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Quatro romances de escritores consagrados que criticam a exploração animal
Frankenstein, de Mary Shelley, publicado em 1818
A escritora britânica Mary Wollstonecraft Shelley, famosa pela criação do monstro de Frankenstein, um dos mais emblemáticos da literatura mundial, teve uma vida pautada pelo vegetarianismo. Quando decidiu escrever aquela que se tornaria sua grande obra-prima, a maior inspiração da autora não foi basicamente o mito grego do titã Prometeu, um defensor da humanidade que roubou o fogo de Héstia e presenteou os mortais, mas também o seu posicionamento contrário à exploração animal. Nenhuma obra desse período superou a popularidade de Frankenstein. Em uma das passagens do livro, a criatura se emociona ao dizer que sua comida não é a mesma dos humanos:
“Não tenho que matar o cordeiro e a cabra para saciar o meu apetite. Bolotas e bagas são o suficiente para a minha alimentação. Minha companheira vai ser da mesma natureza que a minha, e vai se contentar com o mesmo que eu. Faremos a nossa cama de folhas secas; o sol vai brilhar sobre nós da mesma forma que brilha sobre os homens, e ele vai amadurecer a nossa comida. A imagem que apresento a vocês é humana e pacífica.” Ou seja, na essência, o monstro de Mary Shelley carregava em si a perfeição moral que faltava ao homem mediano, rendido aos excessos da ganância e da megalomania.
“Por que há de o homem vangloriar-se de sensibilidades mais amplas do que as que revelam o instinto dos animais? Se nossos impulsos se restringissem à fome, à sede e ao desejo, poderíamos ser quase livres. Somos, porém, impelidos por todos os ventos que sopram, e basta uma palavra ao acaso, um perfume, uma cena, para provocar-nos as mais diversas e inesperadas evocações”, escreveu Mary Shelley em Frankenstein, externando sua antipatia pela jactância e pelos caprichos do ser humano.
Os Irmãos Karamázov, de Fiódor Dostoiévski, publicado em 1879
No romance que se tornou uma das mais sólidas e importantes obras da literatura russa, Doistoévski condena a comparação entre a crueldade dos seres humanos com a dos animais selvagens, justificando que é uma injustiça para com estes, já que as feras não atingem jamais os refinamentos dos humanos.
Segundo o narrador, o tigre dilacera sua presa e a devora; não conhece outra coisa: “Por isso, ame todas as criaturas de Deus, do todo ao grão de areia. Ame cada folha, cada raio de luz. Ame os animais, ame as plantas, ame cada coisa, e assim você conhecerá os mistérios de Deus.”
Ele defende que esse é o único meio de ter uma compreensão mais completa de que o mundo precisa ser amado, de forma abrangente e universal: “Ame os animais. Deus deu aos animais uma consciência rudimentar e uma imperturbável alegria. Não se deve chateá-los ou privá-los de sua felicidade. Não trabalhe contra os intentos de Deus. Homem, não se orgulhe de sua superioridade em relação aos animais. Eles não possuem pecados, enquanto você mancha a terra com tua grandeza, com tua aparição, deixando após ti um rasto de podridão — Ai! Quase todos nós!” Citações das páginas 260, 352 e 353.
The Jungle (A Selva), de Upton Sinclair, publicado em 1906
A obra que denuncia as mazelas da indústria frigorífica tem como protagonista o lituano Jurgis Rudkus, um imigrante que mal sabe falar inglês e vive com a família em um distrito de Chicago dominado por currais e fábricas de carne processada. Desempregado, Rudkus aceita um emprego em um matadouro. Mas a desilusão cresce quando ele se vê endividado.
Às raias da miséria, é obrigado a se sujeitar aos trabalhos mais sórdidos, além de amargar experiências traumatizantes como a morte do pai, vítima da falta de segurança nas linhas de produção da indústria frigorífica. Em uma das passagens da página 38 de The Jungle, uma imigrante lituana se mostra chocada ao saber do destino de milhares de bois e vacas. “E o que será de todas essas criaturas?”, chorou Teta Elzbieta.
“Esta noite, todos serão mortos e fatiados. E logo ali, do outro lado dos depósitos de acondicionamento, há mais ferrovias, e de lá vêm os vagões que vão levá-los embora”, respondeu Jokubas Szedvilas. No total, dez milhões de criaturas vivas eram transformadas em alimento a cada ano.
Assim como os animais, os trabalhadores também eram tratados como seres inferiores, já que suas vidas se resumiam às longas jornadas de trabalho. Exemplo disso é um adolescente que vencido pela exaustão e pela embriaguez dorme no trabalho, onde se torna comida para ratos na madrugada. Nesse trecho, Upton Sinclair denuncia ainda a falta de higiene nas linhas de produção. Também revela no livro que muitas vezes a carne bovina se misturava à carne dos ratos que morriam nas linhas de produção.
À frente, havia uma grande roda de ferro, de 20 pés de circunferência e com anéis por toda a sua borda. (…) Quando a roda virou, o porco teve seu pé arrancado e arremessado para o alto. Ao mesmo tempo, ouviu-se um grito aterrorizante; os visitantes ficaram alarmados; as mulheres empalideceram e recuaram, escreveu Sinclair na página 40 de The Jungle.
No livro-denúncia, o sofrimento dos animais e dos homens estão interligados; um não existe sem o outro num contexto em que na prática o sonho americano não passa de uma distopia velada pela inocente fantasia. E nesse cenário, o maior financiador é o consumidor que alheio à excruciante realidade aceita tudo na sua passividade.
A riqueza de detalhes com que Sinclair descreve as más condições enfrentadas pelos trabalhadores e pelos animais explorados pela indústria fez com que milhares de pessoas se tornassem vegetarianas e veganas nas primeiras décadas do século 20. E com o tempo, e a popularidade mundial do livro traduzido em mais de 50 idiomas, o número de adeptos da alimentação livre de ingredientes de origem animal cresceu exponencialmente.
A omissão do Estado também endossa e justifica a existência dessas práticas. Publicado há mais de cem anos, The Jungle é uma obra que, em síntese, não apenas flerta com a atualidade, mas diz muito sobre ela. “Queria tocar o coração do público, mas acabei tocando o estômago”, declarou Sinclair ao avaliar a recepção do livro.
Jean-Christophe, romance de Romain Rolland publicado em dez volumes entre os anos de 1904 e 1912
Na obra com viés autobiográfico, o autor francês narra a história de um gênio musical alemão que adotou a França como lar. A partir daí, ele sincretiza suas visões musicais, questões sociais, internacionalismo humanista e o direito dos animais à vida.
Ele não podia mais suportar ver uma das cenas mais ordinárias que testemunhara centenas de vezes – um bezerro chorando em uma cesta de vime, com seus grandes olhos salientes, seus tufos brancos encaracolados sobre a testa, seu focinho roxo e suas pernas dobradas. Havia um cordeiro com as quatro pernas amarradas sendo transportado por um camponês.
“Pendurado de cabeça para baixo, ele tentava elevar a própria fronte, gemendo como uma criança, balindo e pendendo a língua cinza. Havia aves amontoadas em uma cesta e podia-se ouvir ao longe os guinchos de um porco sangrando até a morte, além de um peixe a ser limpo em uma cozinha”, registrou Rolland em “Jean-Christophe”.
De acordo com o narrador, as torturas inomináveis que os seres humanos infligem a essas criaturas inocentes fez seu coração doer. “Concedendo aos animais um raio de razão, imagine o quanto o mundo pode ser um pesadelo terrível para eles: um sonho com homens de sangue frio, cegos e surdos cortando suas gargantas, abrindo-as, eviscerando-os, fatiando-os, cozinhando-os vivos e às vezes rindo da forma como eles se contorcem de agonia. Existe algo mais atroz entre os canibais da África?”, questionou.
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Percy Shelley, um ativista “vegano” no século 19
“Seria muito melhor a um ser senciente jamais ter existido do que existir para suportar a miséria absoluta”
Em países que não têm o inglês como língua nativa, não raramente o poeta britânico Percy Bysshe Shelley é relegado à sombra de sua esposa Mary Shelley, autora do clássico “Frankenstein”, uma das obras mais famosas da literatura inglesa. No entanto, o que pouca gente sabe é que o livro foi influenciado pelas ideias do escritor romântico, sua interpretação do mito de Prometeu aliado à sua filosofia de vida vegetariana, também partilhada por Mary.
Um dos personagens mais influentes do romantismo, Shelley foi muito além da poesia, fazendo da Era Romântica um período em que arte e filosofia estreitaram sua relação com o vegetarianismo. Ao publicar os poemas “Queen Mab” e “Alastor, or The Spirit of Solitude”, e os ensaios “A Vindication of Natural Diet” e “On The Vegetable System of Diet”, o poeta chamou a atenção para os direitos dos animais e os benefícios da dieta vegetariana. Considerado moderno demais para a época, seu idealismo visto como intransigente e pouco ortodoxo fez dele uma persona non grata em muitos círculos sociais europeus.
