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Jaime Mota e as escolas da Etiópia
O fotógrafo andaluz Jesús Jaime Mota, falecido em 16 de junho de 2011, nos deixou uma grande lição de vida. Viajando pelo continente africano, ele se deparou com situações extremamente incomuns. Na Etiópia, Mota encontrou crianças indo nuas para as escolas. Ou seja, nem mesmo a ausência de roupas, em decorrência da pobreza extrema, as afastou do desejo de aprender.
“Eu nunca poderia imaginar que uma viagem de prazer pudesse mudar a minha visão sobre a vida. O turismo pela África é como uma cura para o espírito e a mente. Não procurem imagens sensacionais no meu trabalho. Eu quis apenas retratar cada personagem em sua forma mais pura, capaz de entrar em nossa alma e dar uma olhada sincera dentro de nós. O objetivo do meu trabalho sempre foi transmitir sentimentos e sensações que um dia eu vivi com aquele povo humilde, sentimentos puros e sinceros, sensações intensas e cheias de emoções inesquecíveis.”
Quando suas crianças se recusarem a ir para a escola, mostrem a foto de Jaime Mota a elas. Tenho certeza de que ele agradeceria.
Acesse: www.jaimemota.com
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O triste fim de quem não quer ser ajudado
Na última terça-feira, dia 26 de janeiro de 2015, fiquei sabendo de um fato que me deixou chocado. No ano passado, eu e mais alguns amigos nos mobilizamos para ajudar um casal que estava passando por uma situação extremamente crítica – aparentemente de miséria, já que viviam em um barraco. Com o tempo, estreitamos o contato com eles e descobrimos que eles não foram tão sinceros conosco. Ainda assim ajudamos do mesmo jeito. Afinal, o que custa fazer o bem a alguém?
Quem ajuda por solidariedade ou empatia não espera nada em troca. Porém, ficamos sabendo mais tarde que essas pessoas, mesmo depois de receber até mais do que tínhamos prometido, começaram a espalhar boatos sobre o nosso trabalho. Supostamente dando a entender que tínhamos arrecadado muito dinheiro e não repassamos a eles, o que por sinal, não fazia o menor sentido, já que investimos até tempo e dinheiro do nosso próprio bolso. Afinal, iríamos roubar nos mesmos? Mas até aí tudo bem.
Os dois eram alcoólatras e se recusavam a mudar de vida, apesar dos nossos conselhos. Inclusive nos recebiam em sua casa embriagados. Na realidade, em algumas situações chegavam a rir e quase cair diante de nossos pés. Um dia, liguei para eles e foram surpreendentemente agressivos. Então amenizei a situação dizendo que ajudaríamos mais um pouco, mas não iríamos mais visitá-los, já que eles poderiam seguir em frente tranquilamente.
Na última conversa, a mulher chegou a fazer algumas acusações, dizendo que eu tinha conseguido o que queria. Eu, como jornalista, não recebo e nunca recebi nada por registrar a realidade da periferia. É um trabalho que faço porque gosto, me interesso, me identifico com tudo isso e acho que vale a pena ser partilhado com outras pessoas e divulgado. Na realidade, se vocês entrevistarem jornalistas, acredito que pelo menos uma boa parte vai dizer que os trabalhos mais gratificantes foram aqueles que menos lhe trouxeram retorno financeiro.
Bom, mas continuando. Fui acusado pela mulher de ter me dado bem ao contar a história deles – só não entendi como isso seria possível. Respondi tranquilamente que ela estava equivocada e tentei me justificar. Mas sua malícia desconsiderou todos os meus argumentos. Fui insultado pela mulher, só que ainda a ajudei mais uma vez. E aquele foi nosso último contato. Nunca mais tive notícias deles.
Então ontem fiquei abismado e até triste ao saber que ela faleceu há 15 dias em decorrência de cirrose hepática. A mulher tinha cerca de 40 anos. E o seu marido teve outro AVC e agora está quase em estado vegetativo. Para cuidar dele, não restou ninguém. Sobrou apenas as visitas esporádicas de filhos e enteados viciados em crack que normalmente os visitavam para buscar dinheiro e alimentos. Os amigos de boteco também desapareceram.
As crianças do Cine Ouro Branco
Vi as lágrimas escorrendo pelo seu rosto, molhando sua camisa xadrez abotoada até na altura do pescoço
Não faço parte de uma geração que tem as lembranças mais sólidas e claras do Cine Ouro Branco, um dos grandes pontos de entretenimento da população de Paranavaí, no Noroeste do Paraná, até 1993. Quando o cinema foi fechado, eu ainda era criança. Apesar disso, frequentei o Ouro Branco por alguns anos da minha infância e tenho boas recordações daquele tempo.
A minha primeira vez no cinema foi numa sessão de “Os Heróis Trapalhões – Uma Aventura na Selva”, num final de semana em 1988. Até então, a maior tela que eu tinha visto era da TV de 21 polegadas, coberta por uma caixa de madeira envernizada, que ficava na sala de casa. Mesmo assim eu era feliz assistindo desenhos animados nela.
