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Quando “dois olhos de fogo” brilharam na escuridão
O dia em que quatro missionários alemães se perderam nas matas virgens de Paranavaí
Em outubro de 1954, um artigo intitulado “Noch Ein Missionberich”, do frei alemão Alberto Foerst, da Ordem dos Carmelitas, foi publicado na edição número 10, ano 21, da revista alemã Karmel-Stimmen, de Bamberg, no estado da Baviera. Ao longo de quatro páginas, o missionário relata algumas experiências nas matas virgens de Paranavaí, no Noroeste do Paraná, onde dividiu bons e maus momentos ao lado dos freis Henrique Wunderlich, Burcardo Lippert e Adalberto Deckert.
No texto, Foerst conta que viajar por uma região em processo de colonização era muito complicado. Os mapas eram imprecisos e os menos precavidos podiam perder-se na mata por dias. “Costumávamos nos orientar pela bússola, mas nem sempre era possível evitar o erro. A nossa sorte é que de vez em quando encontrávamos um caminho já trilhado, facilitando o nosso trajeto”, explica.
Porém, certo dia, os freis Alberto, Henrique, Burcardo e Adalberto, como eram mais conhecidos em Paranavaí, ficaram com o jipe atolado em meio a uma floresta densa, habitada somente por uma rica fauna silvestre. Embora viajassem com picaretas, pás e outras ferramentas que auxiliavam em situações difíceis, de nada adiantou. Horas depois, veio a escuridão e tiveram de passar a noite na mata. “Não podíamos seguir a pé porque era uma área muito isolada e distante”, justifica.
Mesmo com uma espingarda ao alcance das mãos, os missionários não conseguiam se distrair da “noite tenebrosa” e especialmente escura, acompanhada de um “silêncio sinistro” que os mantinha em alerta. “Apesar de tudo, como o dia foi estafante, chegou um momento em que cochilamos. Só acordamos quando ouvimos as cobras fazendo ruídos nas ramagens e madeiras apodrecidas da floresta”, conta frei Alberto no artigo “Noch Ein Missionberich”, de 1954.
Não demorou muito e um grupo de macacos começou a gritar bem alto. Daquela escuridão, “dois olhos de fogo” brilharam em direção aos quatro missionários. Foi quando perceberam que estavam cercados por uma onça. “Ficamos assustados e os nossos corações dispararam. O medo era tão grande que podiam tirar nossa pulsação pelo dedinho do pé. A onça nos farejou e circulou o jipe por algum tempo”, relata.
Com dificuldades de raciocínio, se entreolhavam, crentes de que a espingardinha de chumbo fino seria inofensiva contra o selvagem animal. “Ela só riria de nós. Então decidimos ficar quietos, sem se mexer ou respirar alto”, continua. Aguardando a iminência de uma tragédia, os missionários foram salvos por uma eventualidade. Um macaco, debandado de seu grupo, saltou sobre uma imensa árvore que estava acima do jipe, chamando a atenção da onça.
“Ela saiu no encalço dele e respiramos aliviados. Se bem que não dormimos mais naquela noite e ficamos muito felizes quando amanheceu. É uma pena que não haja fotos do episódio”, lamenta. Pela manhã, os quatro aventureiros procuraram as chamadas “árvores elétricas” que ofereciam energia para equipamentos elétricos. A voltagem mais alta ficava nas copas e a mais baixa nas raízes. “Para conseguir uma boa voltagem era preciso pendurar nos galhos. A força da energia estava subordinada ao atrito provocado pelo vento no meio das folhas”, destaca Alberto Foerst.
Depois de usarem os barbeadores elétricos, os missionários se perguntaram o que fariam para sair daquela região desconhecida, pois tinham o compromisso de abençoar uma nova escola. Então Henrique Wunderlich pegou a sua gaita de boca e começou a tocar. “Logo apareceram índios [de etnia caiuá] de todos os lados, atraídos por aquela mágica melodia. O frei Henrique ainda tocou mais algumas músicas e pedimos que os nativos nos ajudassem. Deram a direção certa e conseguimos chegar ao nosso destino”, acrescenta.
No mesmo dia, foram convidados para conhecer uma interessante granja de galinhas. Em torno do aviário, havia uma grande e bela roça de girassóis que deixou os alemães admirados. “Nos falaram que serviam de alimento para as galinhas botarem ovos com mais gorduras saudáveis. Explicaram que os ovos saíam com uma camada extra que dispensava o uso de óleo na hora de prepará-los”, enfatiza.
“Tinha que desviar dos cipós pra não cair”
Gabriel Schiroff e as antigas histórias do distrito de Graciosa
Em 1951, quando o produtor rural Gabriel Schiroff se mudou com a família para Paranavaí, no Noroeste do Paraná, Graciosa ainda não era uma colônia. À época, ninguém chegava ao futuro distrito sem percorrer um precário e estreito carreador. “A gente tinha que se defender das perobas e desviar dos cipós pra não cair da carroceria do caminhão. Paranavaí era distrito de Mandaguari e lembro que sua área ia da beira do Rio Paranapanema até o Rio Ivaí”, relatou sorrindo o pioneiro que perdeu as contas de quantas vezes teve de descer do veículo para abrir caminho entre a mata virgem.
A viagem de Santa Catarina até Paranavaí foi difícil, mas Schiroff afirmou ter valido a pena porque as pessoas se divertiam e sabiam lidar da melhor forma possível com as adversidades. “Todo mundo vivia mais alegre e gostava mais de trabalhar. Se contar tudo que passamos nos anos 1950, muitos dos jovens de hoje em dia não acreditariam”, comentou. No mesmo período da chegada dos Schiroff, o distrito recebeu cerca de 50 famílias de outras regiões do Paraná e de Santa Catarina. A população era composta basicamente por sulistas de origem europeia, o que deu a colônia uma característica de comunidade germânica.
No início a Família Schiroff começou a se dedicar à lavoura. Em seguida construíram uma farinheira e decidiram comercializar em Paranavaí tudo que produziam. “Todo dia a gente vendia dois caminhões carregados de farinha de mandioca para a Casa Estrela, em Paranavaí”, contou Gabriel. A família também se empenhava na cafeicultura e na serraria a vapor, chegando a cortar madeira para toda a população do Distrito de Graciosa.