Controverso, defendia o vegetarianismo, o amor livre e o direito ao ateísmo em uma sociedade visceralmente cristã. Abordava a importância dos direitos das mulheres e incentivava a esposa Mary Shelley a tornar-se ativista na busca por igualdade entre homens e mulheres, o que fez dela uma referência para o feminismo na Inglaterra e nos Estados Unidos. Além disso, ele lutou por justiça social para as classes trabalhadoras.
O poeta britânico se tornou vegetariano depois de testemunhar maus-tratos contra animais domesticados para o abate. Com uma visão filosófica progressista, ele defendia que os animais não precisavam de privilégios, mas de equidade, pois, assim como os seres humanos, também têm direito à vida. Para Shelley, o abate de animais, com a mera intenção de transformá-los em comida, não é apenas a raiz dos crimes cometidos pela raça humana, mas também a causa de todos os comportamentos imorais e criminosos da humanidade.
Ele argumentava que a adoção de uma dieta vegetariana e a cessação do abate animal levaria ao fim as injustiças sociais em decorrência da pobreza, do crime e da violência. Também tinha fé que esse seria o caminho para a implantação de um sistema que substituiria o capitalismo e daria fim às guerras. De acordo com o poeta britânico, o vegetarianismo era o único meio de alcançar a perfeição moral; pensamento que influenciaria o russo Liev Tolstói, um dos maiores nomes da literatura mundial.
“Somente através do amolecimento e do disfarce da carne através da preparação culinária que ela se torna suscetível de mastigação e digestão, e só assim a visão dos seus sucos sangrentos e o seu horror cru não desperta ódio e desgosto.”, lamentou. Mais do que o decano do vegetarianismo no século 19, é justo dizer que Percy Shelley era um protovegano, ou seja, alguém que, despreocupado com denominações e terminologias, teve grande influência sobre o surgimento do veganismo, uma ideologia mais austera, sólida e completa em relação à defesa dos animais.
“Eu sustento que a depravação da natureza física e moral do ser humano começou com seus hábitos não naturais de vida. A origem do homem, como a do universo do qual ele faz parte, envolve um mistério impenetrável”, escreveu Shelley em “A Vindication of Natural Diet”, ensaio em que se opõe radicalmente à exploração animal em todos os aspectos. Na obra, argumenta que uma sociedade baseada na igualdade, justiça social e espiritualidade deve ter como ponto de partida uma alimentação livre da tortura e do sofrimento animal.
O interesse de Percy Shelley pelo vegetarianismo começou cedo. Quando estudava na Universidade de Oxford, o poeta britânico se alimentava como um eremita, levando em conta a pureza e a simplicidade dos alimentos. Em 1812, quando completou 20 anos, adotou a dieta vegetariana estrita. E sua crença no vegetarianismo foi reforçada quando ele conheceu a Família Newton, formada por uma longa linhagem de vegetarianos estritos.
Seus amigos Thomas Jefferson Hogg e Thomas Love Peacock não gostaram da influência dos Newton sobre Shelley. Eles viam a família de vegetarianos como “um grupo de monges tolos”, e logo começaram a zombar do poeta. Porém mudaram de opinião e mais tarde se tornaram vegetarianos. Na biografia “Life of Shelley”, Hogg fala de sua aprovação e adesão ao vegetarianismo.
Frugal, a comida preferida de Shelley era pão, alimento que sempre comprou em uma mesma padaria enquanto estudou em Oxford. Em Londres, durante a permanência do poeta em Bishopsgate em 1815 e depois em Marlow em 1817, Thomas Hogg notou que o amigo seguia firme na defesa do vegetarianismo, assim como fez até os seus últimos dias de vida.
Percy Shelley influenciou os mais importantes reformadores vegetarianos dos séculos 19 e 20, o que garantiu-lhe o título de primeira grande personalidade vegana da história do Ocidente, segundo a obra “In Pursuit of Percy Shelley, ‘The First Celebrity Vegan’: An Essay on Meat, Sex, and Broccoli”, de Michael Owen Jones. Antes de se tornar vegetariano, o poeta romântico era um humanista e humanitarista que se alimentava com simplicidade; o que à época, e paradoxalmente, foi encarado como uma extravagância e uma excentricidade inofensiva propagada por um artista e pensador que seguia os preceitos do evangelho da gentileza e do amor universal.
Assim como o filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau, Shelley foi influenciado pelos filósofos gregos Pitágoras e Plutarco – principalmente pelo ensaio “Do Consumo da Carne”, que qualifica a “dieta da carne” como não natural ao homem. O britânico escreveu que os seres humanos eram naturalmente frugívoros, logo deveriam ter uma dieta baseada em água e vegetais. Também via como importante a abstenção de álcool. Considerava o licor fermentado como uma das bebidas mais nocivas ao homem. “Tão venenoso quanto a carne”, sentenciou.
Abdicando do consumo de alimentos de origem animal e retornando à dieta natural dos primeiros seres humanos que habitaram a Terra, não tardaria para a humanidade vivenciar uma evolução moral, melhorias em relação à saúde e restauração da longevidade. “O que se come é o que se é”, dizia o poeta, crente de que a identidade humana tem relação substancial com a alimentação.
E enquanto o homem não retornar às suas origens, ele há de ser punido, assim como foi o mitológico titã Prometeu que roubou o fogo para dar aos homens. Em represália, o acorrentaram ao Monte Cáucaso, onde assistiu um mesmo abutre se alimentando diariamente de seu fígado que se regenerava.
“O homem em sua criação foi dotado com o dom da eterna juventude, isto é, ele não foi feito para ser uma criatura doente como vemos agora. Ele deveria desfrutar de sua juventude e aos poucos afundar no seio da mãe terra, sem contrair qualquer doença ou sofrimento físico. Porém Prometeu ensinou ao homem como transformar os animais em comida. Depois explicou como usar o fogo para que a carne animal se tornasse digerível e agradável ao paladar. Júpiter e os outros deuses, prevendo as consequências dessas ações, ficaram irritados com a visão que tiveram dessas novas criaturas. E para puni-los decidiram deixar que experimentassem os tristes efeitos do consumo de carne. (…) E assim o homem perdeu o dom inestimável da saúde que recebeu dos céus. Ele ficou doente, sua saúde se tornou precária, e não mais desceu lentamente até a própria sepultura”, registrou Percy Shelley em “A Vindication of Natural Diet”, publicado em 1813.
Na obra, Prometeu representa a raça humana que contrariando a própria natureza, usou o fogo com fins culinários. Então os sinais vitais dos seres humanos foram devorados pelo abutre, simbolizando a emergência das doenças. “Seu ser é consumido em cada forma de sua repugnante e infinita diversidade”, registrou.
Shelley também encontrou no mito da criação uma alegoria semelhante, a de que Adão e Eva alçaram à posteridade a ira de Deus e a perda da vida eterna, isto porque se alimentaram da árvore do mal, fazendo florescer a violência e a doença através de uma dieta não natural. “O homem e os animais a quem ele infectou com sua sociedade, ou os depravou através de seu domínio, estão sozinhos e doentes. O porco selvagem, o muflão, o bisão e o lobo são perfeitamente isentos de doenças e, invariavelmente, morrem de violência externa ou de velhice. Mas os porcos domésticos, as ovelhas, as vacas e os cães estão sujeito a uma incrível variedade de enfermidades e, como os corruptores da natureza, há médicos que prosperam com suas misérias”, queixou-se.
O ativismo de Percy Shelley fez com que o famoso e controverso poeta Lord Byron também aderisse ao vegetarianismo na juventude. Na realidade, Shelley tinha um grande poder argumentativo. Não possuía dificuldade em convencer aqueles que estavam mais próximos a ele de tornarem-se vegetarianos.
“As misérias, as doenças que assolam o mundo, são uma maldição conquistada pelo ser humano desde que ele se colocou acima de seus companheiros animais. (…) Comparativamente, a anatomia sempre me ensinou que o homem se assemelha mais aos animais frugívoros, não aos carnívoros. Ele sequer tem as garras adequadas para aproveitar sua presa, e nem mesmo caninos verdadeiramente pontiagudos e afiados para dilacerar corretamente as fibras da carne. Pensem no trabalho que o ser humano tem para preparar a carne, amolecê-la e disfarçar suas características naturais”, apontou em seu ensaio.
Na obra, o autor convida o leitor a refletir sobre o aspecto cru da carne e o seu suco que geram desgosto em quem a consome, alegando que o homem come carne porque finge não ver carne. A quem se considera um carnívoro nato, Shelley, assim como Plutarco, faz um convite: “Experimente rasgar um cordeiro vivo.”