Logo que eu, meu irmão e minha mãe chegamos em frente ao Cine Ouro Branco, na Rua Manoel Ribas, no centro de Paranavaí, prestei atenção na grande movimentação de pessoas na fila da bilheteria. Miúdo, eu observava tudo na proporcionalidade da minha estatura. Via mais sapatos, pernas e cintos do que rostos. A não ser, claro, quando as pessoas eram tão pequenas quanto eu.
Antes de entrarmos, caminhei vagarosamente e de costas pela calçada, tentando observar a altura do prédio do Cine Ouro Branco, mas era impossível para mim. Então pensei que aquele fosse o maior cinema do mundo. Quem sabe, atravessasse os céus e tivesse contato direto com o paraíso de que falavam na escolinha.
O gentil pipoqueiro sorria pra mim, percebendo através dos meus olhos grandes, cilíndricos e pretos que aquela era a minha estreia no cinema. “É sua primeira vez? Você vai gostar e vai querer voltar mais vezes”, disse enquanto ajeitava uma pequena quantidade de pipoca doce que tentava se misturar com a salgada.
Quentinha, a pipoca pronta para consumo estalava dentro do carrinho. Por um momento, cheguei a crer, na minha ilusão meninil, que talvez a pipoca tivesse vida própria e também quisesse entrar no cinema para assistir Os Trapalhões. Ao meu lado, prevalecia um aroma adocicado que pacificava as crianças mais buliçosas – sim, era um eficaz calmante açucarado e rubro.
Trazia recordações dos airosos ipês-vermelhos que eu via todos os dias perto de casa, quando apontava com o dedo e gritava: “Olha lá um pé de pipoca-doce!” Do outro lado do carrinho de pipoca, a olência mudava, assim como o público. Os adultos, principalmente os homens, se achegavam para comprar: “Me vê da salgada, por favor!”
Habilidoso, o pipoqueiro sabia como ninguém quantas pazinhas de alumínio eram necessárias para encher um saquinho. Eu assistia suas mãos sulcadas lucilando diante da pequena lâmpada já amarelecida que iluminava e dourava seu rosto crispado. Era desse jeito, sempre que ele se inclinava ou se aprumava. Aquele era seu espetáculo e na entrada do Cine Ouro Branco ninguém era mais importante do que o pipoqueiro.
Naquele dia, antes de entrarmos no cinema, cinco engraxates, com idade entre 6 e 14 anos, se aproximaram, encostaram numa parede ao lado do Cine Ouro Branco e, como os jovens farroupilhas do filme Los Olvidados, de Buñuel, começaram a fumar, observando famílias descendo dos automóveis e atravessando a calçada.
“Se tivesse pai ou mãe não tava nessa vida, irmão! Ser pobre e sozinho não é fácil não. Olha quanto luxo dessa molecada”, comentou um deles com os quatro amigos que o acompanhavam. Sem falar nada, apenas balançaram a cabeça em concordância, esmagando bitucas a pés pequenos.
Sujo, com unhas encardidas e cheiro nauseante de cigarro barato, um engraxate de não mais que 12 anos se aproximou de uma turma de crianças. Como alguém indeciso sobre entrar ou sair, cruzou os braços e ergueu o rosto enquanto uma das luzes da entrada realçava sua dúbia expressão de satisfação.
“Pessoal, escuta aí! Rapidinho! Esse filme dos Trapalhões é bom demais. Só tem uma coisa ruim. O Mussum e o Zacarias morrem no final. Valeu! Tchau!”, gritou e correu rindo, com os cabelos ondulados e escuros esvoaçando. Naquele momento, ele se tornou um antagonista digno do vilão Cicatriz interpretado por Carlos Koppa no filme dos Trapalhões.
O garoto arrastou os chinelos surrados e, acompanhado de seus comparsas, desceu satisfeito em direção à Rua Pará. Algumas crianças não se importaram com a revelação, mas outras ficaram tão irritadas que queriam que seus pais chamassem a polícia ou fizessem algo a respeito. Por bem, ninguém os perseguiu.
Dentro do Cine Ouro Branco, fiquei boquiaberto com as poltronas a perder de vista. “Aqui cabe mil e quinhentas pessoas. Olhe lá em cima, é como numa ópera”, informou minha mãe, observando a minha reação e a do meu irmão Douglas. Sem pressa, giramos ao redor da sala mastodôntica, tentando registrar os detalhes.
Por sorte, havia lugares vagos nas primeiras fileiras. Então caminhamos até lá, atravessando corredores e ouvindo sons de espectadores comendo pipoca, conversando, fazendo troça e se abraçando. Perto de nós, o lanterninha acompanhava tudo com sua aura indefectível de vagalume. Se sentia o líder de um coliseu onde nada aconteceria sem sua autorização, ainda mais quando as luzes se apagavam.
Assim que me sentei, observei um garoto com roupas remendadas sentado ao meu lado, acompanhado de sua mãe. Seu nome era Juscelino e ele era um ou dois anos mais velho do que eu. Também era a primeira vez dele no cinema. Percebi sua ansiedade porque seus pés miúdos não paravam de balouçar, assim como os meus.
