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“”Não nos ensinam sobre o poder do alimento na faculdade de medicina”
“Não nos ensinam sobre o poder do alimento na faculdade de medicina. Ninguém aprende que as mudanças que fazemos em nossa dieta provavelmente é a coisa mais poderosa que podemos fazer para determinar o nosso destino. Supera a nossa genética.”
Michelle McMacken, professora da Escola de Medicina da Universidade de Nova York, em “What The Health”.
Médico e pesquisador discorda da afirmação de que o ser humano não teria evoluído sem o consumo de carne
“O problema da teoria da dieta paleo é que no passado não existiu especificamente uma dieta paleo”
Quando se fala em consumo de carne, os defensores sempre alegam que o ser humano jamais teria evoluído se não fosse pela ingestão de carne. Alguns dizem inclusive que nossas capacidades neurológicas não seriam as mesmas sem esse hábito de nossos antepassados. Porém, há quem discorde e se empenhe em provar como essa linha de raciocínio é equivocada.
Um exemplo é o médico estadunidense e pesquisador Shivam Joshi, doutor em nefrologia, que está escrevendo um livro sobre os efeitos do consumo de carne na saúde humana e sua associação com pressão alta, doenças cardíacas, câncer, diabetes e acidente vascular cerebral (AVC).
Na obra, ele aborda também importantes aspectos da evolução humana, entre os quais o possível equívoco de quem acredita que jamais teríamos evoluído sem o consumo de carne. “Durante a evolução, humanos e seus ancestrais comeram carne, e algumas pessoas têm usado esse precedente histórico como evidência para legitimar o consumo de carne. A ideia tem sido popularizada em muitas dietas baseadas em gorduras, incluindo a notável dieta paleo”, conta.
E defensores dessas dietas costumam alegar que como os nossos ancestrais paleolíticos tinham um estilo de vida natural, isso significa que deveríamos seguir seu exemplo, já que comer carne era uma prática usual no período paleolítico. “Desde que comemos carne, devemos comer carne, segundo eles”, declara Joshi.
Porém, há lacunas nesse tipo de teoria que tenta simplificar a realidade humana da época ao defender que estamos apenas fazendo algo lógico ao seguir os supostos passos de nossos ancestrais. Para o médico, o primeiro problema da teoria da dieta paleo é que no passado não existiu especificamente uma dieta paleo.
“Como nossos predecessores deixaram a África, eles provavelmente encontraram diferentes climas e terrenos, cada um oferecendo recursos diferentes para os homininos [subtribo de primatas que teve os humanos como únicos sobreviventes] durante a evolução”, enfatiza o médico.
Joshi se baseia no fato de que antropólogos descobriram que havia os mais diferentes tipos de dietas no período paleolítico, e a carne foi introduzida em parte dessas dietas, sem que fosse encarada como essencial ou mesmo um modelo a ser seguido.
“Alguns podem ter consumido carne, enquanto outros consumiram frutas, tubérculos. Os homininos mais evoluídos comiam o que estivesse disponível. Comer para sobreviver é diferente de jantar pensando em saúde em longo prazo. A diferença pode ser percebida quando arriscamos a saúde em longo prazo em benefício da saúde em curto prazo”, analisa.
Para ilustrar a ideia de que o ser humano não consumia carne por opção ou prazer, Joshi conta uma história hipotética em que alguém é mantido preso dentro de uma loja de doces, sem possibilidade de fuga. Nesse caso, a pessoa seria obrigada a aceitar suas reduzidas opções para sobreviver.
“Se a sua sobrevivência dependesse disso, e assumindo que não havia mais nada para comer, você comeria doces, apesar de todo o açúcar que pode aumentar o risco de diabetes. Qualquer um sacrificaria sua saúde em longo prazo para sobreviver em um cenário desse tipo”, pondera.
O ser humano foi obrigado a se adaptar à sua realidade, levando em conta mudanças nos padrões climáticos e biomas, especialmente quando deixou a África, observa Shivam Joshi. “Fontes de alimentos teriam mudado e forçado os homininos a comer o que encontravam pela frente. Em algumas situações, teria sido carne. Em outras, grãos ou tubérculos. Claro, nossos ancestrais não tinham ideia de quais efeitos essa alimentação teria em longo prazo”, frisa.