No século XIX, ele compartilhou sua filosofia com todos os seus contemporâneos, estendendo seus questionamentos morais e éticos a muitos outros artistas e pensadores, estreitando a relação dos românticos com o vegetarianismo. Em “Queen Mab”, de 1813, escreveu sobre sua transição: “E o homem…não agora, mata o cordeiro de quem observa a face, e terrivelmente devora sua carne mutilada.”
O mesmo excerto abre o ensaio “A Vindication of Natural Diet”. Em “A Refutation of Deism”, uma prosa publicada em 1814, ele aborda a sua filosofia vegetariana, assim como no poema lírico do quinto canto de “Laon and Cythna” ou “The Revolt of Islam”, de 1818, conhecido como “A Lírica do Vegetarianismo”. Com a delicadeza e humanidade que lhe era peculiar, sua crença no vegetarianismo também pode ser observada na abertura do poema “Alastor”, de 1816, onde ele invoca a comunhão entre a terra, o oceano e o ar através da amada fraternidade da natureza.
Shelley, na dedicação sincera a todos os seres sencientes escreveu: “Se o uso de comida animal é, em consequência, subversiva à paz da sociedade humana, quão injustificável é a injustiça e a barbárie exercida contra essas pobres vítimas. Esses animais são chamados à existência pelo artifício humano de garantir uma existência curta e miserável de escravidão e doenças, em que seus corpos podem ser mutilados e seus sentimentos sociais suprimidos. Seria muito melhor a um ser senciente jamais ter existido do que existir simplesmente para suportar a miséria absoluta.”
Referências
Shelley, Percy Bysshe. A Vindication of Natural Diet, Londres. Smith & Davy. 1813.
Salt, Henry. Percy Bysshe Shelley: A Monograph. Swan, Sonnenscheim, Lowrey & Co., Londres. Originalmente publicada no The Vegetarian Annual, de 1887 (1888).
Jones, Michael Owen. In Pursuit of Percy Shelley, “The First Celebrity Vegan”: An Essay on Meat, Sex, and Broccoli. Journal of Folklore Research. Volume 53. Número 2. Agosto de 2016.
Medwin, Thomas. The Life of Percy Bysshe Shelley, Londres. Biblioteca Britânica. Domínio Público (1847).
Hogg, T.J. The Life of Percy Bysshe Shelley, Londres. Editora Edward Moxon (1888).
Blunden, Edmund. Shelley – A Life Story, Londres. Collins St. James’s (1946).
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Como o romantismo influenciou o veganismo
Tenha cuidado, porque quando um verme você esmagar, a alma de um irmão você pode encontrar
O romantismo foi a corrente artística que ajudou a sedimentar o vegetarianismo moderno e o veganismo no mundo ocidental. E não por acaso, já que os escritores da Era Romântica argumentavam a favor de uma dieta isenta de ingredientes de origem animal, levando em conta o estado da humanidade, a saúde e os direitos animais, a economia e a divisão de classes sociais.
Embora pouca gente saiba, o aforismo “você é o que você come”, tão divulgado de forma equivocada nos séculos 20 e 21, foi criado pelos românticos na defesa do vegetarianismo, ao ponderarem que tudo que serve de alimento ao ser humano tem implicações físicas e morais. De acordo com o escritor britânico Percy Bysshe Shelley, um dos precursores do veganismo, o consumo de carne não apenas profanou o corpo humano, mas também encorajou o consumo excessivo de álcool e a adoção de outros hábitos destrutivos.
“Acredito que a depravação da natureza física e moral do ser humano se originou com seus hábitos não naturais de vida”, escreveu Shelley em A Vindication of Natural Diet, publicado em 1813. Na obra, ele afirma que o homem naturalmente saudável foi comprometido pela sociedade moderna. “Um corpo tornado doente por uma sociedade doente”, alegou.
Estudando a relação do ser humano com a carne, o escritor percebeu que o suposto alimento não representava apenas mais uma opção nutricional, mas também a legitimação e naturalização da crueldade, tirania e escravidão dos animais. Se não temos qualquer direito sobre seus corpos, como podemos nos colocar em posição de destruí-los? Não há nenhum tipo de permissão, nem mesmo sobre pardais que povoam os céus ou sobre peixes mais modestos que habitam os rios, defendiam.
No século 19, médicos e cientistas que apoiavam os românticos descobriram que a anatomia humana era muito semelhante a animal, principalmente no que diz respeito à senciência e às respostas emocionais. E isso ajudou a reforçar o discurso de que o consumo de animais já era moralmente errado. Sendo assim, o ser humano deveria retornar à dieta de base vegetal.
O escritor inglês e ensaísta Joseph Ritson também contribuiu com novas constatações. Ele registrou que os dentes e os intestinos do homem são muito parecidos com os dos animais frugívoros, portanto ele não deve consumir carne. A existência de caninos curtos e a falta de garras também ajudaram a contestar a ideia de que o homem é um predador ou caçador natural, pois ele não possui capacidades físicas para matar um animal sem usar as ferramentas apropriadas. “Além disso, o comprimento de seu intestino faz com que a digestão da carne seja muito difícil”, justificou Ritson em An Essay on Abstinence from Animal Food, as a Moral Duty, publicado em 1802.
O médico escocês George Cheyne, proeminente figura da medicina nos séculos 17 e 18, ajudou a fundamentar a defesa do vegetarianismo na Era Romântica ao concluir que o surgimento de doenças e a queda da longevidade estavam relacionados à incorporação da carne na alimentação. Para os românticos, a decadência humana começou a partir do momento que o homem fez do consumo de carne um hábito, se negando a aceitar o fato de que os primeiros humanos tinham uma alimentação muito próxima da dieta vegetariana.
E como consequência, as doenças atingiram tanto a humanidade quanto os outros seres vivos. Muitos animais foram diagnosticados pela primeira vez com enfermidades que surgiram com a crescente oferta e demanda de carne. O agravante foi o confinamento de animais em fazendas, tornando-os condutores de doenças que se espalhavam para outros animais. Até mesmo a comida servida a eles, desde o princípio, era um facilitador da proliferação de doenças.
Então os românticos fizeram da arte, da filosofia e da política um instrumento de conscientização contra a natureza opressiva humana – algo que deu origem a uma dieta considerada cruel e brutal que até hoje o afasta de seu verdadeiro papel em relação à natureza. Os vegetarianos do romantismo também foram os primeiros a se preocuparem com o meio ambiente no Ocidente, despertando uma consciência muito próxima da atual. Entendiam que o consumo de carne afetaria cada vez mais a natureza conforme a demanda crescia.
Shelley argumentava que a quantidade de matéria vegetal nutritiva utilizada na engorda do gado poderia alimentar dez vezes mais pessoas se os vegetais usados em sua nutrição fossem destinados às pessoas. Logo a criação de animais para o abate era um desperdício e um assalto à relação entre a capacidade da natureza de fornecer alimentos e o desmedido desejo do homem em explorá-la sem pesar critérios ambientais.
Em An Essay on Abstinence from Animal Food, as a Moral Duty, Ritson afirma que é tão antinatural ao homem o consumo de carne que chega a ser impossível não incitar nele nenhum tipo de ferocidade. Os românticos se preocupavam com o embrutecimento humano, o distanciamento em relação às suas origens; até porque uma das principais características do romantismo era a evocação do passado, incluindo a defesa da natureza, da vida e da imaginação.
“Ele é um homem de paixões violentas, de olhos vermelhos e veias inchadas, que sozinho consegue empunhar a faca do assassinato”, escreveu Shelley em A Vindication of Natural Diet, em referência à prática selvagem e fisiologicamente conflituosa do derramamento de sangue. E ao contrário do que muitos acreditam, os românticos se preocupavam com as classes mais desfavorecidas. Tanto que o vegetarianismo era uma forma de resistência à cultura do luxo.
Reformistas literários como Percy Shelley, de origem burguesa, apostavam no boicote à carne como uma forma de combater também o consumismo. A carne figurava como um dos principais símbolos de distinção social e segregação de classes nos séculos 18 e 19. Para os românticos, que viam a divisão de classes como um dos grandes males da sociedade, a carne foi incluída na dieta humana não para beneficiar o ser humano, mas simplesmente para gerar lucro, aceitação e atrair visibilidade.
Os vegetarianos do romantismo chamavam a atenção para a opressão hierárquica dentro das classes econômicas e para a forma como a humanidade estava deslocada do mundo natural. Portanto consumir carne não era mais do que um vício burguês, e os abastados eram os únicos em condições de consumi-la com regularidade. Paradoxalmente, a dieta mais saudável era a das classes mais baixas. Eles comiam pães, mingau, batatas e vegetais.