Francisca Schiroff, esposa de Gabriel, começou a lecionar no povoado em 1952, meses antes do médico José Vaz de Carvalho ser eleito como o primeiro prefeito de Paranavaí. “Logo vieram muitos padres da Alemanha pra Paranavaí, então surgiu a ideia de construir um seminário em Graciosa”, explicou o pioneiro. Nos anos 1950 a modesta economia do povoado era baseada na agricultura, bovinocultura e suinocultura, pois o comércio se concentrava no centro de Paranavaí, onde havia grande demanda por produtos orgânicos e de origem animal.
A população de Graciosa demorou para começar a lucrar com as produções porque a colônia se situava em meio à mata nativa, numa região ainda isolada e pouco visitada. Além disso, nem todos tinham condições de ir até a cidade vender os próprios produtos. “O bom era que tinha bastante madeira, então a gente trabalhava até aos domingos. Duas pessoas levavam metade de um dia para derrubar uma árvore com quase dois metros de tronco. Era preciso derrubar com machado porque não existia motosserra”, destacou.
Em 1952, quando as residências do distrito ainda eram de tábuas e pau-a-pique, Gabriel presenciou um pouso forçado de um avião que perdeu a rota de Londrina até Nova Esperança. “Ele rodou várias vezes aqui por cima, até que acabou o combustível e aterrissou em uma rua. Paramos o trabalho na mata e fomos lá ver se estava tudo bem. Só havia duas pessoas e ninguém se feriu. À tarde, arrumamos gasolina pra eles em Paranavaí. Depois o pessoal empurrou o avião e eles seguiram viagem”, contou. Na década de 1950 era muito comum aparecerem aviões perdidos em Paranavaí, normalmente porque o piloto errava o percurso. Mas em todas as situações, por mais difíceis que fossem, a população sempre conseguia auxiliar os viajantes.
Naquele tempo, sem a conscientização ambiental da atualidade, os moradores de Graciosa encaravam as onças como grandes ameaças. Por isso aconteciam caçadas frequentes e o desfecho quase sempre culminava na morte do animal. Um dia o falecido pioneiro José Venturini Schiroff tinha montado uma armadilha para pegar paca e quando voltou viu alguns rastros de onça. Mais adiante, encontrou os restos do seu cachorro comido pelo animal. Revoltado, chamou um vizinho, reuniu alguns cães caçadores e adentrou a mata. Em poucos minutos foi surpreendido pelos cachorros voltando correndo, arrepiados e latindo.
Mesmo sem os cães por perto, se aprofundaram na floresta até verem uma árvore um pouco torta. “A onça estava lá em cima se preparando para dar o bote. Meu irmão e os dois vizinhos deram três tiros. A acertaram e ela caiu morta. Era uma onça pintada de mais de 80 quilos”, revelou Gabriel Schiroff.
Observação do Autor
Em 2006 e 2007, tive a oportunidade de conversar diversas vezes com o pioneiro e produtor rural Gabriel Schiroff, que sempre foi muito atencioso não apenas em me conceder longas entrevistas no Sítio Nossa Senhora Aparecida, como também me mostrando todo o acervo histórico preservado pela família desde os tempos da colonização (há inclusive arquivos que datam das décadas de 1900 e 1910). Gabriel e a esposa, a pioneira e professora Francisca Schiroff, são importantes personagens de Paranavaí e de Graciosa.
Pesquisando sobre história regional desde 2006, e entrevistando centenas de pessoas, posso acho justo afirmar que o acervo particular da Família Schiroff sobre a história de Paranavaí é um dos maiores já vistos. A relação cultivada com o passado, a partir dos mais diversos tipos de registros, demonstra não apenas um grande amor dos Schiroff pelas coisas desta terra, mas também um anseio de preservar e valorizar a identidade local. Infelizmente o pioneiro Gabriel Schiroff faleceu em 27 de julho de 2012 em decorrência de graves problemas de saúde. No entanto deixou um legado de muitas histórias que enaltecem a bravura daqueles que aqui chegaram nos tempos mais inóspitos.
A perspectiva alemã sobre Paranavaí
“Havia enormes plantações, prados, pastagens, tudo interrompido por grandes florestas”
O padre provincial alemão Jacobus Beck veio a Paranavaí, no Noroeste do Paraná, em fevereiro de 1952 para conhecer o trabalho do frei Ulrico Goevert, responsável pela Paróquia São Sebastião. Na então colônia, Beck se surpreendeu e se identificou com alguns costumes. No mesmo ano, a experiência de três semanas foi registrada em várias edições da revista alemã Karmelstimmen, de Bamberg, no Estado da Baviera.
A curta passagem de Beck não permitiu que ele aprendesse a língua portuguesa. Por isso, pode-se dizer que o frei alemão está entre os padres germânicos que vieram a Paranavaí nos anos 1950 e não tiveram tempo de ter um profundo contato com a cultura dos moradores da colônia, fossem brasileiros ou estrangeiros. O fato fato foi o diferencial nos artigos publicados na Karmelstimmen, sob o título de “Meine Reise Nach Brasilien“.
Era um sábado, 9 de fevereiro de 1952, quando Jacobus Beck sobrevoou o Noroeste do Paraná. Observou ao longe os campos cortados por imensos rios. “Havia enormes plantações, prados, pastagens, tudo interrompido por grandes florestas. Mas foi só quando estávamos na região de Paranavaí que vi a mata virgem”, afirmou o alemão, acrescentando que tudo era tão belo que dava a impressão de que o céu se curvava diante do avião. Por volta do meio-dia, o padre se deparou com a colônia composta por um sem número de pequenas casas de madeira.
Logo o avião pousou no antigo Aeroporto Edu Chaves, atual Colégio Estadual de Paranavaí (CEP), ladeado por espessa mata primitiva. De lá, Beck pegou uma carona com o frei Ulrico Goevert em um jipe estadunidense. Foram para o centro da colônia, onde viviam mais de cinco mil pessoas. “Não era uma cidade ao modelo europeu com casas de pedras e ruas asfaltadas, mas também não lembrava nossas aldeias. As residências eram bem simples e remetiam às nossas barracas de feira. As vias pareciam os caminhos alemães que davam acesso aos areais”, comentou frei Jacobus.
