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Roberto Moreira e a tradicional hipocrisia brasileira
Filme de estreia do cineasta mostra a diferença entre olhar e enxergar a realidade
O filme Contra Todos, que marcou a estreia de Roberto Moreira como cineasta, é recheado de críticas sociais que desnudam a hipocrisia da sociedade brasileira a partir de uma caricata família de classe média baixa.
Contra Todos foi o filme brasileiro mais premiado em 2004, quando foi lançado, e não por acaso. A obra apresenta todos os elementos de uma boa história. Na periferia de São Paulo, Teodoro (Giulio Lopes), que tenta preservar uma imagem de homem religioso, interpreta um mercenário e pai de família que bate na filha Soninha (Sílvia Lourenço) e trai a mulher Cláudia (Leona Cavalli) com a companheira de culto Terezinha (Martha Meola).
Infeliz com o marido, Cláudia se relaciona com Júlio (Ismael de Araújo). Aos poucos, a verdadeira imagem da família se descortina. A situação sai de controle quando o amante de Cláudia é assassinado. Perturbada, a mulher destrói a casa e abandona tudo. Depois de fugir e se hospedar em um hotel, Cláudia conhece Lindoval (Dionísio Neto), com quem começa a namorar.
Mais uma vez, o plano de felicidade é interrompido quando Lindoval quase morre após ser espancado. Cláudia acredita que o crime é de autoria do marido. Em meio a tanta confusão, Teodoro decide se casar com Terezinha e mandar a filha morar com a avó. A história ganha outro rumo quando a religiosa recebe uma fita de vídeo do futuro marido tendo relações sexuais com a ex-mulher; Terezinha acreditava que Teodoro era solteiro.
Muitos dos acontecimentos do filme são motivados pelo malandro e persuasivo Waldomiro (Aílton Graça), amigo e confidente da família de Teodoro. Além disso, também chama atenção a busca por isenção e impessoalidade. O cineasta não interfere nos acontecimentos, se limita a apresentá-los da forma mais crua possível, deixando para o espectador a tarefa de refletir e tirar conclusões.
O autor usa recursos que corroboram o realismo da trama – como planos com a câmera na mão, evitando a plasticidade. Moreira ainda escolheu locações que fogem aos clichês da periferia paulistana. Para dar mais naturalidade às cenas, optou por um elenco que concordou em participar do filme sem ter contato com o roteiro antes do início da produção.
A história do Preto Velho
Em Cafundó, João de Camargo representa o Brasil miscigenado e heterogêneo
Lançado em 2005, Cafundó, dos cineastas Paulo Betti e Clovis Bueno, é um filme recheado de simbologias que narra a trajetória de João de Camargo (Lázaro Ramos), o mais emblemático preto velho brasileiro. Na obra que teve como cenário várias cidades do Paraná, como Ponta Grossa, Paranaguá e Antonina, João de Camargo representa um símbolo de fé e a figuração de um Brasil marcado pela miscigenação, heterogeneidade e fusão de valores.
Exemplo de toda essa mistura é a ideia do protagonista em criar a Igreja de Bom Jesus do Bonfim que une elementos de umbanda e cristianismo; um revolucionário artifício que pode não ter sido determinante na aceitação dos símbolos religiosos africanos, mas contribuiu para mostrar uma nova realidade que se distanciava daquele contexto europeizado.
A iniciativa de construir uma igreja diferente só surge quando o protagonista decide, após uma vida errante de muito sofrimento, viver para a fé. João de Camargo rompe sua relação com o passado na busca pela redenção. A entrega às crenças religiosas também se relaciona ao fato do personagem assumir o dom para a mediunidade, não ignorando mais as vozes que o acompanhavam, e sim as usando para curar enfermidades.
O Preto Velho era um homem muito à frente de seu tempo, tanto que os primeiros indícios de seu perfil como líder aparecem em 1866, quando o personagem começa a aceitar a vida e o próprio talento para lidar com as multidões e o preconceito racial. Camargo não só estimulava a fé das pessoas em uma divindade, mas também as fazia acreditar no valor da vida e na importância de cada ser humano, independente de credo ou origem.
Embora tenham se passado quase 150 anos, até hoje as influências do Preto Velho na cultura brasileira se estendem por diversas esferas artísticas e religiosas. Mesmo que desde 1988 o Cafundó, remanescente do quilombo situado na região de Sorocaba, em São Paulo, tenha deixado de ser um folclórico espaço físico de casinhas de barro e pau trançado, o lugar ainda é grande como um ambiente imaterial que se multiplica no ideário de quem se preocupa em preservar uma cultura pouco valorizada.
Além da interpretação inesquecível de Lázaro Ramos, é preciso destacar os papéis de Leona Cavalli, Leandro Firmino, Alexandre Rodrigues, Ernani Moraes, Luís Melo, Renato Consorte, Francisco Cuoco e Abrahão Farc. Outro grande atrativo de Cafundó é a trilha sonora de André Abujamra que a cada cena se mostra um exímio manipulador de emoções, introduzindo o espectador por viagens transcendentais. A rabeca entra na história como um recurso estilístico que pauta o tempo e os rompantes do acaso.