A única necessidade humana da época era a sobrevivência; fazer o que está ao seu alcance para evitar a fome – o que poderia se tornar um grande problema dependendo do surgimento de doenças, exploração indiscriminada de uma área e até mesmo mudança de clima.
“Encontrar alimentos não era fácil como agora. Se eles tivessem encontrado doces na savana, teriam consumido também. A falta de dependência de qualquer comida específica é provavelmente a razão pela qual não há adaptações específicas a nenhum desses alimentos, incluindo a carne”, pontua o pesquisador, lembrando que os seres humanos vêm de uma linhagem de 40 milhões de anos.
De acordo com Joshi, quando comparamos o nosso trato digestivo com o dos chimpanzés, encontramos similaridades que jamais teremos com animais naturalmente carnívoros, como tigres. A morfologia dental e intestinal dos seres humanos assemelha-se mais a dos primatas do que dos grandes felinos, o que é uma razão pela qual o médico crê que o consumo de carne pode não fazer bem aos seres humanos.
Uma questão preocupante hoje em dia, de acordo com Shivam Joshi, é que muitas dietas que preconizam o consumo de carne o colocam como uma tábua de salvação para pessoas que já sofrem de problemas de saúde ou buscam resultados estéticos. “Se um organismo faz algo fora do comum, podemos encontrar consequências perigosas desse comportamento”, comenta.
Referências
http://www.huffingtonpost.com/entry/evolved-to-eat-meat-maybe-not_us_58bc7e4be4b02eac8876d020
Amílcar de Sousa: “A carne não é o alimento do homem”
“A maior parte da gente […] se visse morrer os animais, não se banquetearia com tão grande gáudio…”
Foi em 1908 que o médico Amílcar Augusto Queirós de Sousa, defensor do vegetarianismo, fundou na Avenida Rodrigues de Freitas, na cidade do Porto, a Sociedade Vegetariana de Portugal. No ano seguinte, Sousa inaugurou a revista “O Vegetariano”, periódico mensal que circulou até 1918 e teve boa repercussão na Europa e no Brasil.
Especialista em dietética e nutrição, Amílcar escreveu que da velha confusão de teorias médicas, da grande época obscura do empirismo, como um dogma da ciência de então, uma forma errónea e cheia de preconceito, como se fora um mandado religioso e por isso mesmo eivado de má fé, surgiu com esta frase perturbante: o homem é omnívoro. Como à boca se pode levar tudo que queira, daí resultou essa monstruosidade deturpante da humanidade. Tal reflexão consta na página 45 da 4ª edição da revista “O Vegetariano”, publicada em 1912. À época, Sousa já realizava conferências e palestras em defesa do vegetarianismo.
No livro “As Hortaliças na Medicina Natural”, lançado em 1992, Alfons Balbach e Daniel S.F. Boarim narram que Amílcar de Sousa foi um grande apologista do regime frugívoro: não só ele, como toda a família, só se alimentavam de frutas. “Na sua revista intitulada ‘O Vegetarianismo’ tem feito propaganda das mais inteligentes e proveitosas em favor deste regime, e o número de adeptos que conseguiu converter ao regime frugívoro orça por muitas centenas em tempo relativamente curto”, registraram.
Na obra “O Livro Negro do Açúcar – Algumas Verdades Sobre a Indústria da Doença”, de 2006, Fernando Carvalho observa que Amílcar de Sousa, um médico do século XIX, estava melhor informado do que seus colegas da atualidade. “Desde a forma dos dentes à capacidade do estômago e às dimensões do intestino, como dados anatómicos em referência à comparação da série animal de que o homem é primaz – tudo demonstra que o gênero humano não é omnívoro. A dentadura é semelhante à dos símios antropoides que se alimentam de frutos; e se os obrigarmos a serem carnívoros, imediatamente estigmas de degenerescência se notam, doenças de pele, a queda dos pelos, o reumático e outras manifestações de artritismo”, argumenta Sousa no artigo “O Homem é Frugívoro”, de 1912.
Em setembro do mesmo ano, o médico publicou “O Caldo de Carne”. No artigo da revista “O Vegetariano”, ele afirma que a carne não é o alimento do homem. Se fosse, o ser humano deveria ter condições de matar os animais com mãos e garras, triturando os ossos ou lacerando os músculos ainda quentes com os dentes, assim como faz a hiena. “Desprovido de armas cortantes e do artifício da culinária, o homem não pode utilizar-se da carne nem do peixe”, justifica.
