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Uma manhã de sangue e morte no Bar do Beni
Traídos por amigos, Canjerana e Macaúba foram assassinados a tiros em 4 de julho de 1955
No dia 4 de julho de 1955, uma segunda-feira, Manoel Rocha, o Macaúba, trajava a sua inseparável capa de gabardine, a mesma usada pelos mafiosos sicilianos da década de 1920, quando passou de manhã na casa de Manoel Alves Canjerana e o convidou para ir até o Bar do Beni, atual Cartório Tomazoni, na Rua Marechal Cândido Rondon, ao lado da Banca do Wiegando. Nem o frio e a chuva que enturveciam Paranavaí, no Noroeste do Paraná, impediu os dois amigos baianos de percorrerem o centro da cidade.
Antes de sair, Canjerana ajeitou a postura, o paletó, o lenço no pescoço e um chapéu de feltro da Casa Ferreira. Chegando ao local, Macaúba entrou no bar e Canjerana ficou do lado de fora, sentado em um banco de madeira enquanto Daniel, um garotinho de não mais que 12 anos, engraxava suas botas. “Ele tinha o costume de ir lá. Só usava botas e gostava de deixar elas brilhando”, conta a filha Nair Alves Silva que estava com 20 anos.
Quando ouviu um tiro, Canjerana, que pela primeira vez saiu desarmado de casa, se levantou rapidamente para checar o que estava acontecendo dentro do bar. Não teve tempo nem de dar alguns passos quando recebeu dois balaços no peito, atravessando o seu pulôver cinza como o céu daquele dia de inverno. Com as costas escoradas sobre as tábuas do boteco, tentou resistir, mas escorregou vagarosamente até cair sentado e cabisbaixo, com o chapéu caído e as pernas entreabertas.
A esposa, Ana, aos 40 anos não imaginava que o marido não retornaria para comer a marmita quentinha que ela preparou e deixou em cima do fogão à lenha, o aguardando. Aos 54 anos, Canjerana estava morto, vitimado por hemorragia interna, transfixação do miocárdio e pulmão, segundo a certidão de óbito. Quando escutou que o seu pai tinha sido alvejado, Jurandir, de 13 anos, correu até o Bar do Beni. Era tarde demais.
Macaúba, de 47 anos, que antes levou um tiro certeiro no ouvido disparado por Pedrinho, um rapaz que também era amigo das vítimas, foi socorrido por quatro homens e carregado com os braços abertos, o rosto mirando o céu e as mãos cobertas pelas mangas longas da capa de gabardine. Ainda com vida, o colocaram sobre a carroceria de um caminhão usado no transporte de madeira, onde dividiu o espaço com o amigo já morto. No Hospital Professor João Cândido Ferreira, atual Praça da Xícara, o homem faleceu.
O autor do assassinato de Canjerana se chamava Napoleão, um rapaz que na noite anterior sentou-se na beira da cama do baiano. “No domingo, meu pai não estava bem e ele veio aqui em casa desejar melhoras. Pegou comida direto do nosso fogão à lenha e comeu com a gente. Meu pai o tratava como um filho”, confidencia Nair. À época, Manoel Canjerana recebeu um convite para trabalhar no Mato Grosso. Recusou porque queria aguardar o nascimento do neto. “Ele achou que seria menino. Tive uma filha que ele nem chegou a ver”, enfatiza.
Dias após o crime, quando estava preso, Napoleão pediu para a mãe de Nair ir até a delegacia porque ele queria se desculpar. “Minha mãe não foi. Disse que isso não tinha perdão. Pra gente foi uma situação tumultuada porque eu estava grávida da minha primeira filha e passei muito mal, tanto que ela nasceu na outra semana”, revela. A família preferiu esquecer o passado e seguir a vida, até porque dos seis filhos de Canjerana a única adulta era Nair Alves.
Um ano depois souberam da libertação de Napoleão e Pedrinho. A soltura foi motivada por influência política. O duplo homicídio teve tanta repercussão no Paraná que jornalistas dos principais veículos de comunicação do estado vieram a Paranavaí. “O que aconteceu foi terrível para as duas famílias. O Macaúba tinha quatro ou cinco filhos”, lamenta Nair Alves Silva, acrescentando que ninguém sabe quais foram os motivos do crime.
Canjerana conheceu Paranavaí em 1949
Nascido em 1900 em Bom Jesus da Lapa, na Bahia, Manoel Alves Canjerana se mudou para São Paulo com Ana Alves em 1930. No mesmo ano, trouxe de Recife, Pernambuco, uma garrafa de pinga de porcelana feita no Engenho São João, um artigo que até hoje está conservado em ótimo estado. “Minha mãe tinha 18 anos quando deixou a Bahia. Eles se casaram em Jabuticabal, São Paulo, e de lá foram para Piquerobi, onde ele trabalhou de guarda-livros, o contador da época”, relata a filha Nair Alves.