O que chamou a atenção do alemão na Colônia Paranavaí foi a ordem e a limpeza, além da facilidade em se adquirir bens de consumo. De acordo com Beck, o povoado contava com muitos locais de lazer, carros e caminhões. “Isso já me lembrou a Alemanha, o tráfego dos veículos, os barulhos dos que vinham e dos que iam pelas ruas esburacadas”, frisou, rememorando que em 1952 três novas casas eram construídas por semana em Paranavaí. O padre também percebeu que a agricultura na colônia era voltada principalmente para a produção de café, algodão, arroz e milho.
“A terra de Paranavaí era muito fértil porque o solo era virgem”
Jacobus Beck estranhou o fato de não ter encontrado batata no povoado, um dos principais alimentos da culinária germânica. “Em Paranavaí se consumia a mandioca, uma hortaliça de raiz grossa que tem gosto e uso equivalente ao da batatinha”, avaliou o alemão que se surpreendeu com o tamanho do gado bovino criado na colônia, bem maior do que os animais alemães.
Nas passagens pelos pomares locais, entre as frutas tropicais que Beck experimentou e aprovou estavam banana, abacaxi, limão e figo. “A terra de Paranavaí era muito fértil porque o solo era virgem. Estava sendo trabalhado pelas mãos humanas pela primeira vez, então tinha uma umidade inacreditável. Apesar do calor tropical, chovia muito e acho que a proximidade com muitos rios e riachos ajudava”, enfatizou.
De acordo com o padre, o solo e as condições climáticas eram os principais fatores que atraíam tanta gente a Paranavaí. Havia brasileiros de outras regiões, europeus e japoneses. “Não cheguei a presenciar nenhum caso de racismo. Acho que todos viviam pacificamente”, destacou o frei que estranhou a maneira como a população local o cumprimentou, com abraços e tapas nas costas, embora admitiu que se acostumou.
Na Casa Paroquial, no quarto onde Jacobus Beck foi hospedado, o padre imaginou que encontraria janelas com vidraças e cortinas, ao melhor estilo alemão. “Foi uma procura em vão. Só havia uma grande abertura na parede e que era fechada à noite com janelas feitas de tábuas. Dormia na própria sacristia, com morcegos e camundongos “, ressaltou em tom bem humorado.
A hospitalidade dos moradores estava entre as melhores lembranças do frei. Segundo Beck, o que um tinha dividia com o outro. Além disso, os convidados de uma festa eram sempre tratados com muito carinho e atenção. “É claro que a maioria tinha pouco a oferecer, mas caso o agraciado não aceitasse, isso era entendido como uma ofensa”, observou.
“Ficamos com o jipe quase dependurado em muros de pedras”
À época, os padres eram vistos como autoridades de suma importância, tanto que por onde passavam ficavam rodeados de pessoas, como numa feira, na analogia de Beck ao perceber que a figura do vigário era muito estimada pela população. Até mesmo em casos de dores de dente, as pessoas procuravam o padre para dar uma solução ao problema ou então ofertar uma bênção.
Nas muitas vezes que percorreu as estradas de Paranavaí, achou o trânsito bastante intenso, até mesmo nas estradas por onde jipes e caminhões trafegavam dia e noite. “Isso ocorria porque muita gente era levada para as fazendas na mata virgem”, justificou.
À revista alemã, Jacobus Beck discorreu sobre um episódio em que foram até a Fazenda Santa Lúcia (situada em área que hoje pertence a Marilena) pela estrada da Água do 14, entre Piracema e Guairaçá, e tiveram de percorrer dezenas de quilômetros de mata a bordo de um jipe. “Nas subidas e descidas, muitas vezes ficamos com o jipe quase dependurado em muros de pedras. Chegamos a atravessar rios com o veículo. Encontramos animais selvagens, como répteis, e muitas plantações”, confidenciou o padre que enganou uma cascavel de cinco anos, com um metro e meio de comprimento, e cortou-lhe o guizo de cinco anéis para levar de lembrança à Alemanha.
Naquele tempo, às imediações do Rio Paraná, viviam um tenente e um pelotão de soldados do Exército Brasileiro dispersos por pequenas casas de madeira. Com eles, frei Ulrico e frei Jacobus tomaram chimarrão. O grupo era responsável por controlar as navegações fluviais, evitando contrabandos de produtos enviados à Argentina.
Curiosidades
Em artigo à revista alemã Karmelstimmen, Jacobus Beck escreveu que a mata primitiva que circundava o Rio Paraná era a maior floresta virgem do Brasil.
Nos anos 1950, por causa das dificuldades de tráfego, o avião era o meio de transporte mais usado pela população de Paranavaí, superando caminhões, jipes e carros.
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O sonho de Carlos Faber
Fundador da Casa Faber acreditou no progresso de Paranavaí
m 1944, o pioneiro catarinense Carlos Faber, aos 54 anos, cruzou a mata primitiva do Noroeste Paranaense para abrir uma das primeiras casas de comércio de Paranavaí. Embora viveu aqui inúmeras dificuldades, o fundador da Casa Faber resistiu a tudo por acreditar em um sonho, o progresso da cidade.
Antes de falecer, em 30 de junho de 1993, aos 103 anos, Faber ainda encheu os pulmões de ar e disse: “Paranavaí é uma cidade muito boa e bonita. Tenho certeza que vai crescer mais ainda.” Para entender o amor do catarinense pela cidade é preciso conhecer a história do pioneiro.
Carlos Faber nasceu em Tubarão, interior de Santa Catarina, em 30 de maio de 1890. Na juventude, empreendeu muitas viagens pelo sertão catarinense e interior do Rio Grande do Sul. Perdeu as contas de quantas vezes cruzou mares a bordo de uma canoa, obstinado em conhecer as novas cidades que se formavam.
O pioneiro se mudou para o Norte do Paraná ainda jovem e fixou residência na Gleba Roland, hoje Rolândia. Lá, abriu uma casa de comércio que ele mesmo abastecia. Saía à noite ou de madrugada a pé para buscar mercadorias em Londrina. Voltando para casa, atravessava a mata carregando mais de 40 quilos de produtos nas costas.
Aos 54 anos, em 1944, Carlos Faber ainda ostentava o mesmo espírito de aventureiro da mocidade. Foi colocado à prova em Londrina quando conheceu o jovem agrimensor Ulisses Faria Bandeira que lhe falou sobre a Fazenda Brasileira, atual Paranavaí. “Resolvi me aventurar pelo mato cortado por umas picadinhas.”