Segundo o médico português, para uma consciência límpida e um espírito moral, ver morrer um boi é um espetáculo canibalesco e incompatível com a humanidade. “Assistir ao assassinato dum cordeiro é, sem dúvida, barbaridade infame. Queremos acreditar que a maior parte da gente que bebe às colheres a sopa, ou corta com a faca um pedaço de vaca, se visse morrer os animais, não se banquetearia com tão grande gáudio…”, defendeu no artigo “Caldo de Carne”.
Um homem revolucionário, Amílcar de Sousa é considerado pela Associação Vegetariana Portuguesa (AVP) o maior impulsionador do vegetarianismo e do naturismo em Portugal. “Ele conseguiu mobilizar outros médicos e personalidades da burguesia para o estilo de vida natural e saudável”, reconhecem Gabriela Oliveira e Nuno Metello no artigo “Vegetarianos há mais de um século”, publicado no semanário português SOL em 2011.
Em 1923, Sousa publicou a novela naturista “Redenção”, que aborda a importância da proximidade do ser humano com a natureza. Na obra, ele defende uma consciência ética universal, em que os animais têm assegurado o direito de não serem mortos simplesmente para atender maus hábitos culturais e alimentares da humanidade.
“Mas por que é que estas ideias [do vegetarianismo] não as tem defendido a classe médica? É simples a resposta. É que não há pílulas de sol, nem injecções de exercício, nem tão pouco vacinas de ar… e é preciso viver dos doentes. O médico do futuro é só aquele que nada receitar. Ensinem os doentes a viverem conforme a natureza e os sãos a não se desviarem dela. O medicamento fez já as suas provas. São negativas”, declarou na revista “O Vegetariano” em abril de 1912.
Segundo Amílcar de Souza, o melhor que os pais podem deixar aos filhos é a saúde. Portanto, para que os filhos não tenham doenças, o ideal é ensiná-los a seguir um regime natural, valorizar a vida ao ar livre e praticar exercícios regulares. “A alimentação humana tem sido desvirtuada pelo preconceito. [O leite] não é alimento do homem, mas sim dos filhos das vacas, dos cabritos, dos jumentos etc., antes de terem dentes para comer as ervas dos montes e prados! […] A velha fábula de Prometeu que roubou o fogo do céu para comer os cadáveres dos animais cozinhados, eis a base em que assenta toda a errónea conduta da humanidade”, enfatizou em publicação da revista “O Vegetariano” de 5 de julho de 1912.
O pioneiro do vegetarianismo português
Amílcar Augusto Queirós de Sousa nasceu em Cheires, Alijó, em 1876. Graduou-se em medicina pela Universidade de Coimbra. Mais tarde, em Paris, estudou a relação entre a nutrição e as doenças. Considerado o pioneiro do vegetarianismo português, correspondeu-se com outras personalidades que advogavam em defesa do vegetarianismo. Entre os quais, o famoso médico estadunidense John Harvey Kellogg, o naturalista alemão Ernst Haeckel e o médico francês Paul Carton. Pacifista, também criticou Primeira Guerra Mundial. “Dispõe de uma resistência hercúlea. Caminha dezenas de quilómetros a pé sem a menor fadiga”, escreveu Maria Feio sobre Amílcar de Sousa.Obras publicadas por Amílcar de Sousa
“O Naturismo”, “A Saúde pelo Naturismo”, “A Cura da Prisão do Ventre”, “A Redenção”, “Arte de Viver”, “Banhos de Sol” e “O Naturismo em Vinte Lições”.
Saiba Mais
Amílcar de Sousa era amigo do poeta brasileiro e também defensor do vegetarianismo Carlos Dias Fernandes, com quem se correspondia frequentemente.
Adepto do pedestrianismo, o médico chegou a viajar de Lisboa a Sines a pé, percorrendo mais de 160 quilômetros. Além disso, gostava de caminhar descalço. Faleceu na cidade do Porto em 1940.
Sousa considerava Pitágoras o maior filósofo da história da humanidade. Para ele, Jean-Jacques Rousseau, que defendia a importância do contato das crianças com a natureza, era o melhor educador.
Referências
O Vegetariano: Mensário Naturista Ilustrado – Volumes I a IV. Sociedade Vegetariana de Portugal (1912).