Outra curiosidade é que os vegetarianos da Era Romântica eram, em sua maioria, intelectuais de classe média que desprezavam a ganância e o desperdício tão inerente à alta burguesia. O escritor inglês Thomas Tryon, importante defensor do vegetarianismo no século 17, declarou que os seres humanos jamais teriam transformado os animais em comida se fosse apenas por desejo, necessidade ou manutenção da vida. Ele acreditava que a humanidade mergulhou em uma forma de ira amplificada pelo retorno financeiro que os animais poderiam proporcionar enquanto produtos. Assim os humanos deixaram de amá-los e vê-los como indefesas criaturas da natureza.
Os românticos apostavam na expansão do vegetarianismo. Mostravam o quanto a dieta vegetariana era acessível. Eles tencionavam elaborar um plano para aumentar a oferta de alimentos vegetais, forçando a diminuição da demanda por terra na criação de animais, o que significava também reduzir os conflitos de classes. Shelley e outros pensadores entendiam que a comida era um tipo de personificação material de todas as práticas sociais. Por isso o boicote ao consumo de carne era a melhor solução para frear o consumismo.
Entre os séculos 18 e 19, Inglaterra, Alemanha e França eram os países com mais adeptos do vegetarianismo, não apenas como dieta, mas também como filosofia de vida, já que muitos acabaram se tornando vegetarianos por uma questão moral e ética envolvendo os direitos animais. Com a expansão do vegetarianismo, cresceu a disponibilidade e variedade de vegetais. À época, muitas das grandes cidades da Europa tinham seus próprios jardins que ofereciam gratuitamente frutas e vegetais à população.
E tudo isso graças à influência literária dos românticos na ficção, antropologia, teorias de consumo e evolucionismo. Contudo é importante frisar que no final do século 19 o romantismo foi influenciado pelo humanismo durante o iluminismo, quando os europeus começaram a repensar suas atitudes em relação à justiça, liberdade e fraternidade.
Um exemplo foi o filósofo inglês e idealizador do liberalismo John Locke. Ele percebeu que os animais tinham grande potencial de comunicação, além de condições de expressar emoções e capacidade de sentir dor. Então o humanitarismo foi estendido ao reino animal, considerando que não havia tantas diferenças entre os seres humanos e os animais.
Graças a Locke, ampliou-se a crença de que todos os seres vivos tinham uma forte ligação, sugerindo a ideia de que ser cruel com algum animal significava ser capaz de ser violento com qualquer criatura viva, inclusive humana. Com tais princípios, o vegetarianismo se tornou uma filosofia apropriada que ajudou a fortalecer o humanismo e a compaixão em relação aos animais.
Por meio do trabalho de estudiosos como o naturalista francês Louis Lecrerc, o Conde de Buffon, a sociedade passou a reconhecer a complexidade física, biológica e emocional dos organismos que compõem a natureza. Lecrerc defendia a ideia da ancestralidade comum em relação a humanos e animais, o que curiosamente ia ao encontro do que advogavam os românticos. No século 19, o naturalista britânico Charles Darwin, mais famoso pela autoria de On the Origin of Species, de 1859, foi influenciado por Lecrerc e pelos românticos, constatando que realmente animais e seres humanos estão naturalmente interligados.
Com ideologia enraizada na estética romântica da compaixão e da comunhão com a natureza, os adeptos do romantismo também foram pioneiros em outras linhas de frente. Prova disso foi o papel desempenhado pela escritora vegetariana Mary Shelley, autora do clássico Frankenstein que, incentivada pelo marido Percy Shelley, se tornou ativista dos direitos animais e das mulheres. Outros nomes importantes desse período são os britânicos Alexander Pope e Lord Byron – os maiores poetas do romantismo junto com Percy Shelley.
O trabalho deles culminou na fundação da Vegetarian Society em Londres em 1847, e no uso formal do termo vegetariano em substituição a pitagorianos, muito usado para se referir a quem não se alimentava de animais. Os românticos também tiveram grande influência na criação da Vegan Society, a pioneira do veganismo no Ocidente. “O vegetarianismo é o caminho para que as pessoas voltem a ter uma relação mais respeitosa com a natureza”, dizia Percy Shelley.
As contribuições do vegetarianismo à sociedade moderna
O movimento vegetariano durante o Período Romântico foi marcado pela defesa dos direitos animais e das mulheres. Também teve grande importância sobre os direitos civis no século 19. E seus ideais eram sustentados pelo legado de pensadores gregos. “Não faça aos outros o que não gostaria que fizessem com você”, diziam os românticos, em referência à Regra de Ouro de Pitágoras.
Nenhum ser humano tem mais direito à natureza do que qualquer outro ser vivo. Todos devem ser vistos como iguais, declaravam. Eles rejeitavam a ideia da superioridade humana defendida por quem alegava que o homem era o elo entre a natureza e Deus. “Usurpar autoridade sobre qualquer animal é excesso de orgulho e altivez da alma”, condenou o escritor inglês Robert Morris.
A defesa do vegetarianismo por meio do romantismo reavivou valores morais perdidos pelo homem ao longo dos séculos. Inclusive inspirou religiões baseadas em velhas doutrinas que optaram por rever a relação entre Deus, seres humanos e animais. Nesse período, os cristãos reconheceram que só após o dilúvio foi dada ao homem a permissão para comer carne, não antes, o que endossa a ideia de que a carne não fazia parte da dieta natural humana.
Com isso, religiões que abordam a reencarnação começaram a discutir sobre a alma animal e a reconhecer a importância de outros seres sencientes. “Tenha cuidado, porque quando um verme você esmagar, a alma de um irmão você pode encontrar”, escreveu a poetisa inglesa Anna Laetitia Barbauld, importante nome do romantismo, na obra The Mouse’s Petition, publicada em 1773.
Referências
Shelley, Percy Bysshe. A Vindication of Natural Diet. London. Smith & Davy (1813).
Ritson, Joseph. An Essay on Abstinence from Animal Food, as a Moral Duty, London, 1802. Kessinger Publishing (2009).
Pope, Alexander. Against Barbarity to Animals, The Guardian, No. 61 (1713).
Morton, Timothy. Cultures of Taste/Theories of Appetite: Eating Romanticism; New York: Palgrave Macmillan (2004).
Morton, Timothy. Joseph Ritson, Percy Shelley and the Making of Romantic Vegetarianism, Romanticism. Vol. 12. The University of California (2006).
Preece, Rod. Sins of the Flesh: A History of Ethical Vegetarian Thought; Vancouver; Toronto: UBC Press (2008).
Spencer, Colin. The Heretic’s Feast: A History of Vegetarianism; Great Britain: Hartnolls Ltd, Bodmin (1993).
Oerlemans, Onno. Romanticism and the Materiality of Nature. Toronto; Buffalo: University of Toronto Press (2002).
Ruston, Sharon. Vegetarianism and Vitality in the Work of Thomas Forster, William Lawrence and P.B. Shelley. Keats-Shelley Journal. Vol. 54 (2005).
Perkins, David. Romanticism and Animal Rights. Cambridge, UK; New York: Cambridge University Press (2003).
Stuart, Tristram, The Bloodless Revolution: A Cultural History of Vegetarianism from 1600 to Modern Times; Great Britain. HarperPress (2006).
Kenyon-Jones, Christine. Kindred Brutes: Animals in Romantic-Period Writing; UK: Ashgate Publishing (2001).
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A história do veganismo
“Enquanto o ser humano for implacável com as criaturas vivas, ele nunca conhecerá a saúde e a paz”
“Enquanto o ser humano for implacável com as criaturas vivas, ele nunca conhecerá a saúde e a paz. Enquanto os homens continuarem massacrando animais, eles também permanecerão matando uns aos outros. Na verdade, quem semeia assassinato e dor não pode colher alegria e amor”, disse o filósofo grego Pitágoras por volta de 500 anos antes de Cristo.
No mesmo período, Siddhārtha Gautama, o Buda, conversou com seus seguidores sobre a importância da alimentação isenta de ingredientes de origem animal. Assim, Pitágoras e Siddhārtha se tornaram as primeiras referências de uma consciência que mais tarde ajudaria a moldar o veganismo.
Muito tempo depois, no século I, o filósofo grego Plutarco escreveu “Do Consumo da Carne”. No Discurso Primeiro, ele define o apetite humano por carne como uma manifestação de luxúria, lascívia supérflua. “Aos inocentes, aos mansos, aos que não têm auxílio nem defesa – a esses perseguimos e matamos. Só para ter um pedaço da sua carne, os privamos da luz do sol, da vida para que nasceram. Tomamos por inarticulados e inexpressivos os gritos de queixume que eles soltam e voam em todas as direções”, registrou.
Mas foi só a partir do século XV que houve um crescimento exponencial de pensadores e artistas que viram no vegetarianismo uma filosofia de vida em condições de contribuir para a libertação animal e humana, já que ao se alimentar da carne o ser humano torna-se prisioneiro de si mesmo, das suas próprias incoerências.
