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Meu primeiro encontro com a morte
Tentei tocar o chão abaixo dos meus pés, mas estava fundo demais
Meu primeiro encontro com a morte foi em janeiro de 1993. Aconteceu de forma casual, inocente, incauta e avassaladora, assim como muitas das nossas experiências na infância. Meus pais tinham planejado no final de 1992 uma viagem para o litoral norte de Santa Catarina.
Saímos de casa numa madrugada, por volta das 4h, um horário que sempre agradou meus pais pela grande possibilidade de não encontrarmos muitos veículos na estrada, ao menos nas primeiras horas de viagem. Admito que o sono ficou bem leve ao saber que sairíamos cedo rumo a novos destinos. Acordei com a respiração ofegante e expansiva do Happy e do Chemmy ao pé da orelha. Eram dois cãezinhos da raça poodle parecidos com dois grandes flocos de neve.
O Happy vivia com a língua de fora, como se quisesse falar e não latir. Ostentava um semblante jubiloso, dando a impressão de passar o dia inteiro sorrindo. Já o Chemmy possuía olhos tão expressivos que me transmitiam uma cândida melancolia. Em síntese, era menos agitado e mais carinhoso. Em comum, apesar das diferenças de personalidade e fisionomia, os dois eram dotados de uma postura altiva e indefectível. Só sentavam ou deitavam no chão com as patas sobrepostas, formando um X de formas itálicas. No dia da partida, pedimos à minha avó Clara para cuidar da casa e dos animais.
Em parte, o percurso foi relativamente tranquilo, até porque meus pais gostavam de parar em locais que não conhecíamos, tornando a viagem mais proveitosa e divertida. Quando chegamos a Matinhos era quase meia-noite e me surpreendi ao ver uma movimentação de centenas de pessoas pelas ruas. Eu, acostumado a uma realidade em que 22h já era tarde, não sabia que existiam cidades noturnas.
Havia muitas luzes, o suficiente para me fazer crer que a escuridão não tinha vez naquele lugar. A experiência me lembrou a reação de uma criança estrangeira ao ver o fulgor do sol da meia-noite em Luossavaara, no extremo norte da Suécia. Os letreiros enormes e brilhantes no centro de Matinhos iluminavam as ruas, as calçadas e os passantes. Também serviam como juncos para corujas urbanas que assistiam skatistas adolescentes saltando bancos, pequenas rampas e executando rock slides enquanto sorriam e seguravam latinhas de Coca-Cola, Taí e Fanta.
Os arroubos da urbanidade confundiam os vaga-lumes que se misturavam aos remanescentes piscas-piscas de Natal, talvez pensando que fossem parentes. Alguns jovens miravam a lua, balançavam os braços, bebiam cerveja em saquinhos, gargalhavam e cantavam Under The bridge, do Red Hot Chilli Peppers. Outros continuavam hipnotizados no interior de uma casa de fliperamas com mais de 40 máquinas.
De longe, eu ouvia sons retumbantes de tiros, saltos, acelerações, derrapagens, socos, chutes e musiquinhas eletrônicas monofônicas e polifônicas. O local estava cheio de adolescentes e crianças acompanhadas dos pais. A empolgação no interior me lembrou a cena em que Marty McFly, interpretado por Michael James Fox, observa crianças jogando fliperama em De Volta Para o Futuro 2. Chips, refrigerante, chiclete em rolo, Freshen Up, Minichiclets, Mentex e Lollo abasteciam os jogadores alheios ao que acontecia nas ruas. Rodeados de testemunhas, os desinibidos e impetuosos falavam alto e apertavam os botões com força. Logo entendi que queriam deixar suas marcas nas máquinas.
Lá fora, o céu não estava muito escuro. Suspeitei que estivesse absorvendo as cores e as luzes dos lugares, das pessoas e dos animais que ajudaram a compor um cenário notívago tão complacente. Percorri centenas de metros dentro e fora do carro. Não vi discussões, trocas de ofensas, nem violência. Quando um rapaz pisou em falso na calçada e caiu em frente a um automóvel no asfalto, um senhor imediatamente desceu do carro e o ajudou a se levantar.