Boarim, Daniel S.F.; Balbach, Alfons. As Hortaliças na Medicina Natural (1992).
Oliveira, Gabriela; Metello, Nuno. Vegetarianos há mais de um século. Semanário SOL. Páginas 40 e 41 (30 de setembro de 2011). Disponível em http://www.avp.org.pt/notiacutecias/vegetarianos-h-mais-de-um-sculo
Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira. Editorial Enciclopédia. Volume 29. Página 761.
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John Harvey Kellogg, o médico que enfrentou a indústria da carne
Kellogg é o criador do mais famoso cereal matinal, além da manteiga de amendoim e da granola
Administrador do lendário Sanatório Battle Creek, em Michigan, nos Estados Unidos, e famoso pela criação do cereal matinal de milho Kellogg’s, desenvolvido em parceria com a esposa Ella e o irmão Will Keith, o médico John Harvey Kellogg se tornou um defensor da alimentação sem carne a partir do século XIX.
Há diversas pesquisas realizadas pelo médico em que ele associa o consumo de carne com a redução do estímulo sexual a longo prazo. Dr. Kellogg, como era mais conhecido, foi o responsável pela criação da manteiga de amendoim e da granola. Ou seja, dois alimentos que a princípio surgiram como opções para os vegetarianos. O médico acreditava que as oleaginosas iriam salvar a humanidade quando houvesse grande diminuição da oferta de alimentos. Porém, enquanto existisse boa diversidade, ele defendia o consumo de grãos integrais, verduras, legumes e frutas, combinação que representa a dieta natural humana, segundo John Harvey.
Um distinto cirurgião, Dr. Kellogg viajava pelos Estados Unidos ministrando palestras sobre os benefícios da dieta vegetariana. Também publicava suas pesquisas sobre o assunto na sua popular revista Good Health. Seus esforços contra a indústria da carne, principalmente contra a campanha baseada no slogan “Coma Mais Carne”, ajudaram a ampliar o interesse pelo movimento vegetariano. Em 1876, o médico se tornou superintendente do Sanatório Battle Creek, que tinha seu irmão Will Keith como tesoureiro. Administrado pela Igreja Adventista do Sétimo Dia, o sanatório seguia os preceitos da própria instituição religiosa, ou seja, o incentivo à dieta livre de carne e à abstinência de álcool e tabaco. Para além disso, Kellogg estimulava a prática de atividades físicas e exercícios respiratórios.
Sob o comando de John Harvey, o Sanatório Battle Creek, que tinha características de resort e spa holístico, se tornou referência nacional e internacional. Sua popularidade cresceu muito antes da Grande Depressão que assolou os Estados Unidos em 1929. Fundado em 1866 pela Igreja Adventista de Sétimo Dia, sob o nome de Western Health Reform Institute, o sanatório foi batizado com o nome de Battle Creek pelo Dr. Kellogg porque ele achou mais adequado homenagear a cidade que o abrigava.
Foi no mesmo local que John Harvey, sua esposa Ella e seu irmão Will Keith criaram no início do século XX aquele se tornaria o mais famoso cereal matinal à base de milho. Em 1906, Will Keith fundou a Battle Creek Toasted Corn Flake Company, que recebeu o nome de Kellogg’s Toasted Corn Flakes em 1922, quando mudaram o nome da empresa para Kellogg Company. O cereal foi criado como uma reação ao café tipicamente estadunidense, que sempre incluía algum tipo de carne.
Kellogg teve a ideia de substitui-lo por uma opção saudável quando conheceu o cereal preparado por James Caleb Jackson, do Sanatório Dansville, de Nova York. A diferença é que o alimento que serviu de inspiração precisava ser embebido por uma noite antes de consumido, ao contrário do cereal Kellogg que podia ser servido imediatamente. O superintendente do Sanatório Battle Creek e sua esposa Ella criaram vários alimentos para ajudar os pacientes a continuarem se alimentando de acordo com o programa alimentar do sanatório quando retornassem para casa.
À época, eles contrataram cozinheiros e nutricionistas para desenvolver produtos saudáveis que pudessem ser entregues em domicílio por meio do serviço postal. Uma das especialistas em nutrição que trabalhou para o Dr. Kellogg era Lenna Cooper, fundadora da Associação Dietética Americana (ADA), principal referência em nutrição nos Estados Unidos. No Battle Creek, John Harvey e sua esposa ensinaram donas de casa a prepararem corretamente os alimentos. Até mesmo os visitantes podiam participar de sessões de exercícios de respiração e treinamentos nutricionais sobre combinação de alimentos que garantissem melhor digestão ao longo do dia. Banhos de sol também eram recomendados.