Suas mãos trêmulas suavam tanto que toda hora ele as enxugava nas laterais da calça xadrez de barras curtas. Juscelino falava comigo mantendo o rosto em direção à desmesurada tela de projeção. Achei que era empolgação por causa do filme, até que notei algo de diferente em seus olhos, uma clareza cristalina como nunca vi antes. Com naturalidade, a mãe revelou que o filho nasceu cego.
Juscelino não enxergava nada. Ainda assim sua empolgação no Cine Ouro Branco superava até a minha. Os sons e olores que chegavam até ele eram como presentes imateriais, memoriais. Com uma rara acuidade auditiva e olfativa, Juscelino percebia até o que as pessoas faziam ou comiam nas poltronas mais distantes – e comentava tudo comigo.
Filho de um casal de lavradores de Alto Paraná, ele chegou a Paranavaí de ônibus pela manhã e ficou horas esperando a bilheteria abrir. Seu pai não prestigiou o grande acontecimento porque o dinheiro economizado a duras penas só cobria as despesas da mulher e do filho. “Vai começar, mãe!”, disse o garotinho segundos antes do projetor iniciar a rodagem do filme, como se tivesse um dom para presságios.
Do início ao fim, Juscelino ficou em completo silêncio, tentando absorver o máximo possível de informações sonoras. Ocasionalmente, se movia sobre a poltrona sem fazer barulho, preocupado em incomodar. Eu, ele e meu irmão estávamos unidos por uma experiência que jamais se repetiria. As nossas maiores descobertas eram visuais e as de Juscelino auditivas. Talvez até mais ricas, já que ele se colocava na condição de criador para dar vazão à criatividade de tudo que ouvia.
Ainda no escuro, vi as lágrimas escorrendo pelo seu rosto, molhando sua camisa xadrez abotoada até na altura do pescoço. Ao final, com o retorno das luzes, perguntei a ele como era a assistir a um filme no cinema sem poder ver. Minha mãe me repreendeu, mas a de Juscelino não se importou com a pergunta.
“Não sei explicar direito, mas eu vejo sim, só não vejo com os olhos. Vejo tudo que carrego pra dentro de mim”, justificou antes de segurar a mão de sua mãe e caminhar a passos curtos em direção à saída, onde a iluminação artificial contrastava e se harmonizava com a luz anilada e complacente da venusta Lua recém-chegada.
Na esquina, no cruzamento entre a Rua Pará e a Manoel Ribas, os cinco engraxates, crianças vivendo como adultos, tamborilavam suas caixas, sentados no meio-fio, imersos em sorrisos postiços e olhares acabrunhados, tentando existir para um mundo que pouco reconhecia suas verdadeiras intenções.
Retornando para casa a pé, atravessamos a rua. Quando passamos por eles, o mesmo garoto que causou o alvoroço na entrada do cinema me puxou pelo braço e, com um olhar supliciado, perguntou: “Ei, amigo. Você pode contar pra gente a história do filme que tu viu lá no cinema?”
Curiosidade
Fundado em 27 de janeiro de 1961 pela Família Del Grossi, o Cine Ouro Branco foi uma das mais importantes fontes de entretenimento da população de Paranavaí até 1993.
Marcos & Mónica
Por mais de três anos o argentino Marcos, de 89 anos, alimentou a mulher Mónica, de 87, que sofria de Mal de Alzheimer. Cada refeição durava pelo menos uma hora. Após 65 anos de casamento, Mónica não resistiu à doença e faleceu. Atualmente o seu túmulo é visitado mensalmente pelo marido que enfrenta dificuldades para reconstruir a vida em função da solidão e da saudade. A luta do casal foi registrada pelo neto, o fotógrafo Alejandro Kirchuk, vencedor do Prêmio World Press Photo 2011.
Acesse: alejandrokirchuk.com
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Tito o malabarista
“Antes ficava muito triste quando viravam o rosto, fingiam que não me viam”
Um dia, aguardando o sinal verde de um semáforo da Rua Manoel Ribas, no centro de Paranavaí, vi um rapaz agachado na esquina, ajeitando suas bolinhas de malabares dentro de uma mochila. Curioso, estacionei o carro e me aproximei. Sorrindo, ajeitou o boné e me cumprimentou cordialmente, mostrando, sem dizer mais nada, os pulcros desenhos que fez em quatro das seis bolinhas. Tive a impressão de que representavam fases de uma vida. E ele confirmou minha suspeita.
A bolinha número um reproduzia um momento marcante dos seus tempos de bebê, quando era assistido pelo pai enquanto a mãe o embalava nos braços. A bolinha número dois trazia uma imagem dele ainda criança sentado na areia de um parquinho brincando com um caminhãozinho e sendo observado pela mãe.
A bolinha número três o mostrava no início da adolescência, lendo sozinho, sentado no canto de um quarto. E a bolinha número quatro destacava sua partida com uma mochila nas costas, olhando para trás, onde não havia ninguém de quem se despedir. Intrigado, perguntei porque as outras duas bolinhas não tinham desenhos. “É que ainda me vejo na bolinha número quatro. Aquele sou eu hoje”, comentou com um sorriso vaporoso e contraposto ao olhar levemente melancólico.
