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Como Tolstói influenciou o vegetarianismo na Rússia

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“O vegetarianismo, desde que não tenha a saúde como objeto, está sempre associado a um alto ponto de vista moral”

Nem mesmo Tolstói imaginava que o seu prestígio como autor faria dele uma das personalidades mais importantes da história do vegetarianismo russo (Acervo: Tolstoy Foundation)

A relação de Lev Tolstói com a abstenção do consumo de carne e mais tarde com o vegetarianismo durou 25 anos, até o seu falecimento aos 82 anos na Estação de Astapovo, no Oblast de Lipetsk, em 20 de novembro de 1910. Porém o seu legado sobrevive. Depois de publicar o seu ensaio “Первая ступень” ou “O Primeiro Passo” em 1892, nem mesmo Tolstói imaginava que o seu prestígio como autor faria dele uma das personalidades mais importantes da história do vegetarianismo russo.

Sim, embora ele mesmo tivesse sido influenciado por nomes como Howard Williams, William Frey, Andrey Beketov e Vladimir Chertkov, nenhum desses nomes teria mais peso na história do vegetarianismo russo do início do século 20 quanto Tolstói. O motivo? O seu prestígio, popularidade e espiritualidade não religiosa. O escritor russo combinava o que existia de mais atrativo para o resgate de uma consciência de respeito à vida humana e não humana no contexto da cultura russa e eslava.

Além de se tornar popular entre os povos eslavos do início do século 20, “O Primeiro Passo” conquistou espaço na Europa Ocidental, tendo como porta de entrada a Inglaterra, e nos Estados Unidos, onde atraiu a atenção das principais sociedades vegetarianas. Em 1900, o movimento vegetariano russo viu uma oportunidade de um novo tipo de articulação valendo-se da imagem e do prestígio de Tolstói como um meio de divulgação e consolidação de uma propaganda em favor do vegetarianismo, inspirada em princípios semelhantes aos do britânico Henry Salt – embora abarcassem também pessoas que se enquadravam no que seria chamado mais tarde de ovolactovegetarianismo.

À época, os jornais “Vegetarianskiy Obozrenie”, que circulou em Kiev de 1909 a 1915, e o “Vegetarianskiy Vestink”, com quem Tolstói colaborava, se voltaram completamente para a filosofia de vida vegetariana; além de ajudar a fortalecer a construção social do incipiente movimento vegetariano, tendo ainda o suporte de panfletos e livros publicados por importantes intelectuais vegetarianos russos como Beketov. Na realidade, o “Vegetarianskiy Obozrenie” elevou Tolstói à posição de símbolo do jornal e frequentemente incluíam artigos de sua autoria, além de relatos de pessoas que se tornaram vegetarianas e ovolactovegetarianas por influência de Tolstói – que se absteve definitivamente do consumo de carne em 1885 junto com as filhas Tanya e Masha. Mais tarde, rejeitando outros alimentos de origem animal.

Tão logo os jornais vegetarianos se popularizaram com o amparo do escritor russo, o vegetarianismo se tornou cada vez mais bem aceito. Segundo informações do extinto “Vegetarianskiy Obozrenie”, três cafeterias de Moscou serviam refeições para pelo menos 1,3 mil pessoas em um dia comum. Além da pioneira Sociedade Vegetariana de São Petersburgo, fundada em 1901, e composta por mais de 150 membros, surgiram também as sociedades de Kiev em 1908 e de Moscou em 1909 – mudanças diretamente associadas ao crescimento do movimento apoiado por Lev Tolstói até 1910.

E o interesse não se limitou a essas cidades. Vegetarianos de localidades distantes como Saratov, Vologda e Ekaterinoslav (Dnipro), além de Odessa, Carcóvia, Poltava, Minsk e Roston do Don se articularam para criarem sociedades vegetarianas. Em 1915, 12 cidades russas contavam com sociedades vegetarianas de grande representatividade. Inclusive municipalidades que não possuíam movimentos organizados inauguraram cafeterias vegetarianas. Porém a mais antiga surgiu em Moscou em 1894, onde os proprietários se orgulhavam de expor grandes retratos de clientes como Lev Tolstói e do prestigiado pintor realista Ilya Repin, que se tornou vegetariano por influência da escritora e sufragista Natalja Borísovna Nordman-Severova.

As reuniões das sociedades e dos grupos vegetarianos, que também eram formados por reformadores sociais, geralmente eram realizadas em restaurantes e cafeterias. A Rússia nesse aspecto fazia oposição à Alemanha que naquele tempo reprovava a efervescência do vegetarianismo russo por considerá-lo “insalubre”. Em resposta a essas críticas, os russos exaltavam seus atletas vegetarianos que se destacavam pela força física e pelas habilidades esportivas.