Kellogg defendia que muitas das doenças que acometem a humanidade poderiam ser amenizadas através de mudanças na flora intestinal. Ele argumentava que as bactérias do intestino poderiam produzir toxinas patogênicas durante a digestão das proteínas, assim envenenando o sangue. Por isso, o médico recomendava uma dieta livre de carnes, com moderada quantidade de proteínas, laxativa, e com alimentos ricos em fibras. Um dos cirurgiões mais habilidosos de seu tempo, Kellogg atendia gratuitamente muitos pacientes em sua clínica. Ele era contra a realização de cirurgias desnecessárias no tratamento de doenças, um problema que via como recorrente na medicina.
Defensor da circuncisão, prática que qualificava como higiênica e benéfica para a saúde do homem, John Harvey teve muitos pacientes notáveis que viam a dieta livre de carne como a alimentação do futuro. Entre eles estavam o ex-presidente William Howard Taft, o escritor irlandês e vencedor do Prêmio Nobel de Literatura George Bernard Shaw, Henry Ford (fundador da Ford), a famosa aviadora Amelia Earhart e o economista Irving Fisher. Dr. Kellogg criou o conceito “Biologic Living”, uma forma moderna de medicina preventiva.
Ele sempre dizia que a medicina deveria se voltar mais para a prevenção de doenças. Além de alimentos de origem animal, o médico recomendava abstinência de álcool, tabaco, café, chá e chocolate. Repouso adequado, atividades ao ar livre e vestuário confortável também faziam parte de sua cartilha para uma vida saudável. Mesmo acreditando na importância do descanso, quando estava com pouco mais de 60 anos, o médico dormia apenas quatro horas por noite. Com 80 anos, decidiu reduzir a própria jornada de trabalho de 15 horas para 12 horas. “A carne, o cigarro e o álcool são venenos para o intestino. E todos os males começam no intestino”, declarava copiosamente.
John Harvey Kellogg tinha argumentos para os mais diferentes públicos quando questionado sobre o motivo de reprovar o consumo de carne. Aos religiosos, ele citava referências da Bíblia. Para os darwinistas, o médico contava histórias sobre os grandes macacos, animais biologicamente próximos do ser humano e que não consumiam carne. E aos moralistas, ele dissertava sobre o fato de que ao homem jamais foi concedido o direito de matar animais – qualificando tal ato como imoral. O Sanatório Battle Creek chamava atenção de personalidades que estavam no topo da hierarquia social e financeira. Entre seus hóspedes estavam também Clarence W. Barron, presidente da financeira Dow Jones, S.S. Kresge, proprietário de uma das maiores empresas de varejo do século XX, e Harvey Firestone, fundador da fabricante de pneus que leva seu sobrenome.
Na celebração do Ano Novo de 1930, o Dr. Kellogg ofereceu aos hóspedes do Battle Creek um jantar baseado em torta de batata, berinjelas, cogumelos e geleia de groselha. Embora hoje não seja tão lembrado, John Harvey foi o responsável pela popularização e conscientização da população dos Estados Unidos no que diz respeito à importância de se comer frutas e vegetais. Somente no Sanatório Battle Creek, e valendo-se da dieta sem carne, o médico obteve êxito no tratamento de milhares de pessoas. “Tenho a cura para o câncer, úlceras, diabetes, esquizofrenia, transtorno bipolar, acne, anemia, astenia, enxaqueca e velhice prematura”, afirmava.
Entre os tipos de sementes que Kellogg considerava as mais promissoras para a saúde humana estavam gergelim e psyllium, extraído de uma planta do gênero plantago, rica em óleos, fibras solúveis, insolúveis e mucilagem. Ao médico é atribuída à introdução do psyllium na alimentação dos norte-americanos, além da descoberta do potencial do uso de grãos de soja como alimento. De acordo com a pesquisadora Amy South, do The Vegetarian Resource Group, dos Estados Unidos, John Harvey Kellogg possuía tanta energia aos 77 anos que abriu uma filial do Sanatório Battle Creek em Miami, na Flórida. Aos 78 anos, participou de uma bateria de exames de saúde, obtendo pontuação superior a de muitos jovens examinados.