Tito, sem nome composto ou sobrenome – prefere assim, tem como lar todo lugar e lugar nenhum. Deixou a terra natal no início da adolescência, quando sua mãe morreu de câncer. O pai partiu antes, vítima de um ataque cardíaco. Mora por aí, onde encontra um lugar para dormir. Artista de rua, perambula com a única missão de levar diversão. “É bom demais ver alguém admirando e elogiando seu trabalho. Triste é quando me perguntam se quero um emprego de verdade. Isso machuca. Não sou vagabundo!”, lamentou sensibilizado, acrescentando que tem graduação em artes cênicas.
Magrinho, com a pele bastante queimada pela exposição solar, e cabelos e olhos pretos como erva-moura, Tito nasceu prematuro, aos seis meses. Seus órgãos não se desenvolveram completamente e todo ano ele passa meses internado para fazer tratamento. “Meu coração é diferente do coração de uma pessoa normal. Posso morrer hoje ou amanhã. Por isso vivo cada dia como se fosse o último”, revelou com olhar ensimesmado.
De carona, Tito já viajou para mais de dez países e percorreu todas as regiões do brasil. A sua maior alegria em fazer malabarismo com os mais diferentes objetos é o prazer de ter os olhos voltados para si mesmo por poucos minutos. “É assim que sinto que estou vivo, que existo. Antes ficava muito triste quando viravam o rosto, mantinham os vidros do carro fechados, fingiam que não me viam. Hoje o reconhecimento de poucas pessoas em cada sinaleiro já faz o meu trabalho valer a pena”, declarou.
Por causa dos problemas de saúde, Tito não pensa em casar ou ter filhos. O rapaz demonstra que o medo de se envolver emocionalmente com alguém pode ser maior do que o seu temor perante a morte. “Tudo seria mais doloroso se eu tivesse uma companheira. Seria uma pessoa a mais para sofrer comigo. Juro que não queria morrer, mas isso não depende da minha vontade. Como tenho esses problemas, só me resta seguir na esperança de que eu não deixe de existir antes de desenhar novas fases da minha vida nas minhas últimas bolinhas brancas”, desabafou.
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A perspectiva nipônica sobre a Segunda Guerra Mundial
Recomendação – Hotaru no Haka, do cineasta japonês Isao Takahata, que no Brasil ganhou o nome de “Túmulo dos Vagalumes”, é um dos melhores filmes de animação que já assisti. É de uma beleza e sensibilidade que só quem assiste é capaz de compreender. Lançado em 1988, embora não pareça, retrata a perspectiva nipônica sobre a Segunda Guerra Mundial. Basicamente, mostra dois irmãos, ainda crianças, que perdem os pais durante a guerra e são obrigados a fazer de tudo para sobreviver.
O ponto mais conflitante da obra, que ora se aprofunda na inocência infantil, ora na degradação adulta, é a miséria humana e o embrutecimento social que privilegia o individualismo. Crianças que perdiam os pais na Segunda Grande Guerra eram privadas não apenas de alimentos, mas de existir, pelo simples fato de que à época pairava uma linha de pensamento: não divida igualitariamente a comida com um estranho, amigo, vizinho ou até parente se isso significa diminuir a sua perspectiva de vida ou a dos seus.
Não interessava se isso significava mais mortes. É cru, realista e profundo, pois desnuda a falsa ideia de que o único inimigo em tempos de guerra é aquele que ameaça a sua nação – ilusão. Hotaru no Haka é uma lição de vida. Quem assistir não vai se arrepender.
Jessé, um homem motivado pela simplicidade
Perambulando pelas ruas de Paranavaí, o andarilho já evitou furtos e roubos
Dias atrás, passando pela Rua Pernambuco no início da noite, vi um rapaz com uma réplica de uma cobra de mais de dois metros enrolada no pescoço. Sorridente, se apresentou como Jessé Piedade, de 39 anos, e explicou que a confeccionou usando apenas um pedaço de pano, espuma, agulha e linha. Intrigado, sugeri marcarmos um dia para que me contasse sua história.
Numa quinta-feira, por volta das 16h, a secretária da Casa da Cultura Carlos Drummond de Andrade, Elza Pavão, me liga avisando que Jessé está me esperando. Assim que chego lá, o encontro apreensivo e sentado diante de um pé de jaca. Quando tiro o gravador do bolso, ele pergunta: “Ué, mas você vai gravar mesmo? Vai sair uma reportagem comigo?”, questiona com olhos intumescidos.
Após a confirmação, o rapaz dá uma risada expansiva ao mesmo tempo em que as folhas longas e verdes da jaqueira se movem com a chegada de uma brisa pós-chuva. “Sou de São Paulo, capital. Comecei a trabalhar como motorista com 18 anos. Fiquei nesse serviço por 17 anos atendendo a um advogado. Fazia tudo que precisava, até que chegou um momento em que ele não teve mais condições de continuar me pagando. Apesar disso, sempre foi um excelente amigo. Era como um pai pra mim”, conta.
Perdido e desinteressado em continuar em São Paulo, Jessé se mudou para Paranavaí, no Noroeste do Paraná, há três anos, onde esteve várias vezes desde a década de 1990 com o ex-patrão. “Vim pra cá porque gostei daqui. Não tenho do que reclamar da cidade. O povo é muito humano. O que mais tenho aqui são amigos, inimigos não”, garante o paulistano com sotaque curitibano.