A viagem à Brasileira durou cinco dias, parte do trajeto foi percorrido a pé e o restante a bordo de uma velha jardineira da Viação Garcia que trazia mais duas pessoas. O ônibus fazia o trajeto uma vez por semana. “Em Maringá, dormi num rancho de palmito. Lembro que perto tinha duas casas velhas. Maringá era praticamente isso”, frisou o catarinense.
A surpresa veio depois com os estreitos picadões quase engolidos pela mata virgem. O motorista da jardineira tinha de desviar da vegetação que insistia em cobrir a estrada – galhos quase atravessavam as janelas do ônibus. “Lembro que a picadinha era tão fechada que para todos os lados se via onça, veado, cateto e passarinhos de todas as espécies”, afirmou Faber, que em Paranavaí se deparou com um universo de mato bruto, antigos cafezais e ranchos velhos. Um era de propriedade do pioneiro Sebastião Freitas.
Dias depois, o comerciante voltou para Rolândia e relatou a mulher, Hulda Faber, tudo que viu. “Ela concordou em experimentar o lugar, então viemos de mudança e deixamos os filhos lá”, revelou. A viagem, dessa vez de caminhão, durou dois dias e meio, pois o solo arenoso fazia o veículo atolar com facilidade, obrigando o catarinense a ajudar o motorista a empurrá-lo.
Em Paranavaí, o casal foi muito bem recebido pelo administrador da colônia, Hugo Doubek. “Quando cheguei percebi que não tinha lei, e só duas famílias de colonos viviam aqui, os outros moravam nas redondezas”, salientou o pioneiro que em 18 de junho de 1944 abriu uma casa de comércio.
A amizade com o Capitão Telmo Ribeiro
A Casa Catarinense, que mais tarde recebeu o nome de Casa Faber, se situava onde é hoje o Banco do Brasil. Era um comércio de Secos e Molhados, onde Carlos Faber comercializava tecidos, cereais, ferragens e muitos outros produtos. “Meus primeiros clientes foram Heitor Barreiro, Telmo Ribeiro e Vendolino Schueroff. Depois, vendi bastante pro pessoal do Governo do Estado que abria os picadões”, disse o homem que chegou à colônia com um capital de 300 mil réis.
Logo a Casa Faber se tornou referência comercial na Colônia Paranavaí. Pioneiros se recordam que toda a população do Distrito de Graciosa se deslocava até o comércio do catarinense para comprar tecidos. “Antes eu saía pouco da loja porque de 1944 a 1946 houve muitos tiroteios que acabaram em mortes”, disse Faber que em 1949 pensou em deixar Paranavaí quando soube do progresso de Maringá e Londrina.
De acordo com o pioneiro, o comércio estava falido, pois a população local parou de crescer. Além disso, os ônibus chegavam a Paranavaí no máximo três vezes por mês. “Isso aconteceu porque a estrada era muito ruim”, assinalou. Para piorar, naquele tempo a maleita foi a doença que mais atingiu a comunidade. Como não havia farmácia, os moradores buscavam remédios no escritório do administrador da colônia, Hugo Doubek.
Apesar do período de descrença, Carlos Faber resistiu às dificuldades motivado por um sonho. Acreditou no progresso local enquanto muitos, já desiludidos, partiram de Paranavaí. “Outros comerciantes também acreditaram, como João Machado, José de Oliveira, João de Barros e Severino Colombelli. Tudo isso quando as ruas eram abertas a mão, no machado”, ressaltou.
O pioneiro catarinense era amigo de um dos homens mais controversos da história local, o Capitão Telmo Ribeiro. Carlos Faber o considerava um bom homem, com o qual sempre podia contar. “Costumava me oferecer ajuda, mas nunca precisei”, justificou. Aos domingos, o comerciante e o filho Henrique iam até a residência de Telmo Ribeiro, onde passavam a tarde toda conversando. “Ele também aparecia em minha casa para tomar chimarrão”, complementou.
Saiba Mais
Em 1995, o vereador Nivaldo Mazzin criou o Projeto de Lei 59 que deu a uma via de Paranavaí o nome de Carlos Faber em homenagem ao pioneiro. Vale lembrar também que o catarinense recebeu o título de Cidadão Honorário de Paranavaí.
Carlos e Hulda Faber tiveram nove filhos: Henrique, Érico, Carlos Frederico, Frida, Guerta, Adélia, Erna, Hilda e Marta.
Curiosidade
Carlos Faber construiu a primeira casa de alvenaria de Paranavaí, em frente à Praça Dr. Sinval Reis, conhecida como Praça da Xícara.
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O avião que caiu na mata noroestina em 1947
A queda do teco-teco nas imediações do Rio Ivaí quase custou a vida de dois jovens
Em 1947, a região Noroeste do Paraná foi cenário de um acidente aéreo que quase terminou em tragédia nas imediações do Rio Ivaí. À época, o fato chamou muita atenção e sensibilizou a população de Paranavaí que se uniu para orar e procurar as vítimas.
Naquele ano, dois jovens de Cafelândia, na mesorregião de Bauru, interior de São Paulo, filhos de um conhecido produtor rural, deixaram a cidade natal em um avião monomotor do tipo teco-teco e vieram em direção ao Paraná para fechar uma negociação de produção de café.
Durante a viagem, pouco tempo depois entrarem no Paraná, foram surpreendidos pelo mau tempo, fortes correntes de ar frio que faziam com que o veículo balançasse bastante. Como o avião era relativamente leve, os rapazes não conseguiram manter a estabilidade por muito tempo, nem encontrar um local para pousar, já que estavam em área de mata primitiva próxima ao Rio Ivaí.
Não demorou muito, o temporal se intensificou e o frágil teco-teco foi ao chão, levando junto os dois passageiros. Dias mais tarde, a população de Paranavaí foi informada que aconteceu um acidente aéreo e dois jovens estavam desaparecidos. “Eu rezei muito por eles”, disse a pioneira Inez Colombelli em entrevista à Prefeitura de Paranavaí décadas atrás.