Com 80 anos, ele andava de bicicleta, dava palestras e atendia pacientes regularmente. Aos 88 anos, completou 22 mil cirurgias realizadas. Quando chegou aos 90 anos, viajou para Washington em busca de subsídios para a construção de um novo prédio para o Sanatório Battle Creek. Em decorrência da Segunda Guerra Mundial, tentaram convencê-lo a desistir da ideia. Ele foi persistente e conseguiu alcançar seu objetivo. Sentindo-se em paz, John Harvey Kellogg faleceu aos 91 anos, mas não sem antes atribuir sua longevidade à dieta sem carne e ao conceito “Biologic Living”.
Na década de 1960, o vegetarianismo ganhou força nos Estados Unidos. No entanto, com mínimas referências, os vegetarianos acabaram recorrendo à literatura da Inglaterra, onde havia um movimento vegetariano bastante organizado. Nesse mesmo período, o que eles encontraram de mais valioso nos Estados Unidos foi a literatura deixada pelo Dr. Kellogg. Ou seja, seus livros, assim como de outros escritores que, inspirados no médico que criticava o consumo de carne, abordavam nutrição e saúde. O trabalho do superintendente do Sanatório Battle Creek serviu e continua servindo para derrubar o mito de que uma pessoa sem carne pode sentir-se fraca ou adoecer. Curiosamente, muito do que é dito hoje como se fosse novidade em relação à dieta vegetariana, já era difundido por John Harvey Kellogg. A verdade é que o mundo demorou para dar atenção às suas descobertas.
Quando os frigoríficos tentaram intimidar o Dr. Kellogg
Há mais de cem anos, os donos de frigoríficos dos Estados Unidos se uniram e, através de uma campanha lobista, convenceram o Departamento de Agricultura a permitir que eles espalhassem cartazes por todo o país, mostrando a carne como algo extremamente desejável e saudável. À época, o médico John Harvey Kellogg, que mais tarde criaria os Sucrilhos Kellogg’s em parceria com o irmão, ficou sabendo da ação e decidiu protestar.
Com dinheiro do próprio bolso, ele criou cartazes para serem fixados ao lado daqueles divulgados pela indústria frigorífica. Seus cartazes listavam todos os motivos pelos quais as pessoas não deveriam consumir carne, assim fazendo um contraponto. Sentindo-se ameaçados, os proprietários de frigoríficos entraram com uma queixa junto à Comissão Federal de Comércio, em Washington, tentando proibir que os cartazes que condenavam o consumo de carne fossem distribuídos.
O protesto gerou tanta comoção que um advogado foi enviado ao Sanatório Battle Creek, administrado por John Harvey Kellogg, para investigar suas ações. Depois de passar um tempo com o médico, e tomando conhecimento de seus argumentos, o conselheiro da Comissão Federal de Comércio decidiu que ele não merecia nenhum tipo de penalização. Algum tempo depois, o advogado reencontrou Kellog e disse: “Sabe, doutor, não como carne desde o dia em que estive em Battle Creek.”
Saiba Mais
John Harvey Kellogg nasceu em 26 de fevereiro de 1852 em Tyrone, Michigan, e faleceu em 14 de dezembro de 1943 em Battle Creek, Michigan.
Muitas de suas teorias sobre os benefícios da dieta sem carne foram baseadas em estudos que ele realizou com povos orientais que não consumiam alimentos de origem animal.
Em 1913, o 4º Congresso da União Vegetariana Internacional, realizado na Holanda, discutiu pesquisas feitas pelo Dr. Kellogg.
O médico reclamava que os seres humanos consumiam sal demais. Também foi um dos primeiros profissionais a perceber que o fumo se tornaria no futuro a principal causa do câncer de pulmão. À época, poucos deram ouvidos à sua declaração.
Referências
Schwarz, Richard. John Harvey Kellogg, M.D.: Pioneering Health Reformer (Adventist Pioneer). Review & Herald Publishing (2006).
Carson, Gerald. Cornflake Crusade. Rinehart (1957).
Berry, Rynn. Famous Vegetarians. Pythagorean Publishers (2003).