“Além de ajudá-los, se aproxima deles para que eles possam gerar filhos que saciem seu paladar, assim criando sepulturas para todos os animais. E devo dizer mais, se me for permitido dizer toda a verdade: Não acha que a natureza já produz alimentos o suficiente para que se satisfaça?”, questionou Leonardo da Vinci em citação publicada na obra Quaderni D’Anatomia, I-VI, preservada na Inglaterra pela Biblioteca Real de Windsor.
Em 1580, o filósofo e humanista francês Michel de Montaigne publicou o livro “Ensaios”, dando origem ao gênero situado entre o poético e o didático. E foi nessa obra que dedicou espaço para comentar que as índoles sanguinárias do ser humano em relação aos animais atestam propensão natural à crueldade.
“Em Roma, depois que se acostumaram aos espetáculos de mortes dos animais, chegaram aos homens e aos gladiadores. A própria natureza, temo, fixou no homem um instinto de desumanidade. Perdera-se o prazer de ver os animais brincando entre si e acariciando-se; e ninguém deixa de senti-lo ao vê-los se dilacerarem e se desmembrarem. Os animais foram sacrificados pelos bárbaros para os benefícios que deles esperavam”, enfatizou.
Para Montaigne, a ideia da superioridade do ser humano diante dos animais corrobora a máxima presunção e um falso direito de violência sobre outras espécies. Ele defende que, como racional, o ser humano tem um dever moral em relação aos animais, seres que têm vida e sentimento.
No século XIX, surgiram as primeiras obras dedicadas à filosofia de vida vegetariana. E o que impulsionou a concepção mais moderna de vegetarianismo foi o romantismo, movimento artístico, político e filosófico que fez oposição ao iluminismo e ao racionalismo. Pautando-se na natureza, os românticos exaltavam os animais e apontavam as falhas humanas embasadas na crença supremacista.
“Envolvido em um turbilhão social, basta que ele não se deixe arrastar nem pelas paixões, nem pelas opiniões dos homens; veja ele pelos seus olhos, sinta pelo seu coração; não o governe nenhuma autoridade, exceto a de sua própria razão”, declarou o suíço Jean-Jacques Rousseau, precursor do romantismo e defensor do vegetarianismo, em “O Bom Selvagem”.
Em 1802, Joseph Ritson lançou o livro “An Essay on Abstinence from Animal Food: as a Moral Duty”, seguido por “The Return to Nature, or, a Defense for the Vegetable Regimen”, de 1811, escrito por John Frank Newton. Em 1813, Percy Bysshe Shelley publicou “A Vindication of Natural Diet”. Já em 1815, William Lambe endossou o discurso em favor do vegetarianismo com a obra “Water and Vegetable Diet”.
Esses quatro escritores britânicos, que também eram ativistas vegetarianos e lutavam pelos direitos dos animais, se tornaram precursores do que conhecemos hoje como veganismo. Suas inspirações vieram de pensadores como Pitágoras, Plutarco e John Milton.
Por causa da estreita relação entre romantismo e vegetarianismo que, influenciada pelo marido Percy Shelley, a escritora britânica Mary Shelley publicou em 1817 o famoso romance gótico “Frankenstein”. Em uma das passagens do livro, o monstro vegetariano criado por Victor Frankenstein, repudia o hábito humano de se alimentar de animais:
“Não tenho que matar o cordeiro e a cabra para saciar o meu apetite. Bolotas e bagas são o suficiente para a minha alimentação. Minha companheira vai ser da mesma natureza que a minha, e vai se contentar com o mesmo que eu. Faremos a nossa cama de folhas secas; o sol vai brilhar sobre nós da mesma forma que brilha sobre os homens, e ele vai amadurecer a nossa comida. A imagem que apresento a vocês é humana e pacífica.”
O filósofo utilitarista britânico Jeremy Bentham também advogou pelos animais até falecer em 1832. Afirmava que eles sofrem tanto quanto os seres humanos e qualificou a defesa da superioridade humana como uma forma de racismo. No entanto, foi somente na Inglaterra de 1847 que surgiu formalmente a primeira Sociedade Vegetariana, presidida por James Simpson e vinculada à Bible Christian Church.
Três anos depois, Sylvester Graham, inventor da popular indústria Graham Cracker, fundou nos Estados Unidos a Sociedade Vegetariana Americana. Ministro presbiteriano, Graham incentivava seus seguidores a levarem uma vida virtuosa pautada no vegetarianismo, na moderação e na abstinência, assim como já faziam no Oriente os seguidores do budismo, hinduísmo e jainismo. Em 1897, a pioneira Sociedade Vegetariana, sediada na Inglaterra, já contava com cinco mil membros.
No Brasil, um dos divulgadores do vegetarianismo era o jornalista e poeta paraibano Carlos Dias Fernandes, autor do livro “Proteção aos Animais”, de 1914. Na obra, Fernandes, que não era religioso, cita religiões e crenças que endossam o papel do ser humano como protetor dos animais e da natureza. Polêmico, chegou a discutir com profissionais de saúde da época que defendiam o consumo de carne. Talvez o maior exemplo tenha sido a sua rixa com o então conceituado médico José Maciel.
A seu favor, o poeta e jornalista tinha o médico higienista Flavio Maroja que publicou no jornal A União de 30 de agosto de 1916 um artigo intitulado “Hygiene Alimentar: Regimen Vegetariano e Regimen Carneo, confronto de opiniões, como penso a respeito”, que fala dos benefícios do vegetarianismo.
Em 26 de janeiro de 1917, Carlos Dias Fernandes comemorou a fundação da Sociedade Vegetariana Brasileira, sediada no Rio de Janeiro, e publicou matéria sobre o assunto. “Vai ganhando surto em todo mundo civilizado o regime vegetariano como solução prática do problema moral, economico e therapeutico dos povos. (…) Vegetarianismo quer dizer vida de accôrdo com a natureza”, registrou.
Em 1931, e de volta a Londres, o indiano Mahatma Gandhi ingressou no comitê executivo da Sociedade Vegetariana e deu um discurso argumentando que a alimentação livre de carne era uma questão de ética, não de saúde. Sem demora, surgiram discussões sobre o tratamento dado às galinhas e vacas leiteiras. Os debates foram transformados em artigos publicados no boletim informativo Vegetarian Messenger, dividindo opiniões.
Receosos com o que viria a ser o veganismo, muitos vegetarianos enviaram cartas queixosas à Sociedade Vegetariana. Eles entendiam a consistência moral e ética de se abdicar de todos os alimentos de origem animal, porém consideravam o estilo de vida como impraticável. Alegaram que por ser uma forma mais radical de vegetarianismo, seria impossível atrair novos adeptos, assim como seria difícil encontrar comida vegana em encontros sociais.
Em agosto de 1944, o marceneiro Donald Watson, secretário da Sociedade Vegetariana de Leicester, tentou garantir a criação de uma seção para publicação de artigos sobre veganismo. A proposta foi declinada pela entidade. Então, no início de novembro do mesmo ano, Watson reuniu cinco vegetarianos estritos no Attic Club, em High Holborn, Londres, para discutir sobre a elaboração de uma filosofia de vida que pudesse beneficiar muito mais os animais. Watson se incomodava com o fato de que muitos vegetarianos da época se alimentavam de ovos e laticínios.
Ele enfrentou forte oposição, mas perseverou. Também inventou um novo termo – vegan (vegano) – para se referir a quem não consome nenhum alimento de origem animal. Além de vegan, uma abreviação de “vegetarian”, entre os nomes sugeridos estavam “dairyban”, “vitan” e “benevore”. “Foi o início e o fim do vegetariano”, disse Donald Watson, fundador da Sociedade Vegana que tinha Elsie Shrigley como co-fundadora.
No início, em vez da pronúncia “vígan”, os adeptos começaram a pronunciar “víjan”. À época, o marceneiro criou o boletim informativo Vegan News, que poderia ser adquirido por uma moeda de dois pence. Na publicação, ele deixou claro qual era a pronúncia correta.
A primeira edição foi lida por mais de 100 pessoas, incluindo o renomado escritor irlandês e defensor do vegetarianismo George Bernard Shaw, que ao saber a verdade envolvendo a produção de leite e ovos, abdicou completamente do consumo. E o que ajudou Watson a popularizar o veganismo foi o fato de que 40% das vacas leiteiras da Grã-Bretanha contraíram tuberculose em 1943.
“Animais são meus amigos…e eu não como meus amigos. Enquanto formos os túmulos vivos dos animais assassinados, como poderemos esperar uma condição ideal de vida nesta terra? Quando um homem mata um tigre, ele chama isso de esporte, mas quando um tigre mata uma pessoa dizem que isso é ferocidade”, registrou Shaw em seu diário.