Mesmo após a morte de Lev Tolstói em 1910, o jornal “Vegetarianskiy Obozrenie” continuou recebendo correspondências de leitores explicando como Tolstói mudou suas vidas e fez com que abandonassem o consumo de carne, se tornassem vegetarianos e passassem a respeitar mais os animais e as pessoas – considerando que Tolstói não apenas incitava o respeito aos não humanos, mas também a todos os seres humanos independente de hierarquia social. Na realidade, o autor russo passou a nutrir um grande respeito pelos camponeses nos seus últimos 30 anos, depois que rejeitou publicamente os princípios e valores aristocráticos.

Em 1913, durante o Primeiro Congresso Vegetariano Russo, o vegetarianismo foi considerado uma “filosofia de vida com um alto valor moral que só pode ser alcançado quando se busca a realização de um reino de harmonia e justiça na Terra”. Essa afirmação foi ao encontro do que foi dito por Tolstói anos antes do seu falecimento: “O vegetarianismo, desde que não tenha a saúde como objeto, está sempre associado a um alto ponto de vista moral.” Em 1913, nesse clima, Olga Konstantinovna Zelenkova publicou aquele que é considerado o primeiro livro de culinária vegetariana da história da Rússia. Intitulado “Я никого не ем” ou “Eu Não Como Ninguém”, que tem um total de 1,5 mil receitas. Proibido com a implantação do regime soviético, o livro foi relançado em 1991. Na segunda versão, além das receitas, há artigos publicados em jornais e assinados por Lev Tolstói.

Alexandra Tolstoy escreveu em “Tolstoy and the Russian Peasant”, publicado no “The Russian Review” em abril de 1960, que seu pai foi o vegetariano mais famoso e bem reconhecido da Rússia: “Embora ele não tenha escrito extensivamente sobre o tema do vegetarianismo em si, seja em sua ficção, ensaios ou correspondências, o seu nome se tornou sinônimo de vegetarianismo no século 20, tanto na Rússia como no mundo todo. Colônias agrícolas tolstoianas surgiram no início do século 20, não só na Rússia, como na Inglaterra, Holanda, Bulgária, África do Sul e Estados Unidos.” Com a morte de Tolstói, Vladimir Chertkov e Johannes van der Veer passaram a ser os principais divulgadores do seu trabalho.

Referências

Tolstoy, Alexandra. Tolstoy and the Russian Peasant. The Russian Review. Volume 19. No. 2. Páginas 150-156 (1960).

Barkas, Janet. The Vegetable Passion: A History of the Vegetarian State of Mind. Scribner; First Edition (1975).

LeBlanc, Ronald D. Vegetarianism in Russia: The Tolstoy(an) Legacy. The Carl Beck Papers in Russian and East European Studies. No. 1507 (2001).

Gregory, James. Of Victorians and Vegetarians: The Vegetarian Movement in Nineteenth-century. I.B.Tauris (2007).

Alston, Charlotte. Tolstoy and Vegetarianism (junho de 2014).





 

Como Tolstói rejeitou o consumo de animais

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Tolstói em 1897 (Foto: Reprodução)

Se você já leu “O Primeiro Passo”, considerado na Rússia como um manifesto contra o consumo de animais, e que inclusive teve grande influência sobre o ressurgimento do vegetarianismo entre os povos eslavos do final do século 19 e início do século 20, você sabe que a influência de Liev Tolstói estava muito além do campo literário ficcional. Inclusive ele não raramente dizia que preferia mais ser lembrado por seus ensaios filosóficos e pela contrariedade ao consumo de animais do que por suas obras-primas como “Guerra e Paz” e Anna Karenina”.

No entanto, não foi por um despertar casual que ele decidiu parar de comer animais. Mas sim por uma série de eventos – talvez o mais importante deles quando recebeu em sua casa em Yasnaya Polyana, no Oblast de Tula, a visita do senhor William Frey em uma tarde de outono de 1885. Frey, ou Vadim Konstantinovich Geins, deu uma verdadeira palestra a Tolstói abordando desde os benefícios da dieta vegetariana até as implicações morais da exploração de animais. Inclusive essa conscientização sobre o sofrimento animal foi o que o motivou a escrever o ensaio “O Primeiro Passo”, publicado em 1892.

As ideias de William Frey foram trazidas dos Estados Unidos, onde ele viveu por 17 anos em comunidades protovegetarianas e vegetarianas nos estados do Missouri, Kansas e Oregon. Frey inclusive declarou a Tolstói que no decorrer da história da humanidade chegará um dia em que todos, seja por conscientização ou inevitabilidade, terão que adotar uma alimentação vegetariana. O escritor russo não se surpreendeu, mas apenas aquiesceu e exclamou:

“Sim, meu amigo, você está certo! Obrigado por suas palavras sábias e honestas. Certamente, seguirei o seu exemplo e abandonarei a carne.” Antes desse encontro, Tolstói já havia ensaiado a abstenção desse consumo. Segundo o livro “The Vegetable Passion: A History of the Vegetarian State of Mind”, de Janet Barkas, publicado em 1975, ele começou a reduzir o consumo de carne logo depois de escrever “Confissão”, de 1879, e então foi mudando a sua alimentação até adotar definitivamente uma dieta que não incluía o consumo e a exploração de animais.