Mais adiante, um motociclista se descuidou ao admirar uma bela moça em traje de verão que andava rente ao meio-fio. Como consequência, bateu na carroceria de uma caminhonete. Ao ver o jovem caído, o motorista de aproximadamente 50 anos desceu e ignorou os arranhões na lataria. “Você tá bem? Quer que peça ajuda?”, indagou. Apesar do susto, o motociclista não se machucou e a moto sofreu apenas riscos superficiais. O dono da caminhonete considerou o prejuízo mínimo e se recusou a cobrar. Agradecido, o rapaz se despediu com um sorriso portentoso e um aperto de mão consistente.
Após alguns dias em Santa Catarina, acordamos cedo numa manhã ensolarada e fomos a uma praia entre Itajaí e Balneário Camboriú. Havia pouca gente em frente ao mar calmo e convidativo. Sentei um pouco na areia para observar tudo à minha volta. Notei que o céu estava especialmente azul, límpido e com um recorte amarelo amendoado que parecia a entrada de um portal para lugar algum. Também avistei suas nuvens envolvendo e afagando nove gaivotas.
Minutos depois, me levantei e avisei meus pais que eu entraria no mar. Como manda a tradição, me disseram para ter cuidado e ficar próximo da margem. Comecei a brincar na água, numa área tão rasa que me permitia ficar agachado ou sentado afundando as mãos na areia. Quando enjoei, caminhei mar adentro, sentindo o peso cada vez maior da água sobre o meu corpo. Estava tudo bem. Percebi pessoas perto de mim e o mar ainda não tinha tocado os meus ombros. De repente, enquanto eu sorria e via meus pés penetrando a areia, as águas se rebelaram. O impacto de uma grande onda me arrastou alguns metros mar adentro.
Confuso e sem enxergar direito, engoli a água salgada que invadiu minha garganta com tanta aspereza que quase engasguei. Tentei tocar o chão abaixo dos meus pés, mas estava fundo demais. Não havia ninguém nas imediações. Observei ao longe apenas fisionomias desfocadas. Me debati contra a água, tentando nadar. Não adiantou. Outra onda me arrastou e desta vez para o fundo do mar.
Bebi muita água a contragosto e comecei a ter rápidas alucinações. Imaginei alguém me puxando pelos pés. Meus olhos e garganta queimavam de forma vertiginosa. Tanto que minha visão enturveceu gradualmente, abalando minha crença na sobrevivência. Fui tomado por lembranças fugazes dos poucos parentes e amigos falecidos. “Não! Eu não quero encontrar vocês ainda. Quero ver minha família. Eles estão logo ali, bem mais perto de mim do que qualquer um de vocês. Sou criança ainda. Por favor!”, pensei. Ao mesmo tempo, senti o palato abrasado e as lágrimas caindo do meu rosto como chuva de verão.
Para minha surpresa, antes que fosse vencido pelas câimbras, o mar se acalmou. Eu continuava muito longe da margem, só que ganhei o direito de nadar. Então coloquei em prática o que aprendi nas aulas de natação com meu pai em 1992. Mesmo combalido, cheguei à beira-mar. O medo de morrer era tão grande que só parei de nadar quando a areia tocou meus joelhos. Saí da água rindo e chorando ao mesmo tempo, com as pernas cambaleando, o rosto pálido e os lábios arroxeados. Não consegui dar outro passo e caí deitado.
Minha família chorou comigo. Naquele dia o salva-vidas sumiu e quando meus pais me localizaram eu já estava nadando. Eles viram apenas meus braços curtos e meus cabelos negros e lisos se movendo na água. Antes de me levantar da areia para ir embora, observei novamente o céu. O recorte amarelo amendoado tinha se dissipado, mas não as nove gaivotas que recebiam as carícias das nuvens que cobriam o mar da Praia Brava.
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“Sou prostituta sim, acompanhante não”
Mar, uma profissional do sexo sem falsos pudores
Nas imediações do Terminal Rodoviário Urbano de Paranavaí, no Noroeste Paranaense, é possível encontrar muitos personagens marginalizados que fazem parte da história underground da cidade. Enquanto alguns têm pouco a dizer, outros têm muito. Um exemplo é a mulher que prefere ser identificada apenas como Mar.
Há quase 20 anos atuando como profissional do sexo, Mar conta que perdeu as contas de quantos clientes atendeu. “A gente tenta registrar tudo no começo, cheguei até a ter uma caderneta. Depois se perde o interesse e o sexo mais do que nunca se torna apenas uma parte da rotina”, comenta enquanto retoca o batom vermelho no canto da boca.
