David Arioch – Jornalismo Cultural

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O amigo generoso e o exame de HIV

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Um ano depois, durante um bate-papo, meu amigo me confidenciou o motivo da generosidade

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Pediu que eu passasse no seu escritório no final da tarde para buscar uma doação de R$ 200 (Foto: Reprodução)

No ano passado, um amigo me ligou e pediu que eu passasse no seu escritório no final da tarde para buscar uma doação de R$ 200. “Olha, sei que você está sempre ajudando alguém na periferia de Paranavaí, então pegue esse dinheiro e faça alguma boa ação”, disse. Fiquei feliz com a contribuição porque na mesma semana conheci um casal passando um grande sufoco.

Recém-desempregado, o homem me confidenciou que não tinha a mínima ideia de como fariam para comprar comida naquele mês. Admito que me surpreendi com o gesto desse amigo, de quem não conhecia ainda tal qualidade altruísta. Ademais, não é sempre que as pessoas se dispõem a fazer doações sem que ninguém peça nada.

Um ano depois, durante um bate-papo, meu amigo me confidenciou o motivo da generosidade. Um dia antes da doação, ele foi até um laboratório para buscar o resultado de um exame de HIV. Quando chegou a sua vez de ser atendido, uma moça pediu que ele aguardasse um instante.

Rapidamente ela entrou em uma sala e logo retornou com semblante enleado e suspeitoso. Nisso a tensão do meu amigo foi crescendo e crescendo. “Preciso voltar lá dentro de novo. Por favor, senhor, aguarde mais um minuto. A situação não é brincadeira”, declarou enquanto preocupada o observava.

Se passaram dois, três, quatro e cinco minutos, e nada da moça retornar. Nesse ínterim, meu amigo já estava arrancando os fios da barba com uma das mãos e sentindo o mais desagradável dos comichões. Em pouco tempo sua tez ficou lívida e ele não conseguiu evitar de transpirar. Com a mão úmida e escorregadia, tirou o celular do bolso. E por um reflexo inimaginável o aparelho não espatifou no chão. Tremendo e se atrapalhando entre as teclas que pareciam alfabeto rúnico, digitou uma mensagem para a irmã, pedindo que ela orasse fervorosamente por ele.

“Pelamor de Deus! Tô no momento mais difícil da minha vida, minha irmã! Reúna todo mundo aí e se ajoelhem! Chame até os vizinhos! Se ajoelhem com muita vontade! Orem por mim com todas as forças! Não quero morrer!”, teclou, tentando não desfalecer na frente dos estranhos.

Pela sua cabeça passou um turbilhão de pensamentos. Imaginou até o próprio velório num dia frio e chuvoso em que ninguém compareceria porque iriam preferir cobertor e chocolate quente no conforto de casa. “Infiéis! Infiéis!”, gritava de dentro do túmulo ao receber as últimas pás de terra arremessadas por um coveiro corcunda recém-saído de um filme do Ed Wood.

“E assim morrerei, no mais repentino e ligeiro dos esquecimentos”, deduziu no seu drama copioso. “Não! Pera aí, Deus! Por favor! Assim não! Juro que se eu escapar dessa vou dar todo o dinheiro que tenho na minha carteira pra ajudar algum necessitado. Juro em nome de tudo! Juro agora!”, esbravejou no cerne da própria consciência.

De repente, foi interrompido pela atendente e voltou a si. Quando a moça estendeu a mão para entregar-lhe o resultado, meu amigo viu no rosto dela a confusa fisionomia dantes se dissipando, se transformando em expressão de bonomia. Nem parecia a mesma pessoa. “Desculpe pela demora. Não é nada não. É que hoje ficamos com duas funcionárias a menos e o serviço acumulou. Tá tudo certo! O senhor já pode ir. Tenha um excelente dia”, comentou com voz doce e um sorriso esfuziante.