Em novembro de 1945, a Sociedade Vegana mudou o nome do boletim informativo de Vegan News para The Vegan. Com mais de 500 assinantes, eles publicavam receitas, notícias sobre saúde, classificados e uma lista de produtos livres de ingredientes de origem animal. Com a popularidade do veganismo, surgiram livros como “Vegan Recipes”, de Fay K. Henderson e “Aids to a Vegan Diet for Children”, de Kathleen V. Mayo.
Outra curiosidade é que somente em 1949 a Sociedade Vegana definiu com clareza os objetivos do veganismo, e por sugestão do teólogo e vice-presidente da entidade, Leslie J. Cross, vegano desde 1942. Ele sugeriu que a prioridade seria a luta pelo fim da exploração animal, no que diz respeito a alimentos, commodities, trabalho, caça e vivissecção.
Interessante também é o fato de que Cross, preocupado em oferecer opções aos veganos, fundou a Plantmilk Society em 1956, dando origem à produção de leite de soja, orchata, maionese vegana e barras de chocolate e de alfarroba sem ingredientes de origem animal. Mais tarde, sua indústria se tornaria uma das maiores distribuidoras de leite de soja do Ocidente.
No continente americano, a iniciativa pioneira foi da Sociedade Vegana dos Estados Unidos, fundada na Califórnia por Catherine Nimmo e Rubin Abramowitz em 1948. A princípio, eles se baseavam nas ações da inglesa Sociedade Vegana, inclusive distribuíam boletins informativos do The Vegan, antigo Vegan News. Em 1960, H. Jay Dinshah criou a Sociedade Vegana Americana (AVS), aliando veganismo e ahimsa, princípio ético-filosófico, muito comum no budismo e no hinduísmo, que consiste em não causar mal a outros seres vivos.
Em 1979, a Sociedade Vegana informou que, além da exclusão de todas as formas de exploração e crueldade, eles se dedicariam a promover o desenvolvimento e criação de alternativas sem uso de animais, beneficiando também o meio ambiente.
Com o crescimento do veganismo no mundo, a Sociedade Vegana instituiu em 1º de novembro de 1994 o Dia Mundial Vegano em comemoração aos 50 anos de fundação da entidade. No entanto o objetivo maior sempre foi promover a conscientização em torno da exploração animal. Atualmente a estimativa é de que há 250 mil adeptos do veganismo na Grã-Bretanha e dois milhões nos Estados Unidos. No Brasil não há dados sobre o número de veganos, mas, de acordo com informações da Sociedade Vegetariana Brasileira (SVB), 20 milhões de brasileiros se consideram vegetarianos.
Saiba Mais
Antes de falecer aos 95 anos, em 16 de novembro de 2005, Donald Watson concedeu uma entrevista ao seu amigo George Roger, argumentando que veganismo não se trata simplesmente de buscar alternativas para ovos mexidos ou um bolo de Natal. “É algo realmente grande, que desconhecíamos quando criamos o veganismo, uma filosofia criticada por muitos, mas sobre a qual ninguém tem nenhuma prova contra. Se você é vegetariano, saiba que falta apenas um salto para se tornar vegano”, enfatizou Watson.
A palavra vegan apareceu pela primeira vez em um dicionário em 1962. No Dicionário Ilustrado Oxford o termo era definido como um vegetariano que não consome manteiga, ovos, leite e queijo.
No século 19, Percy Shelley e Willam Lambe já defendiam que laticínios e ovos deveriam ser excluídos da alimentação vegetariana.
Referências
Wynne-Tyson, Jon. The Extended Circle. Paragon House; 1st American ed edition (1989).
Plutarch: Moralia, Volume IX, Table-Talk, Books 7-9. Dialogue on Love (Loeb Classical Library No. 425). Harvard University Press (1961).
Vangensten, Ove C.L. Fonahn A. H. Hopstock. Christiana: J. Dybwad. Leonardo da Vinci. Quaderni D’Anatomia, I-VI. Windsor Castle, Royal Library (1911-1916).
Montaigne, Michel de. Os Ensaios: Uma Seleção. Companhia das Letras (2010).
Fortes, Luis Roberto. Rousseau: o bom selvagem. 2º ed. – São Paulo: Humanistas: Discurso Editorial (2007).
Shelley, Mary. Frankenstein. CreateSpace Independent Publishing Platform (2015).
Shelley, Percy Bysshe. A Vindication of Natural Diet: Being One in a Series of Notes to Queen Mab (Disponível em ivu.org)
Bellows, Martha. Categorizing Humans, Animals and Machines in Mary Shelley ’s Frankenstein – pg. 6. University of Rhode Island (2009).
Williams, Howard. The Ethics of Diet. University of Illinois Press (2003).
Sena, Fabiana. A tradição da civilidade nos livros de leitura no Império e na Primeira República. João Pessoa, PB. Tese de doutorado. PPGL/UFPB (2008).
Sena, Fabiana. A imprensa e Carlos Dias Fernandes: o processo de legitimação como autor de livro didático. Educação Unisinos, vol. 15, núm. 1, enero-abril, 2011, pp. 70-78.
Henderson, Archibald. George Bernard Shaw: Man of the Century. N.Y. Appleton-Century-Crofts (1956).
Vegan Society – History. We’ve come a long way. Disponível em https://www.vegansociety.com/about-us/history
Suddath, Claire. Brief History of Veganism. Time Magazine. Disponível em http://time.com/3958070/history-of-veganism/
A History of Veganism. A Candid Hominid. Disponível em http://www.candidhominid.com/p/vegan-history.html
Davis, John. Were There Vegans In The Ancient World? Veg Source. Disponível em http://www.vegsource.com/john-davis/were-there-vegans-in-the-ancient-world.html.
Dia Mundial do Vegetarianismo: 8% da população brasileira afirma ser adepta do estilo. Disponível em http://www.ibope.com.br/pt-br/noticias/Paginas/Dia-Mundial-do-Vegetarianismo-8-da-populacao-brasileira-afirma-ser-adepta-ao-estilo.aspx
Roger, George. Interview with Donald Watson (2002). Disponível em http://www.abolitionistapproach.com/media/links/p2528/unabridged-transcript.pdf
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Lord Byron e a abstinência da carne
Desde que Eva comeu a maçã, a felicidade do homem depende em grande parte do jantar
Um dos poetas mais controversos do Reino Unido, o satírico George Gordon Byron, ou simplesmente Lord Byron, entrou para a história da literatura no século 19, depois de escrever seus dois poemas mais importantes – os longos Don Juan e Childe Harold’s Pilgrimage (Peregrinação de Childe Harold). À época, muita gente acreditava que Byron era um escritor que usava a literatura simplesmente para transmitir o seu cínico desprezo pela humanidade. No entanto, o que ele mais repudiava eram os excessos que ele presenciava nos jantares da burguesia britânica.
Durante os banquetes, não foram poucos os momentos em que o mais antirromântico dos românticos se revoltou ao testemunhar tantos animais mortos sendo servidos à mesa para satisfazer a glutonaria dos abastados. Sem cerimônia, se queixava diante de todos, exacerbando sua cólera muito bem harmonizada através da ironia:
Toda a História humana atesta,
que a felicidade para o Homem – o insaciável pecador! –
Desde que Eva comeu a maçã, depende em grande parte do jantar,
poetizou o britânico em um excerto de Canto XVII, de Don Juan.
No entanto, Lord Byron nem sempre foi vegetariano. Inclusive houve um período em que ele chegou a discutir com Percy Shelley, marido da escritora Mary Shelley, sobre suas contrariedades em relação ao vegetarianismo. Porém, mais tarde admitiu em carta à sua mãe que estava determinado a se livrar completamente dos alimentos de origem animal, uma decisão que pode ter sido influenciada por Shelley.
Segundo o poeta britânico, se abster de consumir carne iria proporcionar-lhe percepções mais claras, um novo entendimento da vida e do mundo. Tomada a decisão, Byron, que até então era considerado tão volátil como ser humano quanto artista, adotou em certo período um estilo de vida surpreendentemente frugal, com uma alimentação baseada em água e bolachas caseiras, preparadas a seu gosto. Das bebidas alcoólicas, apenas o vinho branco ainda o acompanhava. Como alguém que tencionava se afastar cada vez mais das armadilhas do ego e das insídias da vida em sociedade, o poeta escreveu em Childe Harold’s Pilgrimage:
Existe prazer nas matas densas
Existe êxtase na costa deserta
Existe convivência sem que haja intromissão no mar profundo e música em seu ruído
Ao homem não amo pouco, porém muito a natureza
No dia 25 de junho de 1811, de acordo com o livro Life of Lord Byron: with his letters and journals, de Thomas Moore, o poeta informou que havia se tornado vegetariano há muito tempo, e que peixe ou qualquer outro tipo de carne estava fora de cogitação: “Por isso estou estocando batatas, verduras e bolachas. Não estou bebendo nem vinho. Com relação à minha saúde, estou me sentindo bem. Recentemente tive malária, mas me recuperei rapidamente.”