Houve muita comoção na cidade. Enquanto alguns se voluntariavam para dar início a busca e salvamento, outros não acreditavam na possibilidade dos rapazes terem sobrevivido. “Naquele tempo, um acidente de avião era como uma coisa do outro mundo. Quando alguém falava disso, a maioria dava a morte como certa”, comentou o pioneiro cearense João Mariano.
Mesmo assim, Inez e muitas outras pioneiras de Paranavaí oravam todos os dias pela salvação dos dois jovens. De acordo com a senhora Colombelli, as preces foram atendidas, pois 17 dias após a queda do avião os rapazes chegaram a Paranavaí. Estavam exauridos e famintos, mas felizes por verem pessoas depois de tanto tempo. “Quando apareceram no povoado, estavam barbudos e com as roupas todas rasgadas”, relatou o pioneiro catarinense Carlos Faber.
Os sobreviventes foram bem recebidos pela comunidade. No mesmo dia, enquanto alguns se preocupavam em oferecer um local de descanso e alimentá-los, outros trataram de entrar em contato com a família das vítimas em Cafelândia. O mais surpreendente é que ninguém estava gravemente ferido. O que garantiu a sobrevivência dos dois jovens foi a rica vegetação da região, principalmente as árvores que amorteceram o impacto da queda do monomotor.
Segundo os sobreviventes, dificilmente estariam vivos se o teco-teco caísse diretamente no solo. O que também chamou a atenção é que a mata primitiva do Noroeste do Paraná era conhecida por ser habitada por muitos animais selvagens. Os rapazes relataram que quanto a isso não enfrentaram nenhum perigo. Por precaução, sempre paravam para descansar quando anoitecia, normalmente em locais altos e de boa visibilidade. A alimentação era improvisada com frutos, até mesmo desconhecidos. Foi o risco que correram para garantir a sobrevivência.
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Um crime sem solução
Mulher foi assassinada na propriedade onde construíram a Escola Elza Caselli
Nos anos 1950, muitos migrantes chegavam a Paranavaí, no Noroeste do Paraná, sem qualquer documento de identificação. Então quando acontecia algum homicídio era muito difícil reconhecer a vítima ou criar uma lista de suspeitos. Dependendo da situação, o caso sequer era solucionado. Exemplo foi o assassinato de uma mulher na propriedade onde foi construída a Escola Municipal Professora Elza Grassiotto Caselli.
Certo dia, uma criança que deixou o Ceará e se mudou para Paranavaí com a família estava guiando o gado pelas imediações de uma área erma e silvestre. Ao sentir um mau cheiro que vinha do matagal logo em frente, o garoto, mesmo curioso, não teve coragem de adentrar a mata. Quando chegou em casa contou ao irmão mais velho e pediu que fossem juntos até lá para descobrir a causa de tanto odor.
Segundo pioneiros, à época, o lugar ainda estava coberta por mata virgem, o que justificou o medo do garoto em entrar no local sozinho. Depois de caminharem dezenas de metros, os dois irmãos viram um cadáver já em estado avançado de decomposição. O corpo estava irreconhecível e só foi possível saber que era uma mulher por causa das roupas.
Não havia nenhum documento de identificação junto ao cadáver, somente inúmeras garrafinhas de fortificante Biotônico Fontoura. Hipoteticamente, a mulher era uma jovem migrante de origem humilde que veio a Paranavaí em busca de melhores condições de vida. O corpo foi encontrado poucos dias depois do crime. Suspeita-se que a moça sofreu assédio, não cedeu e acabou assassinada.
Infelizmente, a mulher foi tratada como indigente e logo a polícia desistiu das investigações. O caso jamais foi solucionado. A partir desse assassinato, a população local se uniu e tomou a iniciativa de exigir que todos os moradores de Paranavaí portassem documentos, o que era raro numa época em que muita gente negociava apenas com a garantia da palavra.
Entretanto, quem não concordasse em tirar os documentos não poderia fixar residência na cidade. Anos depois, com o desenvolvimento de Paranavaí, o matagal que um dia serviu como palco de um crime contra uma jovem migrante foi derrubado, dando espaço a Escola Municipal Professora Elza Grassiotto Caselli, no Jardim Farroupilha, nas imediações da “Rodoviária Nova”.
Saiba Mais
O garoto que encontrou o corpo da jovem assassinada é irmão do pioneiro Joaquim Ferreira.
João Franco: “Ficamos no mato por mais de vinte anos”
Pioneiro chegou a Paranavaí quando a colônia era coberta por mata virgem
Em 1944, havia tanta vegetação nas imediações da Fazenda Brasileira, atual Paranavaí, no Noroeste do Paraná, que a mata virgem cobria toda a colônia. Tudo tinha de ser improvisado, até mesmo estradas e pontes. “Ficamos no mato por mais de vinte anos”, afirmou o pioneiro paulista João Silva Franco.
Franco conta que deixou a família no interior de São Paulo quando decidiu conhecer a Brasileira. Somente depois trouxe a mulher e a filha. Quando chegou a futura Paranavaí, antes de fixar residência, acampou onde é hoje a Praça dos Pioneiros. “Lá, naquele capoeirão que cobria os cafezais, ficamos 16 dias queimando lata. Foi assim até comprar uma terrinha pra fazer um ranchinho de colonião e sapé, tempo em que só havia movimento de carroças e cavaleiros”, declarou o pioneiro.
Em 1944, o ponto preferido dos peões e outros migrantes era uma praça localizada entre as Ruas Minas Gerais e Manoel Ribas. “Uma espécie de boca maldita”, sentenciou o pioneiro Oscar Geronimo Leite em entrevista ao jornalista Saul Bogoni há algumas décadas. Até aquele ano, não havia mais que 30 casas em Paranavaí, todas feitas de tabuinhas, e muitas estavam desocupadas há mais de dez anos, quando a Companhia Brasileira de Viação e Comércio (Braviaco) foi expulsa do Distrito de Montoya, após a Revolução de 1930.
“Até mesmo uma grande serraria que ficava no fundo de um buracão no Jardim São Jorge foi abandonada”, lembrou João Franco, referindo-se ao empreendimento fundado em 1929 pela Braviaco. Ainda em 1944, o pioneiro comprou uma propriedade na “Água do 22”, no Distrito de Graciosa. Enfrentou todas as dificuldades que atingiram Paranavaí nos anos 1940 e 1950; desde problemas com golpes, tempestades, animais silvestres, falta de higiene, doenças e até escassez de alimentos.