Mar não esconde a vaidade. Mantém os cabelos escovados, a postura altiva, o entorno dos olhos bem pintados e admite que se veste como se se preparasse para um encontro. “Me sinto bem assim. Não faço pelos clientes porque já passei dessa fase. Preciso me sentir bem comigo mesma”, confidencia.
O expediente de Mar, que já trabalhou em inúmeras “casas de mulheres” e hoje tem um local próprio de atendimento, começa no final da tarde, mesmo com muita claridade. A jornada de trabalho oscila muito, mas reconhece que já atendeu até sete clientes em um dia. “Não aceito mais de um por vez. Teve época que eu ainda aceitava casais, agora não”, diz a mulher que já fez programas com homens dos mais diversos perfis, classes sociais e faixas etárias.
Com 35 anos e muita experiência, Mar explica que nunca entendeu porque tantas profissionais do sexo não toleram o termo prostituta. “Deveriam ser vistas como acompanhantes se realmente fossem contratadas para acompanhar alguém, mas eu nunca vi nenhuma mulher ganhar apenas pra isso. Então eu digo que sou prostituta sim, acompanhante não”, destaca em tom de voz acalorado.
Dos clientes que já atendeu, se recorda de alguns que tinham desejos incomuns. Houve um podólatra que pediu para roer os dedos dos pés de Mar enquanto ele movimentava o corpo no chão, como um réptil. “Falou que isso o excitava muito. Também teve um cara que trouxe pedaços de elástico pra eu prender seus testículos”, exemplifica. Segundo Mar, só quem trabalha nesse ramo sabe que há muita gente aparentemente normal velando seus anseios pela perversão sexual.
“Você não tem ideia de como existem homens que gostam de apanhar. Há pouco tempo, atendi um senhor que me trouxe um daqueles rolos antigos de massa de macarrão. O sujeito pediu que eu batesse em sua bunda com aquilo porque lhe trazia lembranças da infância”, revela com um sorriso enviesado. Os pedidos mais bizarros partem de quem ocupa posição social mais elevada.
Aparentemente, são pessoas infelizes na vida pessoal que a procuram na tentativa de se desvincular da realidade e criar uma nova identidade, nem que seja por tempo bem curto. “Mesmo quando revelam o nome verdadeiro, eles preferem que sejam chamados por outro nome ou apelido”, confidencia. Mar jamais foi desrespeitada pelos clientes, embora alguns tenham sido um pouco agressivos e demonstrado certa inabilidade social.
A mulher relata que apesar do estilo de vida nem sempre estável, não se arrepende da sua trajetória. Garante que como prostituta lucra mais que muitos profissionais despejados no mercado de trabalho pelas universidades. “Sou graduada em pedagogia, mas optei por não atuar na área porque na época eu ganhava muito mais do que uma profissional do ramo”, justifica. Sem filhos e vícios, Mar não gosta nem do cheiro de álcool e fumo. Ao longo dos anos, conseguiu comprar uma casa em um bairro nobre, carro e ainda guardar dinheiro em uma conta poupança, investir no visual e fazer até cinco viagens nacionais e internacionais por ano.
Criada em uma família desestruturada, Mar é filha única de um alcoólatra e uma viciada em medicamentos e jogatina. “Se endividavam e vendiam até móveis e roupas para alimentar o vício. Era raro o dia que o meu pai não me batia. Me espancava com qualquer coisa que estivesse ao alcance da mão. Tinha tanto medo dele que às vezes fazia xixi nas calças só de ouvir seus passos”, lembra.
Mar fugiu de casa aos 12 anos. Morou na rua alguns meses e foi localizada por uma tia que lhe deu abrigo até os 16 anos, quando a mulher faleceu em decorrência de um câncer no estômago. Sozinha, Mar tinhas duas opções: voltar para casa ou morar na rua. “Foi aí que uma amiga me falou que estava se prostituindo para sobreviver. Relutei muito no começo, mas acabei cedendo e hoje estou aqui”, enfatiza.
Sobre o amor, Mar nunca nutriu esperanças em demasia. Prefere ser prática, mas não radicalmente pragmática. “Sim, já tive alguns bons relacionamentos durante a vida, mas sempre busquei um certo equilíbrio. Nunca menti sobre a minha profissão. Não tenho motivo pra isso. Sou quem sou, me aceitei há muito tempo e isso me basta para ser feliz do meu jeito”, assegura.