Com a carteira nacional de habilitação (CNH) vencida há mais de cinco anos, o rapaz não esconde o saudosismo da época em que dirigia até caminhão. O último emprego antes de vir ao Paraná foi no Hospital Regional de Itapetininga, no interior paulista, onde atuou como motorista, fiscal e vigia por dois anos e oito meses. Mas a vida de Jessé mudou anos antes. “Minha mulher tinha um boteco e virei um ‘chapéu velho’. Comecei a beber dentro do relacionamento e me entreguei ao alcoolismo após a separação em 2005. Ela não bebia. Só eu mesmo que fiquei assim”, confidencia.
Mais tarde, Jessé Piedade recebeu um convite para trabalhar com montagens de palco e de cenário de shows, chegando a coordenar equipes para atender a banda Capital Inicial e sertanejos como Daniel e Rio Negro e Solimões. “Todo mundo muito legal. Eu aparecia no local cinco dias antes do show e contratava pelo menos 15 peões pra realizar o serviço. A gente também fazia compras, decorava o camarim. Trabalhei com muitos artistas. Era freelance, né?”, declara.
Jessé atuou em Avaré, Itapetininga e Lençóis Paulistas, a serviço de grandes produtores de espetáculos como Marcos Mioto e Marcos Savian. “Sempre me pagaram certinho”, assegura o rapaz que não se esquece de quando achou no camarim uma bolsa preta com R$ 72 mil após um show em Avaré. “Estava chovendo muito naquela madrugada. Entrei lá pra fazer a limpeza e recolher as sobras de comida. Vi aquele monte de dinheiro e me deu até tremedeira. Em seguida, avisei a dupla Rio Negro e Solimões e eles passaram lá pra buscar. Meus companheiros queriam me matar. Me deram um valor lá e alguns agasalhos. Até se me dessem R$ 1 eu ficaria feliz. Não sou ganancioso”, revela com tranquilidade.
Lucrando R$ 4 mil por mês, Jessé gastava mais de um terço do que ganhava com bebidas. Sozinho, consumia uma garrafa de whisky por noite. Já sofrendo em decorrência de cólicas renais, quase morreu após uma convulsão. “No show do Fernando e Sorocaba tomei uns goles e dormi no ônibus. Como o palco era uma concha, deu um vento forte que quase derrubou tudo. O povo saiu me procurando. No outro dia cedo, achei whisky e continuei bebendo”, relata.
Como os problemas foram se agravando, os produtores avisaram que o rapaz não poderia continuar sendo negligente no trabalho. Então Jessé abandonou a função, já que era impossível se manter sóbrio com tantas bebidas ao alcance das mãos. “Dava pra ganhar bem, o problema era que eu não tinha controle sobre mim e estava perdendo minha filha por causa disso”, justifica.
Depois de dois anos em Paranavaí, onde também trabalhou para um advogado que o ajudou bastante, Jessé começou a ir para o campo colher laranjas e ensacá-las para revender atrás do Posto Panorama, na Rua Maria Anchieta de Morais. “Até hoje faço isso quando surge alguma oportunidade. Tenho um parceiro que me chama, daí dividimos as despesas. Mas, cara, vou te falar uma coisa. No meio dos laranjais é comum encontrar cobra, só que eu não tenho medo. Na verdade, elas que têm que ter medo de mim”, brinca rindo.
Atualmente, Jessé se alimenta apenas uma vez por dia – no horário de almoço. Quando chove acaba passando fome por não ter coragem de pedir esmola. Além de catador e vendedor de laranjas, entrega panfletos e faz capina de terrenos. “Tenho enxada e rastelo. Sou pau pra toda obra. Queria ter um carrinho pra vender frutas como laranja, abacaxi, mexerica e limão. São mais fáceis de se comercializar”, comenta.
Em Paranavaí, Jessé conheceu o casal Dirce e Ailton que o ajudou conseguindo uma vaga em uma clínica para alcoólatras em Nova Aliança do Ivaí, administrada pelo frei Ivani Ribeiro Pinheiro. Após quase um mês de internamento, um dia o rapaz foi enviado a Paranavaí para passar por uma reavaliação médica ao lado da delegacia. “A perua me levou lá, daí o médico disse que eu estava com sérios problemas no fígado e na próstata. Fiquei nervoso e fugi. Saíram atrás de mim e me acharam na rua. Eu disse que não iria voltar porque não consigo ficar confinado. Apesar disso, sou muito grato a dona Dirce, uma pessoa muito boa que me ajudou demais”, admite.
Depois de algum tempo, Jessé tira do bolso várias cartelas de diazepam. Segundo o rapaz, é impossível dormir sem consumir o sedativo. Junto, tomava clonazepam (rivotril), mas interrompeu o uso porque o calmante tarja preta agravou os problemas no seu fígado. “Já perdi 18 quilos. Falam que tenho um tumor que dificulta a digestão, por isso vomito todo dia. Cara, hoje estou numa situação muito difícil”, reconhece levando as mãos à barriga saliente que contrasta com a magreza e o aspecto anêmico.