Written by David Arioch

May 11th, 2016 at 8:33 pm

A ressonância magnética e a quimera dos metais

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Tive a impressão de que a máquina diminuía e me comprimia na mesma proporção que o som aumentava

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Até esqueci como aquela máquina pode ser grande (Foto: Steward Health)

Depois de mais de dez anos, voltei a fazer outro exame de ressonância magnética. Chegando na clínica, confirmei meus dados, assinei uma nova guia, recebi um crachá e sentei em uma confortável poltrona na sala ao lado enquanto o programa da Ana Maria Braga exibia a história de um arquiteto enfrentando problemas com cupins. Ao meu redor, ninguém falava nada. Todos se mantinham silenciosos, com a atenção voltada para a TV.

Tentei acompanhar o desfecho daquela tragédia moderna, mas foi impossível. Meus olhos se voltavam para a porta, aberta ou fechada, por onde as técnicas apareciam chamando os pacientes. Nessas circunstâncias a minha ansiedade se sobrepõe a qualquer outra sensação. Apesar da grande movimentação, logo ouvi meu nome. Ajeitei a touca e segui meu rumo porta adentro.

Caminhei até um vestiário e a moça disse que retornaria em dez minutos. Como de praxe, tirei minhas roupas e sentei na poltrona onde constatei outra vez como as clínicas figuram mais glaciais em dias de chuva. Até a mais sutil das brisas parece capaz de atravessar paredes e dar baforadas nos desavisados, lembrando que nada na vida é inatingível e que o momento pode ser tão duro quanto um arremedo de cimento.

Sobre a minha cabeça havia um pequeno cofre para guardar pertences como relógios, telefones celulares e outros objetos. O observei com atenção até que uma frase ecoou pela minha mente: “Deixe aí tudo que contenha metal porque senão pode acontecer alguma coisa ruim”, advertiu antes a técnica em ressonância magnética. Para corroborar, li um aviso ao lado da porta, informando que metais podem danificar a máquina e causar graves lesões nos pacientes.

Aquilo me preocupou tanto que mesmo nu continuei deslizando as mãos pelo meu corpo, tentando encontrar algum resquício de metal. “Será que não tem nada de metal no meu corpo? Será? Será?”, me questionei, tão angustiado que não descartei a possibilidade de brotar agulhas de chumbo debaixo das minhas unhas dos pés e fios de alumínio das minhas orelhas.

Cheguei a tirar a touca e esfregar as mãos nos cabelos para me certificar de que não havia granalha de aço no couro cabeludo. Depois de vestir a calça e a camiseta que me deram, fiquei pelo menos cinco minutos em insondável introspecção. E nesse ínterim divaguei tanto que meu corpo ficou dormente, tão letárgico que me senti como semente. Tentei levantar, mas não consegui me movimentar. Meus pés estavam presos num vazio imerso por um todo. “Que estranho! Parece um sinal!”, inferi.

De repente a técnica bateu na porta e me chamou. Então a segui até uma sala enorme. Fazia tanto tempo que eu não passava por uma ressonância que até esqueci como aquela máquina pode ser grande. Assim que deitei e sorri com brevidade, a moça franziu a testa e fez um esgar de desagrado. “Nossa, você usa aparelho! Não tem como tirar?” Respondi que não. Ela me observou por alguns segundos e consentiu.

“Olha, vai fazer um barulho tremendo, terrível, por isso vou colocar esses protetores no seu ouvido. Se você passar mal, é só acionar essa bolinha que tiro você lá de dentro, tudo bem?” Acenei positivamente com a cabeça, deitei fingindo tranquilidade e aguardei o início do exame, já enxergando aquele túnel branco como um crematório disfarçado.

Não me recordava como ele era pequeno visto de dentro. Após dois, três e quatro minutos, minha imaginação já tinha trabalhado como nunca. “Nem faz muito ruído. É um som paulatino e suave. Vou acabar dormindo”, ponderei depois de aproximadamente cinco minutos. Crente de que o exame chegava ao fim, ouvi um estrondo tão grande que meus olhos amiudados pelo sono se agigantaram.

Como fui tolo! O exame nem tinha começado. Junto com o barulho, tive a impressão de que a máquina diminuía e me comprimia na mesma proporção que o som aumentava, fora de cadência. E para agravar mais a situação, um barulho desconcertante soou como uma explosão.

