frias em sua jornada. Fiz tudo que eles fizeram. Subi em um ônibus velho e com banco tão desconfortável que a cada solavanco sentia algo batendo nas minhas costas com a rigidez de um pedaço de ripa. À minha volta, alegria se misturava à tristeza. Todos pareciam dispersos no tempo e no espaço.
No primeiro dia o ônibus quebrou e tivemos que fazer parte do trajeto a pé, atravessando uma estrada de quilômetros de cascalho quente como pedra de churrasqueira. O sol que admirei na primeira hora da manhã estava me castigando, fazendo o couro da minha cabeça queimar, atravessando o boné como se ali ele já não existisse mais. Carreguei uma mochila com marmita e entendi porque às vezes o termo boia-fria não condiz com a realidade, ainda mais se você deixar a boia sobre uma pedra a céu aberto em dia de mormaço.
O facão que peguei emprestado do Seu José Alexandre, boia-fria aposentado, fazia a cana deitar pesada e chorosa, emitindo um barulho tão abafado quanto a estiagem. Me senti como se estivesse derretendo e minhas mãos pinicavam, mesmo dentro das luvas que ficaram malcheirosas no decorrer do dia. Quando eu parava para descansar, com o rosto já coberto de fuligem, via meu rosto refletido no display do celular. Sentado sobre a garrafa térmica eu pensava. “Será que é assim que se despersonaliza um ser humano? Fazendo ele trabalhar tanto que se perde de si mesmo, mal tendo tempo para pensar?”
Ao meu redor eu via desde jovens a idosos labutando. Alguns respiravam com dificuldade conforme a impressão do sol baixo se intensificava. Parecíamos reféns de um deserto prestes a nos engolir. “A terra chora sempre que a cana cai, chega a rachar de raiva. E a gente só chupando a água. Isso aqui tá virando o Saara”, disse Manoel com um sorriso amarelo.
No meio do eito ouvi algumas moças falando sobre o desejo de viver com mais dignidade. Sonhavam com uma oportunidade de deixar o trabalho no campo. “Acho que isso nunca vai acontecer porque o serviço só termina quando o corpo padece. Tem dia que a gente mal tem força pra limpar a casa. Esse trabalho parece que foi feito pra prender a gente, não dar esperança”, reclamou uma moça chamada Júlia, de 18 anos. Naquele dia partimos com o pôr do sol. Sentindo meus braços e ombros doloridos, cumprimentei o motorista e sentei no fundo do ônibus, observando semblantes à minha frente.
Notei expressões gerais de cansaço, queixos inclinados sobre o peito, cabeças arqueadas mirando o teto, um silêncio geral. E muita sujeira em nossos corpos avariados pelo trabalho. Júlia sentou ao meu lado e contou que conversou com o patrão no dia anterior para saber se seria possível diminuir a jornada de trabalho para que ela e mais cinco meninas pudessem estudar. “Ou come ou estuda. Você decide”, respondeu o homem sem dar mais explicações.
No dia seguinte, acordei de madrugada novamente e subi em outro ônibus no Jardim Morumbi, com destino a uma lavoura de mandioca. E lá fomos nós. Eu ainda sentia o cheiro de cana em meu corpo sovado, prurido pelas folhas cortantes que na tarde anterior roçaram meu pescoço e parte dos braços.
Seu João, o mais velho da turma e que atuava no ramo desde a adolescência, foi quem me ensinou a extrair a mandioca da terra com mais facilidade. “Se aprender o trejeito de primeira, não pega vício depois”, garantiu rindo. À tarde comecei a sentir dores nos quadríceps e na coluna lombar. Um rapaz de nome Genival afirmou que escolhi um dia ruim para acompanhar eles porque a “terra seca” deixa a mandioca mais “teimosa”. “Você vai sofrer, piá. O negócio tá ruim até pra nós, só não pro patrão”, comentou às gargalhadas.