Money, John. The Destroying Angel: Sex, Fitness & Food in the Legacy of Degeneracy Theory, Graham Crackers, Kellogg’s Corn Flakes & American Health History. Prometheus Books (1985).
Kellogg, John Harvey. Plain Facts of Old & Young. I.F. Segner (1882).
South, Amy. Dr. John Harvey Kellogg. Vegan Handbook. The Vegetarian Resource Group. Disponível em http://www.vrg.org/
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O homem de mais de 2,5 mil obras
José Mário: “O desenho é um desabafo mental”
Em 1984, o artista plástico paranavaiense José Mário Afonso Costa descobriu no desenho uma forma de materializar e canalizar emoções e sentimentos. Os traduziu com caneta em formas retas, mais tarde sinuosas, que se tornaram subjetivas e ganharam novas dimensões.
Para o artista, grande admirador de Pablo Picasso, a despreocupação com a objetividade na arte representa a complexidade da vida, a gradação do homem. Guiado pelo subconsciente, às vezes, José Mário intitula uma obra antes mesmo de criá-la. Não se prende aos rótulos, correntes artísticas, e preza pela liberdade intelectual como sendo a fórmula mais completa de se aproximar da essência humana.
Ao longo da entrevista, se mostra inquieto, embora detalhista, enquanto discorre sobre arte, cultura, família e formação artística e profissional. O artista se preocupa em agradar, mas tem opiniões próprias, questiona e fala abertamente sobre qualquer assunto. Algumas perguntas são respondidas com brevidade, já outras, “Zé Mário”, como é mais conhecido, não responde sem antes situar um contexto, levantar da cadeira e contar alguma história do presente ou passado.
Gosta de conversar sem pressa, é observador, e não se priva de manter o diálogo em um nível que mostre se o interlocutor entende algo de arte e também das suas obras. Passamos alguns minutos interpretando um dos desenhos do artista, um universo de curvas, onde o homem também é animal, vegetal, objeto material e imaterial. Confira abaixo os principais trechos da entrevista com o autor de mais de 2,5 mil obras.
DA – Como foi o primeiro contato com o desenho?
JM – Comecei em 1984, motivado pelas figuras que mais me chamavam atenção nos livros do meu pai. Tinha 14 anos e mudei para Curitiba pra fazer o Segundo Grau [Ensino Médio]. Me interessei pelo abstrato e depois pela arte figurativa. Mais tarde, fui para Presidente Prudente [interior de São Paulo]. Estudei medicina por dois anos e meio, mas abandonei o curso. Também passei pela Fafipa.
DA – São experiências que se refletem nas suas obras?
JM – Sim. Foi um período em que obtive muito conhecimento, estando em contato com a arte ou não, até porque passado algum tempo decidi trabalhar com meu irmão no nosso sítio em Santa Maria, perto de Alto Paraná.
DA – Todas essas transformações interferiram na dedicação à arte?
JM – Meus desenhos eram mais compactos, então fui ampliando, aumentando a dimensão, tendo um cuidado maior com as formas, só que sempre chegava o momento de me desligar disso tudo. Ficava dois meses por ano envolvido com desenho e o restante me dedicando a outras atividades bem diferentes.
DA – Nos seus trabalhos, as curvas parecem representar um novo ciclo, a ruptura com a linearidade. Você encara o rompimento com as linhas retas como resultado do seu amadurecimento?
JM – Sim. No começo meus desenhos eram mais infantis. Isso mudou só mais tarde, principalmente após o falecimento do meu pai que era uma inspiração pra mim. Sempre fui muito observador, e prefiro desenhar com naturalidade, sem planejamento. Quando começo algo, dificilmente sei como vai terminar porque minha principal referência é o que está no meu subconsciente.
DA – Quais as artes que mais o inspiram a desenhar?
JM – Já desenhei muito ouvindo música, chego a dar nome de canções aos meus desenhos. Também tem muito cinema no que faço, inclusive uma referência ao martelo do filme The Wall, do Pink Floyd. Nos tempos da faculdade, produzia muito enquanto os professores passavam filme em sala de aula.
DA – Já teve preferência por alguma corrente artística?
JM – Não. Já produzi muito, mas nunca me rendi a nada. Jamais tive preocupação em simplificar o que faço porque o desenho pra mim é um desabafo mental. O que crio à noite é diferente do que produzo durante o dia.
DA – Das 2,5 mil peças já produzidas, muitas estão fora de Paranavaí?