“Caramba, será que aconteceu alguma coisa? E se essa máquina pegar fogo comigo aqui dentro?”, fantasiei, já notando as costas quentes e cogitando mudar de posição. Pior foi quando me recordei do aparelho nos dentes e não encontrei espaço o suficiente para levar a mão à boca. Me limitei a sentir a gengiva esbraseada.

Naquele momento uma salada de filmes macabros e distópicos percorreram minha mente. De “Eraserhead”, de David Lynch, ao trash “O Incrível Homem que Derreteu”, de William Sachs, que assisti escondido na Boca do Inferno quando era criança, divaguei por um universo intempestivo de tragédias.

Não foram poucas as vezes que encostei a língua no meu aparelho para ter certeza de que continuava tudo normal. E o barulho se intensificava. A ansiedade aumentava entre os intervalos porque o silêncio me desconcertava. Havia um tipo satírico de claustrofobia que fazia da minha mente uma refém. Respirei fundo, fechei os olhos e tentei restabelecer a serenidade. Não demorou e percebi que pode existir algo mais até na crua dissonância dos ruídos.

Então o barulho se transformou em música quando associei o que ouvi a filmes como “Corra, Lola, Corra” e “Trainspotting”, e bandas como Ministry, Atari Teenage Riot, Nine Inch Nails e KMFDM. Quando o exame terminou, tive a mais venusta das sensações de quem vê uma luz no fim do túnel. Levantei com o coração acalentado, me despedi da técnica e caminhei ao vestiário, onde uma moça que fez o mesmo exame gargalhava em frente a uma das portas. Vi que ela também usava aparelho nos dentes. Nem nos cumprimentamos. Somente rimos, reconhecendo na criatividade da ficção uma piada em forma de redenção.

A recompensa e o medo da danação

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“E se as pessoas soubessem que não ganhariam nada por serem boas?”

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Representação do inferno criada pelo pintor italiano Sandro Botticelli

Ao longo da minha vida, tive contato com diversas religiões e algumas antagônicas em certos aspectos. Fiz catequese e participei de escolas dominicais na minha infância e nos primeiros anos da adolescência. Até para minha surpresa, eu costumava estar entre os melhores alunos, embora minhas dúvidas soassem acéticas ou dignas de um infiel para alguns ou muitos. Ainda assim, eu não hesitava em refletir profundamente sobre o que lia e ouvia. Mesmo pequeno, não tinha facilidade em absorver qualquer coisa como verdade inquestionável.

O comportamento humano já me intrigava naquele tempo porque para além das cortinas de fé eu percebia algo nas pessoas que me parecia estranho e paradoxal. “Seja um bom menino que mais cedo ou mais tarde a recompensa aparece”, me diziam muitos quando eu ainda era criança. E esse discurso se repetiu muitas outras vezes e das mais variadas formas. As palavras mudavam, mas não deixavam de transmitir a mesma mensagem. Até que um dia eu comecei a me questionar.

“E se as pessoas soubessem que não ganhariam nada por serem boas? Se descobrissem que se trata de um dever como ser humano e simplesmente isso? E se após a morte lhe fosse reservado um lugar ao lado daqueles que você considera descrentes, ruins e degenerados? Você ainda faria tudo que fez? Seria realmente a mesma pessoa? E se não houver recompensa, não há motivo para ser bom ou justo?”

Me deparo todos os dias com pessoas que sustentam a própria fé e a ideia de fazer o bem como uma moeda de troca para ser beneficiado no futuro ou no pós-morte, como se Deus tivesse assinado algum termo de responsabilidade ou de indenização pela vida terrena que muitos depreciam na ânsia pelo paraíso. Como não encarar isso como uma forma de mercantilização da bondade? Por que não ser bom porque é sensato e condiz com a natureza humana quando ela não é subtraída da própria essência?