Em 1882, Tolstói já havia descrito em um de seus diários o seu interesse em se alimentar apenas de kasha, geleias e conservas. Além do escritor, suas filhas Tanya e Masha também adotaram imediatamente uma alimentação livre de carne após os relatos bem convincentes de Frey argumentando que é possível viver muito bem consumindo apenas cereais, frutas e castanhas. Segundo a obra “Vegetarianism in Russia: The Tolstoyan Legacy”, de Ronald D. LeBlanc, de 2001, outra pessoa a quem é creditada a conversão de Tolstói ao vegetarianismo é o seu discípulo e amigo Vladimir Chertkov, que se tornou vegetariano quando viveu na Inglaterra nos anos de 1884 e 1885, e que levou à Rússia tudo que encontrou relacionado ao tema. Naquele tempo, a literatura vegetariana inglesa ou voltada aos direitos animais era publicada na Inglaterra pela Humanitarian League, fundada em 1891 pelo pioneiro dos direitos animais Henry Salt, o que curiosamente revela a estreita relação entre os humanitaristas e os vegetarianos da época.

O livro “A Dieta Humana no Presente e no Futuro”, escrito pelo cientista Andrey Nikolaevich Beketov e lançado em 1878, também teve considerável influência sobre Tolstói. Na obra, Beketov apresenta razões morais e psicológicas sobre o porquê seres humanos na sua progressão de um estado primitivo para um estado verdadeiramente civilizado devem se abster do consumo de animais.

Em 1890, Tolstói escreveu o prefácio de um panfleto sobre os males da caça – intitulado “Um Passatempo Maligno: Reflexões Sobre a Caça”, publicado por Chertkov em 1890. No texto, Vladimir Chertkov argumenta que não é mais necessário, em termos de evolução, o ser humano ter que matar animais para se alimentar. “A matança de animais não é mais uma forma natural de luta pela existência, mas sim um retorno voluntário a um estado primitivo e bestial.” Segundo Chertkov, a caça instiga no ser humano civilizado instintos animais que a consciência humana superou há muito tempo. Esse posicionamento foi endossado por Tolstói.

O escritor russo passou a interpretar que o ato de se alimentar de animais é imoral na medida em que envolve a realização de um ato contrário ao sentimento moral, ou seja, a matança. LeBlanc narra que um dia a tia de Tolstói se juntou a eles para o jantar e encontrou uma faca e uma galinha viva sobre a cadeira. O escritor justificou que sabia que ela gostaria de comer galinha, mas que nenhum deles a mataria, assim delegando a ela o ato de matar o animal se quisesse comê-lo – o que naturalmente ela não o fez.

“Para uma senhora de classe alta de seu tempo, isso passou perto de um escândalo”, avalia Ronald D. LeBlanc. Porém, Tolstói era pacífico e tais ações tinham apenas a intenção de conscientizar, não de ofender. Inclusive ele sempre permitiu que seus familiares, amigos e conhecidos tirassem as suas próprias conclusões a respeito de seu posicionamento em relação ao não consumo de animais.

Pouco tempo antes de falecer, Tolstói disse que preferia ser celebrado por suas obras voltadas à sua filosofia de vida e filosofia moral, o que incluía a sua defesa de que os animais não humanos também têm direito à vida, do que pelos seus romances. Claro que o alcance de seu trabalho como romancista o levou muito mais longe em popularidade, mas de alguma forma a sua filosofia teve um impacto muito significativo. Exemplos?

“O Primeiro Passo”, que deu origem às bases do vegetarianismo ético russo e a sua obra “O Reino de Deus está em vós”, de 1894. Esta segunda traz uma abordagem espiritual não dogmática e que teve grande influência sobre a juventude de Gandhi, tanto que depois o líder pacifista fundou nas imediações de Joanesburgo, na África do Sul, a Fazenda Tolstói. Gandhi, que foi influenciado pelos ensaios de não violência de Tolstói, que incluía animais humanos e não humanos, se considerava um tolstoiano.

Referências

Barkas, Janet. The Vegetable Passion: A History of the Vegetarian State of Mind. Scribner; First Edition (1975).

LeBlanc, Ronald D. Vegetarianism in Russia: The Tolstoy(an) Legacy. The Carl Beck Papers in Russian and East European Studies. No. 1507 (2001).

Gregory, James. Of Victorians and Vegetarians: The Vegetarian Movement in Nineteenth-century. I.B.Tauris (2007).

Alston, Charlotte. Tolstoy and Vegetarianism (junho de 2014).