Durante a entrevista, sinto cheiro intenso de álcool e não resisto em perguntar se Jessé continua bebendo. O rapaz diz que consome apenas um copo cheio de vinho barato após o almoço. Levando em conta que começamos a conversar depois das 16h é difícil acreditar na resposta. “Tá certo! Vou falar a verdade. Quando fico nervoso tomo até um litro brincando. Só que juro que comecei a beber menos tem dois anos”, alega.
Jessé Piedade define a própria vida como complicada. Andando sempre sozinho, muitas vezes sai às ruas sem objetivo ou destino. Quando não consegue nenhum “bico” ou se cansa de perambular, fica na rodoviária sentado em um banco assistindo TV ou conversando com os amigos taxistas. “Sempre vivi sozinho. Eu, Deus e mais ninguém. Só que rodo essa cidade toda numa boa, conheço tudo. Tem dia que vou daqui até o Sumaré pra ver se tem carga pra carregar em algum posto. Agora estou morando na rua, cada dia durmo num lugar diferente”, enfatiza. Com a experiência de quem viveu na chácara de uma tia em São Paulo, o rapaz faz planos: “Ainda quero ter um sítio pra plantar hortaliças e vendê-las na cidade. Também sonho em estudar direito.”
Enquanto os desejos não se realizam, Jessé se orgulha de ações em benefício dos vizinhos, quando vivia em um barraco improvisado em um terreno baldio na Rua Miljutin Cogej, perto do Clube dos Bancários. “Teve um rapaz que invadiu a casa de uma vizinha e levou a bicicleta. Corri atrás dele e o derrubei. Ele fugiu sem a ‘magrela’. Também impedi o furto de materiais de construção na casa de outro vizinho que estava fazendo uma reforma”, narra e sorri quando as histórias são confirmadas pelo guarda do clube.
Quem vê Jessé na rua, sempre comunicativo e brincalhão, dificilmente percebe que ele sofre de depressão. Lidando com a doença há mais de cinco anos, o rapaz confessa que às vezes sente muita raiva. “Lembro de bastante gente que se aproximou de mim quando eu estava bem. Aí desapareceram quando fiquei mal. Tem dia que só penso em dar um tiro na minha própria cabeça”, desabafa.
Casal ajudou Jessé a enfrentar o alcoolismo
Dirce e o marido Ailton conheceram Jessé Piedade na Rodoviária de Paranavaí, na Avenida Heitor de Alencar Furtado, enquanto aguardavam o ônibus. À época, o rapaz explicou seu desejo de se livrar do alcoolismo.
“Ele estava em um estado de desamparo total. Então nos responsabilizamos em ajudar, inclusive conseguimos um lar temporário para o Billy, seu cachorro. Internamos o Jessé em Nova Aliança do Ivaí. Quando saiu, vimos que ele precisava de um lugar decente pra ficar e o colocamos em uma pensão. Só não ajudamos mais porque não tínhamos condições”, relata Dirce que qualifica Jessé como uma pessoa inteligente, educada e tranquila.
O rapaz só não ficou mais tempo internado porque a necessidade de liberdade “falou mais alto” do que a vontade de se tratar. “Até hoje acompanhamos a realidade do Jessé. Torcemos muito por ele”, garante Dirce que não vela as esperanças de vê-lo saudável.
Um artesão por acaso
Um dia, Jessé Piedade teve um sonho com uma cobra e quando acordou decidiu comprar linha de crochê, agulha e tecido pra criar uma, mesmo sem jamais ter costurado coisa alguma. “Encanei, mas a Sogra [nome da cobra] não ficou muito boa. Agora vou dar uma caprichada e fazer uma Anaconda”, relata rindo, acrescentando que a cabeça do animal foi pintada para proporcionar mais realismo. A princípio, a intenção era fazer uma cobra de 12 metros.
No entanto, Jessé achou que seria impossível circular com uma réplica tão grande. “Muita gente ficou com medo quando viu de longe essa que fiz. Teve criança correndo, chorando e pedindo pra tirar foto. Quando saio sem a cobra, até os mais velhos perguntam o que fiz com ela”, conta. Depois da primeira criação, o rapaz já recebeu um pedido para confeccionar uma cascavel. “Ela vai ter um guizo de verdade, de sete anos. A senhora que encomendou quer que eu o coloque. Ela perguntou quanto cobro pelo serviço e eu disse que faço de graça”, confidencia.
“Hoje eu tô com saudade do Billy”
“Hoje eu tô com saudade do Billy. Não acho mais ele”, diz o andarilho Jessé com um olhar baixo e uma expressão de tristeza, se referindo ao seu melhor amigo, um cãozinho mestiço de dois anos que ele tirou da sarjeta da Rodoviária de Paranavaí quando o animalzinho tinha dois meses. “Um guarda lá deu dois choques na boca do bichinho com um arma. Ele quase morreu. Então cuidei dele e a gente se apegou um ao outro”, narra.