Acredito de fato que o ser humano é naturalmente benevolente, quando não o é significa que em algum momento suas características naturais foram corrompidas. Também penso que o justo nem sempre é verdadeiramente justo por um senso moral, por um senso altruísta. Muitas vezes a bondade nasce do medo da punição, da danação, de ser relegado à escuridão eterna. “Foi tarde. Tá ardendo no inferno, no colo do capeta”, já ouvi copiosamente. E que autoridade tem alguém em afirmar isso? Ou até mesmo desejar o mal a alguém? Quem somos nós para definir o que as pessoas merecem?

Diversas religiões falam que o fiel, o bom, ganhará os céus. Mas ser devoto de uma religião não significa ser bom e vice-versa. A bondade, como a caridade, independe de religião. Ela precisa fluir sempre de dentro do ser humano para fora, e mesmo distante de uma igreja há quem faça ela prevalecer até mais do que a de um suposto fiel. Crer que é melhor por ter uma religião reafirma apenas uma posição de devoto de ocasião.

Muitas vezes também li e ouvi pessoas afirmando que Deus há de punir seus desafetos porque ninguém “mexe com um servo ou serva de Deus”. Aí então surge uma curiosa distorção de crenças em que o religioso se coloca numa posição de deidade enquanto a Deus é delegada a função de subserviência, como um servo que deve atender aos caprichos de alguém com uma visão distorcida e particularista de justiça. Assim há seres humanos que não apenas se veem como merecedores de recompensa, mas vão muito além – eles a exigem em retribuição à fé que afirmam possuir incondicionalmente.

Pequenas reflexões sobre a morte

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Ainda assim lutamos para preservar a convicção de que “somos eternos enquanto vivemos”

Pequenas reflexões sobre a morte

A morte não nos convida para uma partida de xadrez como a educada e ponderada Döden da obra Det Sjunde Inseglet (Foto: Reprodução)

É sempre difícil lidar com a morte sem questionar alguns valores que regem a vida. Conviver com a perda é imprescindível, é humano, assim como enfrentar esporádicas crises existenciais em momentos extremos; quando perdemos alguém, por exemplo. Há acontecimentos que fazem o ser humano se questionar, se autoavaliar diante de tudo aquilo que até então lhe parecia pleno porque ele julgava como inconcebível ou até impossível.

É um pensamento que remete à infância quando atribuímos aos nossos familiares e amigos um status de intangíveis, imortais. Queremos sempre que aqueles de quem gostamos sejam eternos, independente das mais estoicas adversidades. Alimentamos essa ilusão como verdade plausível, diuturnamente tangível, até quando na adolescência ou diante de situação inesperada a ideia da finitude nos arrebata pela experiência.

A morte consegue ser menos seletiva do que nossas escolhas. E ela pode ser aparentemente cruel com a nossa ingenuidade, fiel companheira capaz de alimentar e ao mesmo tempo diluir nossa realidade. Ainda assim lutamos para preservar a convicção de que “somos eternos enquanto vivemos”. Precisamos, de fato, tratar quem importa para nós como heróis, sempiternos, pois a morte não é dada a avisos muito claros. Não nos convida para uma partida de xadrez como a educada e ponderada Döden da obra Det Sjunde Inseglet (O Sétimo Selo), do sueco Ingmar Bergman.

É justo e sensato reconhecer que a vida também pode afastar os seres humanos enquanto a morte é capaz de promover uma grande união de reflexões entre pessoas de tantas gerações que se conhecem ou se desconhecem. Humanos das mais diferentes formas, estilos e perfis – que se complementam e se antagonizam. Pessoas são microcosmos como réplicas ou paródias do macrocosmo, dependendo da concepção em voga. Somos tudo ao mesmo tempo que não somos nada.

Mesmo reconhecendo nossa pequenez, não precisamos negar que o fim de quem quer que seja há de abalar o mundo, mesmo que seja um mundo pessoal, onde um diminuto fragmento, mesmo que invisível à maioria, surge sempre que alguém se vai. A morte deixa seus vestígios – uma talisca de luz, sim, ínfima, não geográfica, que resplandece vaporosa sobre quem tem aptidão para notá-la.