“Tudo que aconteceu aqui nós vimos ao vivo. Os contratantes judiavam do povo. Queriam que trabalhasse sem direito a nada. Na hora de pagar, eles batiam demais e se teimasse era morto e jogado no rio”, desabafou. À época, para ampliar o tráfego de pessoas, animais e veículos, os pioneiros abriram picadões. O trabalho era bem simples. Um tratorista apenas empurrava o mato para o lado.
As pontes eram improvisadas com coqueiros derrubados, uma alternativa à morosidade do poder público em enviar profissionais qualificados para a construção de pontes e vias. “Trabalhei muito na abertura de estradas. Desmatei de Paranavaí até Capelinha [Nova Esperança]”, ressaltou Franco que sobreviveu na Brasileira porque tinha resistência para viver em lugares isolados, mesmo sob precárias condições. O pioneiro já tinha trabalhado como foiceiro, enxadeiro, serrador e lavrador.
Em 1940, de acordo com o pioneiro mineiro José Antonio Gonçalves, muitos dos migrantes que chegavam à Brasileira eram peões. “Foi assim até 1945, quando o Governo do Paraná parou de dar terras”, enfatizou o pioneiro paulista José Ferreira de Araújo, conhecido como Palhacinho. Um ano depois, com o crescimento populacional, as terras da Colônia Paranavaí começaram a ser bem valorizadas.
Segundo o pioneiro paulista Paulo Tereziano de Barros, só a partir de 1946 surgiu a preocupação em nominar as ruas e avenidas da cidade. “Em 1948, chegava gente aqui todos os dias. Era como a corrida do ouro”, avaliou o pioneiro paulista Salatiel Loureiro. Entretanto, a erosão hídrica já era um problema para o solo do arenito Caiuá nos anos 1940, o que foi se intensificando décadas depois. Migrantes que não tinham adquirido terras aproveitavam as áreas sem donos, como os buracões, para plantar feijões.
Em 1954, o desmatamento ganhou força em Paranavaí, conforme palavras do frei alemão Henrique Wunderlich em carta enviada à revista alemã Karmelstimmen. O padre alemão Alberto Foerst fez coro às palavras de Wunderlich. “O mato era derrubado e ficava no chão algumas semanas até ser queimado”, confidenciou no artigo “Die Stimme Der Mission”, publicado em outubro de 1954 na Karmelstimmen.
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A oncinha de estimação
Animal foi criado em cativeiro até fazer a primeira vítima
Na década de 1950, os padres alemães que viviam em Paranavaí, no Noroeste do Paraná, foram presenteados com um filhote de onça. O animal foi criado em cativeiro até o dia que fez a primeira vítima.
No início de 1953, um caçador de Paranavaí deu aos freis alemães da Ordem dos Carmelitas um filhote de onça-pintada em agradecimento aos serviços prestados à comunidade. De acordo com o padre Henrique Wunderlich, era um animalzinho muito bonito, mas que já demonstrava forte comportamento selvagem. “Triturava tudo que tocava com as garras”, afirmou Wunderlich em uma das cartas enviadas à revista alemã Karmelstimmen em 1953.
A jovem onça vivia confinada numa jaula revestida em madeira. À época, o presente exótico foi muito bem recebido pelos padres. Só que o animal cresceu e, de acordo com sua natureza, se tornou agressivo. “Nosso cachorrinho era tão bobo e curioso que foi olhar no interior da jaula e levou uma patada. Em seguida, a onça o puxou para dentro e o devorou”, relatou frei Henrique.
Quando completou um metro de comprimento, o animal se tornou muito perigoso. Adquiriu o hábito de morder a madeira que revestia a jaula. Naquele ritmo, logo a onça escaparia e poderia fazer outras vítimas. “Tivemos que nos desfazer do animal. Não dava nem para aguentar o mau cheiro”, declarou Wunderlich que acompanhado dos padres germânicos Alberto Foerst, Burcardo Lippert e Adalbert Deckert viveu muitas aventuras na mata virgem de Paranavaí.
O abraço do tamanduá
Em viagens noturnas pelos picadões, os freis confundiam os enormes cipós, que quase se entrelaçavam aos jipes, com as mais diversas espécies de cobras. “Lembro quando um tamanduá obstruiu a estrada. É um animal que se torna perigoso quando consegue abraçar uma pessoa com suas garras enormes”, relatou Alberto Foerst no artigo “Noch ein Missionsbericht“, publicado na revista alemã Karmelstimmen em outubro de 1954.
Segundo o padre, o tamanduá-bandeira estava estirado no centro da estrada, fingindo que dormia. Quando os freis se aproximaram, o animal se levantou e os perseguiu. Um dos missionários usou um pau para ludibriar o tamanduá. Quando o bicho abraçou o pedaço de madeira, entraram no jipe e partiram.
Os “olhos de fogo” na escuridão
Inesquecível também foi o dia em que o jipe dos missionários atolou na estrada. Como era muito tarde, decidiram passar a noite na mata. O problema é que havia um silêncio perturbador naquela madrugada tão escura que mal conseguiam enxergar árvores a poucos metros de distância. “Algo medonho aconteceu. As cobras fizeram ruídos entre ramagens e madeiras apodrecidas na floresta. Ao mesmo tempo, os macacos gritaram terrivelmente. Aí veio o pior!”, frisou frei Alberto.
Na escuridão, viram duas luzes, os “olhos de fogo” de uma onça, conforme palavras dos missionários que na hora não esconderam o medo. Enquanto o animal farejou o jipe, os padres se calaram, seguraram até a respiração. O que os livrou da felina foi um macaco que passou perto do jipe gritando e saltando sobre os galhos. “A onça o viu e seguiu no encalço”, lembrou Foerst.
Em outra oportunidade, quando percorriam a mata, os freis quase pisaram sobre uma serpente listrada nas cores preta, vermelha e branca. Ao verem o réptil, ficaram imóveis. “Ela também ficou e depois descobrimos que se pisássemos na cabeça dela, a cobra ergueria o rabo para inocular o veneno”, enfatizou frei Alberto. Para se livrar do réptil que mais tarde apelidaram de “cobra nazista”, os padres se dispersaram, deixando-a perdida, sem saber quem atacar primeiro. Aproveitaram a distração do animal e subiram em uma árvore. A cobra então desistiu e foi embora.