Para minha surpresa, um homem bem vestido se aproximou de mim por volta das 16h. “Você que é o tal jornalista? E por que se dar o trabalho de fazer tudo isso para escrever sobre essa gente? Perde tempo não, rapaz! Tanta coisa boa pra você contar por aí. O que acha de conhecer minha fecularia? Aquilo lá sim é uma novidade que pode trazer algo de bom pra você”, declarou o fazendeiro.
Agradeci a oportunidade de me deixar passar o dia na propriedade e argumentei que estava apenas fazendo uma pesquisa sobre a realidade dos trabalhadores do campo. “Entendi. Mas não tem nada de ruim pra você falar daqui, né? Esse povo hoje em dia tá comendo carne que nem a gente já, uma coisa incrível de se ver. Melhor é impossível”, replicou.
Quando a população ignorou o futuro governador
O dia em que Bento Munhoz da Rocha Neto falou sozinho no centro de Paranavaí
Em 1950, durante a campanha para governador do Paraná, Bento Munhoz da Rocha Neto fez uma visita a Paranavaí, no Noroeste do Paraná, onde criticou a cafeicultura e falou sobre as possibilidades de prosperidade da pecuária extensiva na região do arenito Caiuá. Antes de terminar o discurso, a população foi embora e o deixou falando sozinho.
Bento Munhoz da Rocha Neto deu início ao discurso afirmando que a cafeicultura, implantada desde a época da Vila Montoya, pela Companhia Brasileira de Viação e Comércio (Braviaco), “deu o que tinha que dar” e que era mais do que hora do café ser substituído pelo gado. Usou como justificativa não apenas o rendimento que o gado poderia proporcionar, mas também a fragilidade do solo arenoso.
Segundo o então futuro governador, a lavoura aliada as chuvas castigaram demais as terras do Noroeste Paranaense. Hoje, avaliando o discurso de Rocha Neto e o comparando a realidade atual, pioneiros afirmam que Bento Munhoz veio a Paranavaí para ludibriar os mais humildes e abrir espaço para os latifundiários. “Como que uma pessoa que tinha uma rocinha e tirava dela apenas o sustento pra sobreviver ia ter condição de criar boi?”, questiona o pioneiro João Mariano.
Por isso, no dia da visita, em discurso no centro da cidade, ninguém gostou das palavras de Rocha Neto. Depois de tanto elogiar a pecuária e criticar a cafeicultura, toda a população, já irritada pelo desdém do futuro governador a uma cultura que existia em Paranavaí há mais 20 anos, o deixou falando sozinho, com exceção de um engraxate que só continuou ali na esperança de amealhar algumas moedas.

Rocha Neto chegou a Paranavaí sem ter a mínima noção da importância da cafeicultura para a população (Foto: Reprodução)
De qualquer modo, Bento Munhoz da Rocha Neto parecia prever o futuro. Ainda assim, ninguém esperava que as pequenas propriedades rurais de Paranavaí seriam substituídas pelos latifúndios. A previsão se concretizou, tanto que a partir de 1962, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a pecuária ampliou as desigualdades sociais que eram bem menores na época da Fazenda Brasileira e Colônia Paranavaí. Naquele tempo, a administração pública limitava a distribuição de terras para tentar conter a formação de latifúndios e a política de base coronelista.
“Quando a Brasileira estava sendo colonizada de novo, na década de 1940, o Francisco de Almeida Faria, tio do Ulisses Faria Bandeira [ex-prefeito de Paranavaí], era o responsável por colonizar o povoado. Uma vez, ele chamou todo mundo lá na inspetoria e disse: ‘essa terra é só pra brasileiro nato, e para os pobres, os humildes’”, lembrou o pioneiro paulista João da Silva Franco em entrevista à Prefeitura de Paranavaí e registra no livro “História de Paranavaí”, de Paulo Marcelo Soares da Silva. Anos depois, ninguém mais defendeu o ideal dos colonizadores.
Com a implantação da pecuária em Paranavaí houve um esvaziamento populacional sem precedentes. Milhares de colonos foram expulsos do campo. Sem ofertas de trabalho na área urbana, não tiveram alternativas, foram obrigados a ir embora. Para se ter uma ideia do impacto da pecuária, até 1960 havia mais de 300 mil trabalhadores rurais vivendo na região de Paranavaí e 20 anos depois o total caiu para pouco mais de 70 mil, segundo informações do IBGE.