Em 1818, quando hospedou Percy e Mary Shelley em sua casa na Vila Diodati, nas imediações do Lago de Genebra, na Suíça, e justamente num período chuvoso em que Mary, com a ajuda do marido, escreveu o esboço de Frankenstein, a dieta de Lord Byron era baseada em uma fatia fina de pão com chá no café da manhã; vegetais e uma ou duas garrafas de água com gás no jantar; e uma xícara de chá verde sem açúcar na ceia. Ao sentir fome, ocasionalmente ele mastigava tabaco ou fumava charutos. “Nenhum outro regime funcionou tão bem para mim até hoje como o meu chá com bolachas, mesmo quando me alimento com moderação”, declarou o poeta em seu diário em 1813.
Um dos problemas que mais o incomodava antes de aderir ao vegetarianismo era o excruciante aumento de fluidos na sua corrente sanguínea, provocando inturgescência vascular. E tudo isso era agravado se Byron consumisse alimentos de origem animal. “O remédio para a sua pletora é simples – a abstinência”, consta em registro pessoal de 28 de janeiro de 1817.
Ele demonstrou através de seus poemas e cartas que por trás de sua abstinência sempre houve uma motivação moral. Além disso, Lord Byron amava os animais, tanto que jamais viajava sem levar pelo menos cinco gatos. Um deles, chamado Beppo, foi inclusive homenageado com um poema homônimo. Outro de seus amigos inseparáveis era Boastwain, um cão da raça newfoundland que o inspirou a conceber Epitaph to a Dog em 1808.
Quando seu companheiro canino faleceu, Byron erigiu um monumento para eternizar a imagem de Boastwain em verso. E seguindo suas recomendações, assim que o poeta faleceu com apenas 36 anos em 19 de abril de 1824, em decorrência de imperícia médica após contrair febre reumática na Guerra de Independência da Grécia, sua família atendeu ao mais expresso dos seus pedidos: “Que o monumento em minha homenagem não seja maior do que o de Boastwain.” E assim foi feito.
Observações do autor
Há pesquisadores que creem que o vegetarianismo de Lord Byron era estimulado simplesmente por distúrbios alimentares. Independente do que o levou a adotar o vegetarianismo, a verdade é que Byron, com seu perfil antiacademicista, até hoje é uma figura labiríntica da literatura inglesa, o que significa que por mais que estudem ou escrevam a seu respeito, sempre vai perseverar a controvérsia.
Em síntese, o texto acima tem o propósito de apresentar a outra face de George Gordon Byron, que ficou mais conhecido pela fama que fizeram dele do que pela sua própria história. Ainda hoje sua imagem quase sempre é associada a orgias, relacionamentos carnais com centenas de mulheres e muitos relatos envolvendo bebedeiras, além de outras extravagâncias consideradas profanas no contexto do cristianismo.
Curiosidade
Lord Byron foi vegetariano por muito tempo e o mais intrigante é que o poeta John Polidori escreveu uma obra prosaica chamada The Vampyre, inspirada em alguns dias que ele conviveu com Byron e o casal Shelley na Suíça. E mais tarde, a história de Polidori inspirou Bram Stoker a escrever Dracula. Muita gente crê que Drácula é um personagem baseado em pesquisas sobre o conde Vlad Tepes, mas na realidade o início de tudo foi a inspiração que veio através de Byron. Sendo assim, o Drácula foi inspirado em um vegetariano.
Saiba Mais
Lord Byron, nascido em Dover, no Reino Unido, em 22 de janeiro de 1788, faleceu em Missolonghi, quando lutava contra os turcos pela independência da Grécia.
Byron tinha um defeito no pé direito, por isso mancava quando andava.
O vegetarianismo do poeta também foi inspirado no filósofo e matemático grego Pitágoras.
Referências
Moore, Thomas. Life of Lord Byron: with his letters and journals (1854). Disponível em archive.org.
Byron, Lord. Childe Harold’s Pilgrimage. CreateSpace Independent Publishing Platform (2009).
Byron, Lord. Don Juan. CreateSpace Independent Publishing Platform (2009).
McGann, Jerome. Byron, George Gordon Noel (1788–1824). Oxford Dictionary of National Biography. Oxford University Press (2013).
MacCarthy, Fiona. Byron: Life and Legend. Farrar, Straus and Giroux; First edition (2002).
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O vegetarianismo na literatura de Mary Shelley
“Não tenho que matar o cordeiro e a cabra para saciar o meu apetite”
A escritora britânica Mary Wollstonecraft Shelley, famosa pela criação do monstro de Frankenstein, um dos mais emblemáticos da literatura mundial, teve uma vida pautada pelo vegetarianismo. Quando decidiu escrever aquela que se tornaria sua grande obra-prima, a maior inspiração da autora não foi basicamente o mito grego do titã Prometeu, um defensor da humanidade que roubou o fogo de Héstia e presenteou os mortais, mas também o conceito de nobre selvagem, cunhado pelo filósofo suíço e defensor do vegetarianismo Jean-Jacques Rousseau.
“Mas considerai primeiro que, querendo formar o homem da natureza, não se trata por isso de fazer dele um selvagem e de relegá-lo ao fundo dos bosques, mas, envolvido em um turbilhão social, basta que ele não se deixe arrastar nem pelas paixões, nem pelas opiniões dos homens; veja ele pelos seus olhos, sinta pelo seu coração; não o governe nenhuma autoridade, exceto a de sua própria razão”, declarou o suíço em O Bom Selvagem.
Em primeiro lugar, a busca pelo autoconhecimento; depois o interesse pela linguagem e pelas convenções sociais. Seguindo essa premissa idealizada por Rousseau, Mary Shelley moldou um anti-herói vegetariano que nada mais é do que o ser humano em seu estado mais impermisto e natural. A maior prova disso é que ainda isento dos vícios da civilização, o monstro vive na floresta, onde se alimenta estritamente de bagas e oleaginosas, não de carne, já que ele não vê sentido nem necessidade em matar animais para se alimentar.
No século 19, embora o romantismo enquanto arte tivesse estreita relação com o vegetarianismo, a verdade é que fora dos círculos literários quase ninguém reconhecia ou falava sobre a abordagem vegetariana no livro Frankenstein. Na realidade, muita gente reconhecia as qualidades de Mary Shelley como escritora, mas menosprezavam seu estilo de vida.
Ao contrário de muitos autores que se tornaram vegetarianos ao longo da vida, ela teve a oportunidade de crescer em uma família que sempre simpatizou com o vegetarianismo, inclusive quase todos os amigos de seu pai William Godwin também eram vegetarianos. Assim, desde cedo, Mary foi incentivada a entender que o consumo de carne dependia do sofrimento animal.
Na juventude, depois de conhecer alguns dos maiores intelectuais que defendiam esse estilo de vida, a escritora começou a ler obras como An Essay on Abstinence from Animal Food: as a Moral Duty, do britânico Joseph Ritson e The Return to Nature, or, a Defense for the Vegetable Regimen, de John Frank Newton, precursores do veganismo, assim como William Lambe, de quem ela leu o livro Water and Vegetable Diet. Shelley também se inspirou em Plutarco, John Milton e nos textos em grego antigo e latim que abordavam o estilo de vida de Pitágoras, que era ovolactovegetariano.
Cercada por pessoas que não consumiam alimentos de origem animal, ela acabou se casando em 1816 com Percy Bysshe Shelley que, além de ter sido um dos mais importantes poetas românticos da Inglaterra, era um ativista vegetariano e também precursor do veganismo. O poeta lançou obras polêmicas como A Vindication of a Natural Diet e On the Vegetable System of Diet. No prefácio do primeiro, ele publicou um excerto do seu poema Rainha Mab:
Não mais agora
Ele mata o cordeiro que o observa
E terrivelmente devora sua carne mutilada;
Além do casal Shelley, outros românticos como Alexander Pope e Thomas Tryon ajudaram a promover o vegetarianismo na Europa. No entanto, nenhuma obra daquele período superou a popularidade de Frankenstein. Em uma das passagens do livro, a criatura se emociona ao dizer que sua comida não é a mesma dos homens:
“Não tenho que matar o cordeiro e a cabra para saciar o meu apetite. Bolotas e bagas são o suficiente para a minha alimentação. Minha companheira vai ser da mesma natureza que a minha, e vai se contentar com o mesmo que eu. Faremos a nossa cama de folhas secas; o sol vai brilhar sobre nós da mesma forma que brilha sobre os homens, e ele vai amadurecer a nossa comida. A imagem que apresento a vocês é humana e pacífica.” Ou seja, na essência, o monstro de Mary Shelley carregava em si a perfeição moral que faltava ao homem mediano, rendido aos excessos da ganância e da megalomania.
Embora haja controvérsias sobre até que ponto Mary Shelley foi vegetariana ao longo de sua vida, a verdade é que ela trouxe grandes contribuições para o vegetarianismo e, quem sabe, a maior seja a idealização de uma criatura desafortunada que desprezava o hábito humano de se alimentar de animais.
