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Sou um justiceiro social…
Sou um justiceiro social, odeio as desigualdades sociais, as mazelas econômicas e políticas, sou contra a formação de latifúndios, mas não abro mão de ir ao mercado comprar minha carne, minhas caixinhas de leite e meus ovos.
Não me importo que isso signifique a manutenção do status quo, que esse dinheiro seja usado com finalidades que não me interessam, que sirva para eleger políticos que vão legislar em causa própria ou em benefício daqueles que os financiaram.
Tanto faz se isso tem impacto no meio ambiente, se nesse meio há casos de mão de obra análoga ao trabalho escravo; e menos ainda me importa se animais vão sofrer por causa disso. O mais importante é eu não saber de nada disso, porque assim posso continuar lutando por “justiça para todos”, uma justiça pela qual sou capaz de tudo, menos readaptar o meu paladar.
Mazelas são endossadas pela omissão, indiferença, conivência
Mazelas são endossadas e perpetuadas pela omissão, indiferença, conivência. Se o mundo é duro é porque nós também somos, já que ele reflete aquilo que somos e como agimos. Pessoas falam diariamente em fazer a diferença, mas se essa diferença é apenas ensaiada, ela não é transformadora, é infrutífera; basicamente um “da razmišljam”, um pensar sinuoso, suscetível, à revelia. Um mundo de injustiças e desigualdades pode até não refletir a vontade da maioria, mas também não reflete nem mesmo a sua contestação prática, talvez porque nossas vontades sejam pequenas demais para não nos olvidarmos.
Documentário denuncia as mazelas da indústria de ração animal
Caso queiram conhecer as mazelas do mercado mundial de ração animal, dominado por cinco grandes conglomerados: Mars, Nestlé, Procter & Gamble, Hills e Big Heart Pet Brands, recomendo que assistam “Pet Fooled”, de Kohl Harrington, disponível na Netfix. O documentário lançado em 2016 mostra como esse mercado funciona sob conveniência e pode não estar tão preocupado com o bem-estar animal.
Ricos, governo e mazelas
Certeza que se eu fosse muito rico eu iria ficar esperando os governos resolverem as mazelas do mundo. Acho que se as pessoas que têm uma miríade de recursos pensassem um pouco mais nos outros, se empenhassem em ajudar verdadeiramente, o mundo seria um lugar muito melhor. Mas o problema é que muitas delas apenas simulam ajudar. O que mais vejo são pessoas com muita grana “ajudando” em troca de um benefício muito maior.
Upton Sinclair e as mazelas da indústria frigorífica
“Queria tocar o coração do público, mas acabei tocando o estômago”
Em 1906, o escritor estadunidense e reformador social Upton Sinclair lançou o seu livro mais famoso. Intitulado The Jungle (A Selva), a obra que denuncia as mazelas da indústria frigorífica teve tanta repercussão nos Estados Unidos que o governo não viu outra saída, a não ser a criação da Food and Drug Administration (FDA), órgão responsável, dentre outras competências, pela fiscalização da produção alimentícia.
A riqueza de detalhes com que Sinclair descreve as más condições enfrentadas pelos trabalhadores e pelos animais explorados pela indústria fez com que milhares de pessoas se tornassem vegetarianas nas primeiras décadas do século 20. E com o tempo, e a popularidade mundial do livro traduzido em mais de 50 idiomas, o número de adeptos da alimentação livre de ingredientes de origem animal cresceu exponencialmente.
Convertido ao vegetarianismo por influência de John Harvey Kellogg, criador do famoso cereal matinal, o escritor produziu uma obra de denúncia que até hoje é apontada como a mais influente sobre a matança de animais nos Estados Unidos. Embora alguns pesquisadores defendam que após alguns anos Upton Sinclair abandonou o vegetarianismo, citando como exemplo um texto de 26 páginas intitulado Fasting and the Use of Meat, seu livro continuou influenciando muita gente a não consumir mais carne e a lutar por reformas sociais envolvendo as agroindústrias.
O protagonista da obra é o lituano Jurgis Rudkus, um imigrante que mal sabe falar inglês e vive com a família em um distrito de Chicago dominado por currais e fábricas de carne processada. Desempregado, Rudkus aceita um emprego em um matadouro. Mas a desilusão cresce quando ele se vê endividado. Às raias da miséria, é obrigado a se sujeitar aos trabalhos mais sórdidos, além de amargar experiências traumatizantes como a morte do pai, vítima da falta de segurança nas linhas de produção da indústria frigorífica. Em uma das passagens da página 38 de The Jungle, uma imigrante lituana se mostra chocada ao saber do destino de milhares de bois e vacas.
“E o que será de todas essas criaturas?”, chorou Teta Elzbieta.
“Esta noite, todos serão mortos e fatiados. E logo ali, do outro lado dos depósitos de acondicionamento, há mais ferrovias, e de lá vêm os vagões que vão levá-los embora”, respondeu Jokubas Szedvilas. No total, dez milhões de criaturas vivas eram transformadas em alimento a cada ano.
Assim como os animais, os trabalhadores também eram tratados como seres inferiores, já que suas vidas se resumiam às longas jornadas de trabalho. Exemplo disso é um adolescente que vencido pela exaustão e pela embriaguez dorme no trabalho, onde se torna comida para ratos na madrugada. Nesse trecho, Upton Sinclair denuncia ainda a falta de higiene nas linhas de produção. Também revela no livro que muitas vezes a carne bovina se misturava à carne dos ratos que morriam nas linhas de produção.
À frente, havia uma grande roda de ferro, de 20 pés de circunferência e com anéis por toda a sua borda. (…) Quando a roda virou, o porco teve seu pé arrancado e arremessado para o alto. Ao mesmo tempo, ouviu-se um grito aterrorizante; os visitantes ficaram alarmados; as mulheres empalideceram e recuaram, escreveu Sinclair na página 40 de The Jungle.
No livro-denúncia de viés socialista, o sofrimento dos animais e dos homens estão interligados; um não existe sem o outro num contexto em que na prática o sonho americano não passa de uma distopia velada pela inocente fantasia. E nesse cenário, o maior financiador é o consumidor que alheio à excruciante realidade aceita tudo na sua passividade.
A omissão do Estado também endossa e justifica a existência dessas práticas. Publicado há mais de cem anos, The Jungle é uma obra que, em síntese, não apenas flerta com a atualidade, mas diz muito sobre ela. “Queria tocar o coração do público, mas acabei tocando o estômago”, declarou Sinclair ao avaliar a recepção do livro.
Saiba Mais
Upton Sinclair nasceu em 20 de setembro de 1878 em Baltimore, Maryland, e faleceu em 28 de novembro de 1968 em Bound Brook, Nova Jersey.
O livro Dragon’s Teeth (Dentes de Dragão), que garantiu o Prêmio Pulitzer a Upton Sinclair em 1943, narra o zeitgeist e o drama dos eventos registrados na Europa que resultaram no início da Segunda Guerra Mundial.
Referências
Harris, Leon. Upton Sinclair: American Rebel. Thomas Y. Crowell Company, New York (1975).
Mason, M. Diane. Mullins, T. Janet. Vegetarian 101: History, Health and Tips. University of Kentucky (2016).
Sinclair, Upton. The Jungle. Dover Publications; Unabridged Edition (2001).
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