Saiba Mais
Mesmo sem contar com grande apoio da população de Paranavaí, Bento Munhoz da Rocha Neto foi eleito governador. Assumiu o Governo do Paraná de 1951 a 1955.
Curiosidade
O nome oficial do Colégio Unidade Polo é Colégio Estadual Professor Bento Munhoz da Rocha Neto em homenagem ao ex-governador.
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Grileiros tomavam conta da Brasileira
Em 1935, o povoado era habitado apenas por pioneiros corajosos e posseiros
Na década de 1930, quando a Fazenda Brasileira, atual Paranavaí, no Noroeste do Paraná, foi abandonada por grande parte de seus habitantes, ficaram apenas os pioneiros mais corajosos e grileiros que logo começaram a tomar conta do povoado.
Em 1935, a Brasileira se dividia entre pioneiros que não queriam abrir mão do novo lar e grileiros que chegavam de todas as partes do país. Nenhum dos remanescentes se deixava intimidar, mesmo com a intervenção federal de Manoel Ribas. “Havia poucos colonos. Naquele tempo, tinha que ter muita coragem pra vir pra cá, então dá pra imaginar que quem se aventurava na Fazenda Brasileira estava sujeito a duas coisas: matar ou morrer”, relata o pioneiro cearense João Mariano.
Mesmo com poucos moradores no povoado, a briga por terras se acirrou. Posseiros trocavam ameaças sem se importar com os transeuntes, o que já dava a ideia de que algo muito ruim viria depois. Quando o Governo do Paraná decidiu intervir, dando prazo de 90 dias para os grileiros desocuparem as áreas invadidas, a situação já estava fora de controle. “Seria preciso muito mais que isso pra fazer esse pessoal desapropriar as terras”, destaca Mariano, acrescentando que chegou um momento em que ninguém mais trocava ameaças, simplesmente matava o seu desafeto.
À luz do dia, não era raro ouvir tiros vindo de várias direções. Cadáveres eram vistos em meio ao povoado, caídos sobre o solo arenoso. Dependendo da intensidade da corrente de ar, a terra cobria superficialmente o morto. Aqueles que não tinham familiares eram deixados onde estavam, abandonados sobre o chão, até começarem a se decompor. Apenas quando o odor da volatização de cadaverina e putrescina se tornava insuportável que alguém dava um jeito de se livrar do corpo.
“Mas a vida continuava. Afinal, quem tinha peito pra interferir?”, questiona o pioneiro, lembrando que quem quisesse viver na colônia tinha que lidar com a morte como se fosse algo natural e cotidiano. À época, acontecia do moribundo agonizar no chão enquanto suplicava por ajuda. Mesmo assim, as pessoas passavam ao lado ignorando sua presença.
A ambição e a ganância em conseguir por meio da força um pouco dos 317 mil alqueires de terras da Fazenda Brasileira custou a vida de muita gente. Estima-se que dezenas de pessoas foram assassinadas nesse período, embora seja impossível precisar o total de vítimas. Muitos crimes eram ocultados pelos jagunços que se livravam dos cadáveres nas imediações do Porto São José, na Lagoa do Jacaré, confluente do Rio Paraná. “Os corpos eram despejados lá porque os jacarés comiam a carne humana, eliminando as provas do crime”, garante o pioneiro mineiro Sátiro Dias de Melo.
Em 1936, quando a Brasileira começou a ganhar fama em todo o Paraná pela onda de crimes, o governo federal pressionou o interventor Manoel Ribas que enviou para cá o tenente gaúcho Telmo Ribeiro, famoso por métodos menos ortodoxos de impor ordem. Com o tenente, conhecido como rápido no gatilho, veio um grupo de mercenários paraguaios de Pedro Juan Caballero. Não levaram mais do que alguns meses para dar fim ao clima de faroeste que imperava no povoado. Segundo pioneiros, melhoraram a situação ao preço de muitas mortes.