“Por que há de o homem vangloriar-se de sensibilidades mais amplas do que as que revelam o instinto dos animais? Se nossos impulsos se restringissem à fome, à sede e ao desejo, poderíamos ser quase livres. Somos, porém, impelidos por todos os ventos que sopram, e basta uma palavra ao acaso, um perfume, uma cena, para provocar-nos as mais diversas e inesperadas evocações”, escreveu Mary Shelley em Frankenstein, externando sua antipatia pela jactância e pelos caprichos do ser humano.
Saiba Mais
Mary Shelley nasceu em Londres em 30 de agosto de 1797 e faleceu em 1º de fevereiro de 1851.
Referências
Shelley, Mary. Frankenstein. CreateSpace Independent Publishing Platform (2015).
Shelley, Percy Bysshe. A Vindication of Natural Diet: Being One in a Series of Notes to Queen Mab (Disponível em ivu.org)
Bellows, Martha. Categorizing Humans, Animals and Machines in Mary Shelley ’s Frankenstein. Página 6. University of Rhode Island (2009).
Fortes, Luis Roberto. Rousseau: o bom selvagem. 2º ed. – São Paulo: Humanistas: Discurso Editorial (2007).
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Drácula, vegetarianismo e o homoerotismo de Bram Stoker
Embora o livro seja conhecido no mundo todo, ele não trouxe fortuna ou sucesso ao autor dublinense
Autor de três livros de contos, quatro livros de não ficção e 12 romances, o escritor irlandês Bram Stoker, contemporâneo de Oscar Wilde, sempre teve o seu nome associado à sua obra mais famosa – Drácula, publicada em 1897. Embora hoje o livro seja conhecido no mundo todo, a obra não trouxe fortuna ou sucesso ao autor dublinense. Nos seus últimos anos, ele ganhou tão pouco escrevendo que teve de recorrer ao Fundo Real Literário, segundo Paul Murray na biografia “From the Shadow of Dracula: A Life of Bram Stoker”, de 2004.
Bram Stoker encontrou um filão literário nas lendárias histórias de terror do século 18, quando contos sobre vampiros vieram à tona. Isso o motivou a trabalhar à sua maneira os mesmos elementos explorados previamente por Byron, Polidori, Goethe, Coleridge, Southey e Dumas. Na literatura inglesa, o primeiro romance sobre o tema foi “The Vampyre”, do escritor inglês John Polidori, lançado em 1819.
A história surgiu por acaso quando Polidori estava hospedado na residência de Lord Byron na Vila Diodati, nas imediações do Lago de Genebra, na Suíça. Como choveu muito ao longo de três dias, Byron e seus convidados – Polidori, Claire Clairmont, Percy Shelley e Mary Wollstonecraft Shelley decidiram passar o tempo contando histórias. Ao final, o desafio era escrever um conto baseado nas histórias aterradoras que compartilharam. Uma curiosidade é que Byron e o casal Shelley eram vegetarianos.
Após a experiência, Polidori escreveu em apenas três manhãs a sua novela vampiresca inspirada em Byron e na narrativa de “Fragment of a Novel”, de Byron, publicada em 1816. Naquele tempo, Lord Byron condenava ostensivamente os excessos da burguesia na matança e na comilança de animais. Reação que foi poetizada em um excerto de “Canto XVIII”, de “Don Juan”.
Já Mary Wollstonecraft, com a colaboração de Percy Shelley, produziu a partir daquele encontro a obra que se tornaria uma das mais influentes da literatura gótica – “Frankenstein“, de 1818. No livro, Mary moldou um anti-herói vegetariano que nada mais é do que o ser humano em seu estado mais impermisto e natural. A maior prova disso é que ainda isento dos vícios da civilização, o monstro vive na floresta, onde se alimenta estritamente de bagas e oleaginosas, não de carne, já que ele não vê sentido nem necessidade em matar animais para se alimentar.
Décadas mais tarde, Bram Stoker , influenciado por aquele encontro de escritores vegetarianos em 1818, na Vila Diodati, às imediações do Lago de Genebra, na Suíça, encontrou especialmente na história de Polidori, inspirada em Byron, uma inspiração para “Drácula”, de acordo com “Vampyres: Lord Byron to Count Dracula”, de Christopher Frayling, lançado em 1992. Isso significa que o famoso personagem da cultura popular mundial foi inspirado em um controverso poeta britânico que não se alimentava de animais, já que segundo a biografia “Life of Lord Byron: with his letters and journals”, de Thomas Moore, em uma carta com data de 1811, Byron afirmou que havia se tornado vegetariano há vários anos.
Há biógrafos que defendem que Bram Stoker também levou para a literatura as suas insatisfações pessoais, como a sua velada homossexualidade, também partilhada por Wilde. Possivelmente, além do Byron de Polidori em “The Vampyre”, “Drácula” foi influenciado pelo relacionamento complexo e conturbado de Stoker com o famoso ator inglês Henry Irving, de quem foi amigo e agente. Quem lê o livro com atenção percebe que “Drácula” manifesta uma transferência homoerótica, além de exercício de domínio e possessividade – como na passagem em que Drácula “defende” o personagem Jonathan Harker de três mulheres e afirma:
“Este homem pertence a mim!”, que, assim como inúmeras passagens, sustenta a perspectiva do vampiro de tê-lo numa relação de subserviência implicitamente sexual e existencial. O homoerotismo de “Drácula” não é nenhuma novidade entre pesquisadores da vida e obra de Bram Stoker. Barbara Belford escreveu a respeito na biografia “Bram Stoker: A Biography of the Author of Dracula,” de 1996; assim como Brigitte Boudreau em “Libidinal Life: Bram Stoker, Homosocial Desire and the Stokerian Biographical Project”, de 2011; e David K. Skal em “Something in the Blood: The Untold Story of Bram Stoker, the Man Who Wrote Dracula”, de 2016. Claro, além de outros diversos autores e pesquisadores.
Saiba Mais
Importante nome da literatura da era vitoriana, Bram Stoker nasceu em Dublin, na irlanda, em 8 de novembro de 1847 e faleceu no dia 20 de abril de 1912 em decorrência de sífilis terciária.
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A megalomania de Frankenstein
Em 1931, a Universal Pictures lançou a primeira versão cinematográfica de Frankenstein
Lançado em 1931 pela Universal Pictures, o clássico Frankenstein, do cineasta britânico James Whale, é um filme que gira em torno da ambição do homem em criar vida artificial, o que funciona também como uma crítica sobre a megalomania.
No filme, Henry Frankenstein (Colin Clive) é um ambicioso cientista que tomado por um anormal desejo de poder decide brincar de deus e cria um ser humano. A consequência é uma criatura feita com tecido, carne e órgãos de vários mortos que deveria ser o arquétipo da negação do fim, mas em função das deficiências físicas e psicológicas torna-se um símbolo degenerado da vida post mortem.
Em Frankenstein, o cineasta James Whale conseguiu transportar para o cinema toda a magia inventiva da obra que consagrou a escritora britânica Mary Shelley. A construção de cada personagem, desde Henry Frankenstein ao monstro interpretado pelo antológico Boris Karloff, foi concluída sob influência do cinema expressionista alemão, assim como o cenário que também remete ao romantismo gótico.
Tais referências podem ser observadas na saturação das sombras durante os momentos em que a pouca incidência de luz simboliza o triunfo da escuridão. Cena que ilustra isso é a de Henry Frankenstein e o seu ajudante Fritz (Dwight Frye), extasiados pelo inédito, procurando cadáveres frescos no cemitério, como se fossem deglutidos pelas trevas.
Já se tratando dos personagens, o mais emblemático é o monstro. Inapta a falar, a criatura é impelida a transmitir sensações e emoções por meio de expressões faciais, gestos e grunhidos que embora instintivos transmitem a essência do homem antes do processo civilizatório. Em vários momentos, mesmo privado de sua humanidade e sem saber quem realmente é, a criação de Frankenstein demonstra benevolência e desejo em ajudar, como se manifestasse uma certa consciência de outra vida.
A figura do cientista que luta contra as leis naturais da vida também é das mais inesquecíveis, graças ao paradoxo criado por Whale que confunde o espectador sobre quem seria realmente o monstro, criador ou criatura, já que toda criação representa a materialização de um anseio do inventor, mesmo disforme.
O filme considerado um dos maiores clássicos de horror de todos os tempos ainda traz no elenco mais alguns célebres atores dos anos 1930, entre os quais Mae Clarke, John Boles, Edward Van Sloan, Frederick Kerr, Lionel Belmore e Marilyn Harris. A trilha sonora é de Bernhard Kaun. Com um modesto orçamento de 262 mil dólares, Frankenstein arrecadou mais de doze milhões de dólares.