A caça à onça em Cidade Gaúcha
O dia em que Fernandez e Euclides quase foram mortos por uma onça
Em Cidade Gaúcha, no Noroeste do Paraná, os pioneiros Fernandez e Euclides decidiram caçar uma onça que entrou no chiqueiro de Fernandez e comeu alguns porcos em 1957. O que os caçadores não esperavam é que a onça, matreira como era, não cairia tão fácil na emboscada.
Nos anos 1950, Cidade Gaúcha, que surgiu para abrigar migrantes do Sul do Brasil, era um pequeno vilarejo envolto por mata primitiva. Um lugar onde a derrubada de mata e as queimadas faziam parte do cotidiano. Em meio a tal cenário já despontavam as onças, animal que foi considerado o mais perigoso da fauna noroestina.
Na descrição dos pioneiros de Cidade Gaúcha, eram “enormes gatos” com um “miado” díspar e grave que ressoava pelo povoado durante a noite e podia ser ouvido a quilômetros de distância. Chamava atenção pela estatura, pois grande e pesada ainda conseguia ser veloz. O animal se pendurava nos galhos das árvores mais altas e lá ficava imóvel por horas, até o momento oportuno de dar o bote.
Os pioneiros Euclides e Fernandez relataram décadas atrás que era muito complicado matar uma onça. No entanto, o juízo sempre cedia à cólera quando um colono chegava em casa e se deparava com alguns animais mortos ou levados pela felina. Exemplo foi o colono Fernandez que perdeu parte da criação de porcos para a onça. Irascível, o pioneiro previu o retorno do animal conhecido por dizimar criações de suínos, bovinos e equinos.
Fernandez decidiu caçá-la antes que levasse o que sobrou da criação. Contou com a parceria do amigo Euclides, caçador que há muito tencionava eliminá-la. O fato das baixas nas criações serem sempre provocadas pelo mesmo animal despertou um misto de ódio, excitação e senso de justiça. Não reconheciam que o invasor por aquelas bandas era o homem e não a onça.
A caçada malsucedida
Tudo foi preparado previamente, e no dia seguinte pela manhã, Euclides e Fernandez, acompanhados de dois cães de caça, se embrenharam na mata. Depois de percorrerem alguns quilômetros a pé, soltaram os cachorros para farejarem os rastros da onça. Logo começaram a rosnar e latir, até que o silêncio tomou conta do lugar. Um dos cães sumiu e o outro retornou ofegante e assustado. Para Fernandez, só podia ser um sinal de que a “inimiga” estava próxima. Ajeitaram os gatilhos das espingardas e, sem piscar, deram alguns passos até ouvirem o som que emanava dos galhos de uma árvore. Lá estava a felina, como se os aguardasse, atenta a cada movimento dos caçadores.
Quando Fernandez deu o primeiro tiro o animal saltou. Com as patas, dilacerou seus braços e ombros – na região da escápula e do úmero. O estrago foi tão grande que o homem sentiu as garras da onça roçando os ossos. O gatilho da espingarda de Euclides falhou no momento do ataque. Desesperado ao vê-la sobre o companheiro, o caçador tirou uma peixeira da cintura e a golpeou. Mesmo ferida, a felina atacou os dois braços de Euclides, destruiu a espingarda e depois fugiu pela mata.
Apesar de muito machucados, os dois foram encontrados por colonos e levados para o hospital de Rondon. Lá, segundo o frei alemão Ulrico Goevert, que vivia em Paranavaí, estavam com febre alta e braços e ombros atados.
Dias depois, os colonos voltaram à rotina. Mas só até a mulher de Fernandez revelar que a onça levou ‘o seu melhor porco”. “A raiva o cozinhou por dentro. Parecia que a vergonha causada pela onça doía mais que o ferimento nos ombros”, comentou Frei Ulrico no livro “Histórias e Memórias de Paranavaí”. À época, o padre estava participando de uma missão religiosa em Rondon e Cidade Gaúcha.
Uma nova emboscada
Sem pestanejar, Fernandez pegou novamente a espingarda, a municiou e foi até a casa de Euclides convidá-lo para a caçada. O amigo aceitou, ajeitou a peixeira na cintura e seguiu o companheiro. De acordo com os caçadores, era preciso mais cautela porque a onça ferida sempre foge do perigo. Acompanhados por um cão de caça, seguiram as pegadas do animal e o avistaram devorando o pernil de um leitão. Rapidamente, Fernandez puxou o gatilho e acertou o peito da onça que ainda tentou resistir, mas faleceu.
A primeira coisa que fizeram foi medir a felina. Tinha 2,64m de comprimento e pesava mais de 100 quilos. Orgulhosos, Fernandez e Euclides tiraram várias fotos ao lado da onça-pintada morta. “Quando vi a magnífica pele do animal já curtida brotou em mim o desejo de pendurá-la no Seminário Carmelitano Teresiano de Vocações Tardias, em Bamberg [no Estado da Baviera, na Alemanha], para despertar nas novas gerações de missionários a alegria da caça à onça”, destacou o padre alemão. A pele da felina foi leiloada por cerca de dois mil cruzeiros e o dinheiro doado para o Hospital de Rondon que atendia principalmente os menos favorecidos.
Saiba Mais
Nos anos 1950, alguns pioneiros pagavam muito dinheiro para caçadores livrarem suas propriedades das onças.
Observação
Como está claro no texto, nem mesmo os mais civilizados tinham consciência de que o homem era o verdadeiro invasor.
A história de frei Estanislau
Hobby do frade era se aventurar na selva de Paranavaí
Frei Estanislau é um personagem histórico de Paranavaí. Se mudou para o Noroeste do Paraná em 1951 e viveu aventuras inesquecíveis numa época em que a mata virgem envolvia a cidade.
O pernambucano Agripino José de Souza, conhecido como frei Estanislau, deixou muitas lembranças. Carismático, o frade tinha o poder de cativar os mais jovens. “Ele brincava com as crianças como se pertencesse a elas, e os pequenos o obedeciam como se fosse o pai deles”, relatou o frei alemão Ulrico Goevert no livro “Histórias e Memórias de Paranavaí”.