JM – Que me lembre, além de Paranavaí, tenho desenhos em Curitiba, Rondonópolis [no Mato Grosso], Campinas [São Paulo], Paraíso do Norte. Me lembro de quando ilustrei o livro do meu pai [o escritor Altino Afonso Costa que empresta nome ao Teatro Municipal de Paranavaí], Buquê de Estrelas. Nessa época, aprendi a ser mais detalhista.
“Meu objetivo era fazer com que as famílias se fixassem aqui”
Otávio Marques de Siqueira veio a Paranavaí por recomendação do major Fernando Flores
O médico gaúcho Otávio Marques de Siqueira, responsável pela construção do Hospital Professor João Cândido Ferreira, onde é hoje a Praça da Xícara, se mudou para Paranavaí em 1949, a pedido do major Fernando Flores. Além de se responsabilizar pela saúde da população, Siqueira foi incumbido de convencer os migrantes a fixarem residência em Paranavaí e não em Alto Paraná.
Otávio Marques de Siqueira veio a Paranavaí pela primeira vez no tempo da Fazenda Brasileira, em 1941, após participar da inauguração da primeira balsa do Porto São José, um recurso que intensificaria as relações entre Paraná e Mato Grosso. Em entrevista à Prefeitura de Paranavaí décadas atrás, Siqueira relatou que naquele ano quando chegou à Brasileira se deparou com um imenso vazio. “Não havia nada por aqui, só quiçaça e capoeira”, afirmou o pioneiro gaúcho que chegou ao povoado por meio da única estrada que existia à época, reaberta pelo Capitão Telmo Ribeiro em 1939.
Siqueira conheceu em Londrina o diretor da 4ª Inspetoria de Terras do Estado, Francisco de Almeida Faria, que lhe mostrou um mapa retangular de Paranavaí. “Ele olhou com o jeitão dele e falou: ‘Isto está muito monótono’, então traçou duas diagonais no mapa e saiu duas avenidas, uma era a Paraná”, enfatizou o médico que teve os primeiros contatos com o cotidiano da colônia em 1945, mas se mudou para Paranavaí em 1949, a convite do major Fernando Flores que em Londrina lhe falou sobre a necessidade de se construir um hospital em Paranavaí.
“Antes de vir pra cá, eu exercia o cargo de diretor da Santa Casa de Londrina”, destacou Siqueira que coordenou a construção do extinto Hospital Professor João Cândido Ferreira, o Hospital do Estado, em área onde está atualmente a Praça Dr. Sinval Reis, conhecida como Praça da Xícara. Após a inauguração, o pioneiro assumiu o cargo de diretor do hospital. “O Dr. Siqueira era um médico muito bom”, comentou o pioneiro gaúcho Severino Colombelli, acrescentando que Otávio Marques salvou muitas vidas.
Siqueira não veio a Paranavaí apenas para atuar como médico. “Meu objetivo era fazer com que as famílias se fixassem aqui e não em Alto Paraná”, revelou. Pioneiros lembram que esse tipo de missão era muito comum, pois todos aqueles que vinham ao povoado para assumir alguma liderança também tinham o papel de atrair novos moradores. A publicidade mais apregoada em Paranavaí era a de que cada propriedade valeria até cem vezes mais no futuro. Porém, muitos diziam que isso não passava de utopia.
A colônia era um local tranquilo em 1949, quando os principais pontos comerciais pertenciam a Carlos Faber, Severino Colombelli, Luiz Ambrósio e José Francisco, irmão de Natal Francisco, segundo o médico que nunca se esqueceu da vez em que pioneiros pegaram uma jaguatirica nas imediações do antigo Cine Ouro Branco.
Em 1950, o desenvolvimento local chamou a atenção do governador Moisés Lupion que enviou a Paranavaí um funcionário encarregado de vender imóveis. “Deu liberdade para que ele fizesse o que bem entendesse, desde que atraísse pessoas com muito dinheiro”, pontuou Siqueira. Logo surgiu uma onda de assassinatos motivados pela posse de terras. De acordo com o médico, as propriedades eram tomadas na marra. “Eu não me preocupei, nem me meti nisso”, declarou.
Saiba Mais
Otávio Marques de Siqueira nasceu em 18 de julho de 1914 em Santa Maria, no Rio Grande do Sul.