Anos depois, se mudaram para Presidente Venceslau, onde Manoel Canjerana atuou como fiscal de colonos em fazendas de café. Só saiu do interior de São Paulo quando o candidato a prefeito que apoiou perdeu a eleição, custando-lhe o emprego. “Ele era doido por política. Saiu procurando serviço, mas não encontrou. Ouviu falar da Fazenda Brasileira [atual Paranavaí] e veio pra cá sozinho em 1949. Em 6 de janeiro de 1951, trouxe todo mundo. Dos seis filhos, eu era a mais velha”, destaca Nair.
A família se surpreendeu ao se deparar com uma “cidadezinha” com casinhas cobertas de tabuinhas. “Ficamos em um hotel perto de onde é hoje os Correios porque não tínhamos arrumado uma casa ainda”, afirma. Na Brasileira, Canjerana começou a atuar como fiscal de peões para um homem de sobrenome Saião. “Depois trabalhou para o comendador Remo Massi”, frisa a filha. Em Paranavaí, conheceu o também baiano Manoel Rocha, o Macaúba, que desempenhava a mesma função. Logo se tornaram vizinhos e amigos.
O baiano fiscalizava uma turma de peões na mata
Em 1954, Manoel Canjerana levava para a mata uma caderneta comprida de capa dura escura em que anotava todas as despesas dos peões. Tudo era cobrado, até mesmo a comida e a enxada usada no serviço de capina. Detalhista, o baiano registrava o máximo possível de informações. Ao final, anotava o valor da dívida e quanto cada peão poderia receber pelo serviço. Alguns chegavam a gastar mais do que ganhavam, o que deixava o trabalhador comprometido com o dono da fazenda.
A filha Nair se recorda das vezes em que viu o caminhão partindo com uma turma de peões e muitos fardos de alimentos, principalmente jabá. Na mata a comida era preparada por uma cozinheira conhecida como Dona Alaíde. Quando retornavam a Paranavaí, após até mais de dois meses longe de casa, a chegada dos peões na madrugada era marcada por grande euforia em cima do caminhão. Do alto da carroceria, o som de uma sanfona, a cantoria e as muitas batidas de pé acordavam dezenas de famílias nas imediações da Avenida Rio Grande do Norte.
De vez em quando Canjerana convidava amigos, colegas de trabalho e autoridades locais para almoçarem em sua residência perto dos Correios. “Não dispensava a carne de jeito nenhum e odiava verduras. Sempre que faço salada lembro que ele dizia que não comia mato”, revela Nair.
“Falavam que meu pai e o Macaúba eram jagunços”
Na década de 1950, Manoel Canjerana e Manoel Macaúba eram nomes que inspiravam muito medo nos moradores de Paranavaí. “Falavam que meu pai e o Macaúba eram jagunços. Sei que eles saíam pra derrubar mato. Alguns diziam que os dois eram chamados para expulsar invasores de fazendas. Se um dia trabalharam para grileiros, isso eu nunca soube”, garante Nair Alves Silva que sempre teve uma imagem bem diferente do pai e também de Macaúba, a quem considerava o amigo mais fiel, educado e cordial de Canjerana.
A filha se recorda das vezes em que viu os dois amigos felizes, cantando música caipira nos bares de Paranavaí. A preferida era “Chico Mineiro”, de autoria de Tonico e Tinoco, um hino caboclo que celebra a amizade. Nair admite que tinha mais liberdade para conversar abertamente sobre qualquer assunto com o pai do que com a mãe. “Ele falava sorrindo: ‘Filha, tô vendo alguém passar ali e não sei não, hein? Acho que ele quer alguma coisa. E já sem graça eu respondia: ‘Ah pai, nem vi!’”, confidencia.
No dia em que o namorado de Nair decidiu pedi-la em casamento, o rapaz ouviu muitas críticas de amigos e conhecidos. “Você tá namorando a filha daquele homem? Aquele sujeito é um perigo!”, narra a filha de Manoel Canjerana. Apesar da campanha contra, o rapaz insistiu. Combinaram um jantar, mas na hora o jovem ficou hesitante. Já impaciente, depois de coçar a barriga algumas vezes, Canjerana falou: “Ué, você não veio falar um negócio aqui comigo? Então fala!” Assim que explicou que queria pedir a mão de Nair em casamento, o baiano comentou: “Então tá falado. Tô dando a mão dela em casamento!” Surpreso com a resposta, o rapaz sorriu e saiu mais do que satisfeito da casa da família Canjerana.
Saiba Mais
Nair Alves Silva nasceu no distrito de Vera Cruz, em Marília, São Paulo, mas foi criada em Pequerobi e Presidente Venceslau.
Foi a filha Nair quem fez o pulôver usado por Canjerana no dia do assassinato.
Outros fiscais que trabalhavam com o baiano eram conhecidos como Preto e Galvão.
Curiosidade
Canjerana e macaúba são nomes de árvores. A primeira possui uma madeira vermelha mais nobre do que o cedro e a segunda é uma palmeira conhecida como o “ouro brasileiro”.
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