O frade foi noviço do frei Ulrico na Ordem do Carmo, em Recife, Pernambuco, onde recebeu o convite para vir a Paranavaí trabalhar com o frade alemão. Chegou aqui em outubro de 1951 e estranhou as dificuldades em se conseguir carne. “Só havia carne na cidade uma vez por semana”, frisou Goevert.
Foi aí que Estanislau disse ao frade alemão que conseguiria carne sem gastar nenhum centavo. No dia seguinte, o pernambucano saiu cedo e retornou às 20h. Frei Ulrico se surpreendeu ao ver a mochila cheia de aves e outros pequenos animais caçados por frei Estanislau. “Ele mesmo preparou e por vários dias tivemos uma mesa farta. Eu lhe dava licença para caçar duas vezes por mês”, revelou Goevert. Além de pássaros silvestres, o frade caçava veados, queixadas e pacas.
Um fato jamais esquecido pelo frei pernambucano foi uma caça a um grupo de macacos que comiam todo o milho da plantação de um colono local. “Acertei um dos animais e ele caiu ferido aos meus pés. Gritava igualzinho a uma criança e ainda estendia as mãozinhas ensanguentadas, pedindo ajuda. Foi terrível! Nunca mais atiro em macaco, mesmo que roubem todo o milho”, desabafou frei Estanislau quando retornou para casa.
A caça era o grande hobby do frade pernambucano que sempre reunia um grupo para se embrenhar na mata virgem do Noroeste Paranaense. Iam a cavalo e as caçadas duravam de dois a três dias. No entanto, um acontecimento desestimulou o frei. “Uma vez, amarramos os cavalos nas árvores e providenciamos as coisas para passar a noite. De repente, escutamos o rugido de uma onça. Ficamos muito assustados e pegamos nossas espingardas. Duas luzes esverdeadas brilharam e desapareceram”, contou frei Estanislau.
Com o susto, o frade e os companheiros não conseguiram se mover. Mais tarde, ouviram mais um esturro de onça. A experiência foi tão impactante que ninguém dormiu. Desde então, as caçadas se tornaram cada vez mais raras e o frade pernambucano nunca mais dormiu na mata.
As velas do frade
Nos anos 1950, nenhuma casa comercial de Paranavaí vendia velas, então com a proximidade do feriado de Páscoa, o frei Estanislau teve a ideia de buscar cera na selva que cercava a cidade, onde havia muitas colmeias de abelhas silvestres. “Ele foi para o mato na Semana da Paixão. Com a ajuda de dois amigos, derrubou em dois dias uma peroba parecida com o carvalho alemão”, assinalou frei Ulrico.
Da colmeia de um metro de diâmetro que estava próxima ao topo da árvore extraíram cinco litros de mel. O restante escorreu pelo chão com o impacto da queda. Segundo o frade alemão, os três caçadores fizeram uma bola enorme com a cera derretida em uma caçarola.
“Na noite do Domingo de Ramos, o frei Estanislau voltou para casa com o rosto tão inchado que nem o reconheci. Levou muitas ferroadas. Mesmo assim, ele sorriu e disse que trouxe quase dez quilos de cera”, enfatizou Goevert. O frade pernambucano confeccionou as velas e deixou toda a igreja iluminada. Pioneiros lembram que sentiam de longe o cheiro de mel tomando conta da igreja no Domingo de Páscoa.
Um presépio à brasileira
A primeira comemoração pública de Natal realizada em Paranavaí foi preparada pelo frei Estanislau. Para a criação do presépio, o frade foi até a mata acompanhado de crianças e adolescentes para buscar matéria-prima. “Ele fez um presépio com 24 figuras de 10 cm de altura. Quando a cortina caiu durante a Missa do Galo não gostei muito do que vi. Mas percebi que a população adorou e contemplou”, salientou frei Ulrico.
Logo o frade alemão se deu conta que a obra foi feita de acordo com as tradições brasileiras. “Por ser alemão, num primeiro momento achei que muitas coisinhas não tinham nada a ver com o presépio de Belém. Depois refleti e percebi que o presépio não foi feito para um missionário alemão, e sim para o povo que mora aqui”, pontuou frei Ulrico que parabenizou o frei Estanislau durante a celebração.
No mesmo dia, o frade pernambucano reuniu cem crianças vestidas de branco para levarem o Menino Jesus de 40 centímetros, ladeado por duas velas, até a igreja. “Enquanto os demais cantavam ‘Noite Feliz’, de acordo com a velha melodia alemã, coloquei Jesus na manjedoura”, ressaltou o frei alemão.
Frei se dedicou à Vila Operária
Agripino José de Souza, conhecido como frei Estanislau, chegou a Paranavaí durante a Festa de Santa Terezinha, no dia 3 de outubro de 1951. Conforme informações do livro “Histórias e Memórias de Paranavaí”, o frei Ulrico Goevert ficou muito feliz em recebê-lo. “No dia seguinte, fomos ao comércio comprar um fogão a prestação, utensílios para a cozinha e roupas de cama”, lembrou o frade alemão.
Estanislau ajudou Goevert até dezembro de 1955, quando deixou a Ordem do Carmo para trabalhar no Rio de Janeiro. Retornou a Paranavaí, concluiu o ginásio na Escola Paroquial, atual Colégio Nossa Senhora do Carmo, e o clássico no Colégio Estadual de Paranavaí (CEP). Em 1970, se mudou para Curitiba, onde estudou filosofia e teologia.
Se tornou sacerdote aos 50 anos, em 16 de março de 1975. Então retornou a Paranavaí, onde se dedicou à Vila Operária. frei Estanislau construiu a igreja, o salão de festas e a paróquia do bairro. Em 1988, foi convidado a trabalhar em Querência do Norte, até que faleceu em 17 de maio de 1989. O corpo do frade foi trazido a Paranavaí e sepultado na cripta da Igreja São Sebastião.
Frases do frei Ulrico Goevert sobre o frei Estanislau
“Frei Estanislau tinha uma alma sem mácula e um coração de ouro.”
“Nunca esquecerei como preparou a primeira festa de Natal.”
“Com o seu humor sadio, me tirou muitas preocupações da cabeça. Nas dificuldades, era tão engenhoso que eu fiquei muitas vezes admirado.”