A convivência entre os dois era tão harmoniosa que Billy acordava Jessé todos os dias às 5h30 para trabalhar. “Ele tomava o café dele numa padaria do Jardim Simone e voltava pra ver se eu tinha me levantado. Se eu não estivesse em pé, ele latia até eu pular do colchão”, lembra. Bem querido pela população do bairro, Billy ganhava café da manhã todos os dias e atendimento quinzenal em um pet shop. “Um dia eu fui lá e falei: ‘Engraçado, né? Vocês dão tudo pro cachorro, mas ninguém faz nada pro pai dele aqui’”, revela Jessé às gargalhadas.
O andarilho e o cãozinho não se afastavam nem quando o andarilho precisava ir ao mercado. Billy sempre esperava Jessé do lado de fora, deitado em um tapete. “Um dia ele sumiu e fiquei tão nervoso que me deu um febrão. Algum tempo depois, fui ao Ginásio Lacerdinha ver um jogo e de longe vi o Billy. Daí gritei: ‘Billy, Billy! Filho da puta!’ E ele se esticou todo e veio correndo pra cima de mim, berrando e rolando no chão”, destaca.
O reencontro durou pouco tempo. Billy sumiu no mesmo dia e reapareceu num domingo na feira livre da Rua Pará. Enquanto caminhava próximo a uma banca de alface, Jessé foi surpreendido por um salto de Billy. “No dia seguinte, saí pra vender laranja e ele sumiu outra vez. Me contaram que um motorista de um Corsa sedan prata pegou ele. Mas tenho certeza que quando eu sair pra entregar panfleto ele vai voltar na hora quando sentir meu cheiro”, acredita.
“Fiquei 20 dias sozinho no mato quando meu pai morreu”
Ao falar do passado, as melhores lembranças de Jessé Piedade remetem à infância, principalmente o relacionamento com o pai e o avô. “Meu avô era uma pessoa fantástica. Fiz datilografia com 11 anos e ele me deu uma máquina. Era daquela Olivetti pequena. Depois me deu bicicleta, mobilete. O dia mais feliz da minha vida foi quando pedi pra ir ao Play Center. Eles disseram não e fiquei chateado, mas depois me levaram. Isso foi em 1987. Só que infelizmente meu avô morreu por causa de um [acidente vascular cerebral] AVC”, informa.
Hoje, de todos os familiares, Jessé tem contato esporádico apenas com a filha e a irmã. Seu pai, que era pastor, faleceu minutos após um culto, quando estava dirigindo um automóvel, aguardando o sinal verde do semáforo. “Teve um infarto fulminante. Foi tão impactante que não me deixaram ver. Cara, tenho uma saudade do meu pai que você nem imagina”, confessa com olhos marejados. Quando recebeu a notícia, o rapaz sumiu de casa e ficou 20 dias sozinho, dormindo em barraca numa área de mata fechada.
“Mais tarde, minha mãe casou com uma pessoa que não gostava de mim e não tenho notícias dela há mais de dez anos”, assinala e acrescenta que apesar da distância tem um bom relacionamento com a filha Raíne Vitória, que mora em São Paulo, e com a ex-mulher. “Nos damos muito bem, só que minha filha briga muito comigo. Quer que eu mude de vida o mais rápido possível. Ela fez 15 anos no último dia 15 de novembro”, pontua sorridente.
A indiferença e os artistas de rua
Eu estava voltando pela Avenida Heitor Alencar Furtado quando parei em um sinaleiro. À minha frente, um artista de rua fazia malabarismo com facões. Fiquei imaginando quanto tempo ele deve ter levado pra chegar àquele nível.
Pensei também em como ele resiste na contramão deste mundo cada vez mais consumista em que vivemos. Não tenho dúvida alguma de que ele não é ambicioso ou ganancioso. E são pessoas com esse tipo de nobreza que vivem alheios à inveja. Do contrário, não estaria lá, entretendo um público ocasional que muitas vezes pouco se importa com o que ele está fazendo.
Notei pessoas mantendo os vidros fechados e desviando os olhos pouco antes do sinal ficar verde. Achei a cena triste, mas de um contraste que realça a nobreza de quem está sempre acima das mesquinharias. O rapaz fazia reverências e sorria efusivamente até para quem o ignorava ou acenava dizendo que não tinha dinheiro algum, mesmo que esses guiassem veículos que custam mais de R$ 100 mil.
Mais do que uma Era de Consumismo, me deparo com situações no dia a dia que reafirmam a existência de uma Era da Mesquinharia, um sentimento que fui incentivado desde cedo a não ter. Cada vez que você vira as costas ou ignora alguém, você reforça uma tentativa de marginalizar alguém. Se você acredita que não tem nada a oferecer, tudo bem, desde que assim sua consciência o reconheça. Mas triste é quando você sabe que tem, mas prefere não oferecer nada baseando-se na descrença generalizada a respeito do ser humano.
Anteontem à tarde foi diferente. No sinaleiro da Rua Manoel Ribas, em frente ao Posto Minas, um rapaz fazendo malabarismos com pinos ganhou um dinheirinho de todos os motoristas. Achei aquilo bonito e raro porque percebi que existia harmonia naquela ação individual que ganhou força coletiva iniciada nas primeiras fileiras. Havia beleza e uniformidade. E a fisionomia do rapaz realmente mostrou que ele se sentiu recompensado.
Me recordei de um costume que o meu pai tinha quando estava fazendo quimioterapia no Hospital Beneficência Portuguesa em 1997. Sempre que ia a São Paulo, ele separava um pouco de dinheiro. Um dia minha mãe perguntou qual era a finalidade e meu pai respondeu: “É que até chegar ao hospital não quero ter que dizer não a nenhum pedinte.”
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A lição de Dona Maria
Há três semanas, comecei a produzir o meu novo documentário da série Realidade da Periferia. Ontem, fiz questão de interromper a filmagem na Vila Alta, um dos bairros mais pobres de Paranavaí, no Noroeste do Paraná, para conhecer de perto a situação da Dona Maria, uma senhora que trabalha recolhendo materiais recicláveis.
Na segunda-feira, a casa dela foi atingida por uma enxurrada que causou um grande prejuízo. Apesar da situação extremamente difícil, ela estava mais preocupada com os seus animais do que consigo mesma.
No interior da casa, sobre uma pequena cama, estava uma cadelinha prenha, a quem ela trata como se fosse uma filha. Na terça-feira, a cachorrinha passou mal e ela percorreu quilômetros a pé, até encontrar um médico veterinário.
No casebre moram também outros dois cães que gostam de ficar perto da única porta, como se fossem responsáveis pela segurança do lar. Em cima de um colchão, me deparei com o que mais me chamou a atenção – três pratinhos com ração.
Dona Maria mal ganha o suficiente para a subsistência, chega até a passar fome, e há dois dias quase perdeu a casinha construída com as próprias mãos. Apesar de tudo, ela afirma que o mais importante é cuidar de seus três animais.
A superação de Stevie Zee
O fisiculturista com paralisia cerebral que se tornou um exemplo
O estadunidense Stevie Zee estava completamente perdido em 1992. Reprovado na faculdade comunitária e incapaz de encontrar trabalho, o rapaz que sofre de paralisia cerebral (PC) decidiu fazer algo para evitar a depressão e a autopiedade.
Em dezembro do mesmo ano, Stevie foi até um ginásio de musculação em Portland, Oregon, sua cidade natal, onde conheceu o fitness trainer e fisiculturista heavyweight David Hughes. “Ele apareceu para uma sessão de treinamento e logo me disse que queria se tornar um bodybuilder. Me surpreendi com a decisão e me empenhei em ajudá-lo”, conta Hughes que instruiu o rapaz no treinamento com pesos e o ensinou muito sobre nutrição esportiva.
Stevie queria competir no bodybuilding, seguindo o mesmo caminho de David. Porém as limitações impostas pela paralisia cerebral fizeram com que o sonho parecesse distante e utópico. Em função da doença, os músculos de Zee costumavam ser encurtados, rígidos e enfraquecidos, o que tornava tudo mais difícil. Com frequência, o controle dos músculos era interrompido por movimentos espontâneos e indesejados, além dos problemas de equilíbrio, instabilidade em movimentar pés, mãos e até falar. Em síntese, Stevie sofre de paralisia cerebral mista, o tipo mais severo.
“Eu tinha dificuldade em aceitar a doença, mas agora eu sei que eu a tenho para inspirar outros a se tornarem pessoas melhores, a tirarem o máximo proveito da vida, independente de tudo”, afirma Zee. Segundo David Hughes, Stevie é mais motivado que a maioria das pessoas. Apesar das dificuldades, mora sozinho, cozinha, dirige e faz as próprias compras.
A primeira recompensa do atleta veio em junho de 2003, quando surgiu um novo tratamento para paralisia cerebral. Zee passou por um procedimento em que foi instalado um mecanismo especial na parede abdominal, minimizando os extremos espamos musculares que o fizeram sofrer por tantos anos. Em 2006, o fisiculturista recebeu um prêmio da revista MuscleMag no Los Angeles Championships, onde foi aplaudido de pé por centenas de pessoas, entre celebridades do bodybuilding.
“Ele teve a coragem de deixar Portland e se mudar para Hollywood. Tudo isso, para realizar seus sonhos. É como se ele fosse um personagem de uma história em quadrinhos”, comenta o lendário ex-fisiculturista Rich Gaspari, que desde 2008 patrocina Stevie Zee. Para entender a história de superação do atleta é preciso ter em mente que para quem sofre de paralisia cerebral é complicado até mesmo caminhar e realizar pequenas tarefas diárias. “Imagine então fazer musculação? Há milhares de limitações que o dizem para não ir por esse caminho. Isso mostra o quanto ele é um vencedor”, diz David Hughes.
O que também chama atenção sobre Stevie Zee é a sua capacidade em seguir dietas restritivas, outro ponto considerado impossível para quem sofre de PC. Ao longo de 20 anos, o atleta não apenas ganhou em condicionamento e qualidade de vida, minimizando os problemas com a doença, como se tornou referência de novos estudos sobre a medicina da encefalopatia crônica não progressiva nos Estados Unidos. “Devo tudo isso a David Hughes que foi quem me transformou em uma pessoa totalmente diferente”, declara Stevie emocionado. Vale lembrar que o fisiculturista é tema do documentário Hang On To Your Dreams, lançado em 2008.
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