Temos a natural necessidade de vivificar quem se foi porque o tributo clama não somente pela paz dos que partiram, mas também por um algo inominado e indefinível que assegure a manutenção da vida e a sanidade dos que ficaram. Acredito também que a morte é um sopro de vida, uma aragem curta, fugaz, tímida e melindrosa que muitas vezes se esforça para ser reconhecida, principalmente quando a ignoramos.

Written by David Arioch

April 7th, 2016 at 4:27 pm

Cheiro de relva

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“Fazia ruídos insólitos, contorcendo a boca, enrugando a testa e esticando o pescoço”

"Bonachão, percorreu dois quilômetros a pé sem saber que jamais o deixariam partir (Foto: Acervo da Fundação Cultural de Paranavaí)

“Bonachão, percorreu dois quilômetros a pé sem saber que jamais o deixariam partir (Foto: Acervo da Fundação Cultural de Paranavaí)

Foi numa manhã fria e especialmente escura de 1949 que Nicanor acordou assustado e com dificuldades para se movimentar. Sentiu o cheiro de ferrugem do próprio sangue seco que cobria parte das maçãs do rosto e do queixo. O odor nauseante o entorpecia e o fazia lacrimejar a ponto do sangue espesso e sequioso se transformar em bolinhas que se chocavam contra o chão de terra batida. No solo arenoso, iam se juntando e formando uma orbe maior e opaca como uma esfera de terra que as crianças moldam para atirar por brincadeira em amigos e vizinhos.

Rouco, febril e com apenas um olho debilmente aberto, o rapaz não tinha forças para articular palavra sem balbuciar e sentir um tremor que começava nos calcanhares e terminava na nuca. Quando balançava as pernas em vão, sentia os dedos enegrecidos, de pele grossa, saltados para fora do par de sandálias brancas de farrapos. Tocava sem querer uma pasta fétida que se formava a partir de suas fezes, urina e sangue. Sofreu tanto nos últimos dias que desaprendeu a chorar. Fazia ruídos insólitos, contorcendo a boca, enrugando a testa e esticando o pescoço. Com a força que restara, se espicaçava tentando enxergar alguma coisa por uma fresta alongada e espaçosa. Nicanor cobiçava um pequeno raio de sol, mas a única visitante ocasional era uma rajada fortuita de vento glacial e lancinante que tocava-lhe a pele com a delicadeza da lâmina de um canivete.

Às vezes, meneava a cabeça e mirava o teto com o nariz, observando os buracos por onde a água da chuva invadia o velho rancho que um dia serviu para estocagem de café. Apesar de tudo, via alguma beleza no acaso e se sentia grato. Se não fosse a invasão da natureza, completaria 23 dias sem sentir a água ungindo os lábios. Cada gota era sorvida com a satisfação de uma caneca robusta e referta. No entanto, o ânimo oscilava com as horas. Num início de noite sem chuva, somente o canto das cigarras e os guinchos agudos de uma coruja o acalmavam. O silêncio o amedrontava porque trazia o vácuo indescritível da inexistência e do luto daquilo que ainda não faleceu. Sim, espavorizava menos, bem menos que o som sincronizado das botas se aproximando da tapera escura. Com os ouvidos anômalos pelo desespero, Nicanor reconhecia de longe o tinido do facão de penacho em atrito com a parabélum balançando num coldre frouxo.

Nessas horas os seus olhos umedeciam bruscamente, concentrando nas bordas uma dor oxítona que fazia as lágrimas fervilharem. Consoante, o palato inflamava de maneira tão vertiginosa que não conseguia manter a boca fechada, assim como a porta por onde quatro sujeitos de olhos abissais entravam sorrindo uma vez por dia. Sardônicos, sempre chegavam de surpresa. Batiam palmas e diziam as mesmas palavras: “Ô de casa, buona gente, tamu cheganu e tamu entranu!” Fechavam a porta com o cabo de um machado e testemunhavam a agonia de Nicanor como se estivessem diante de um festim.

No frequente esforço sobressaltado para evitar a incontinência urinária, o rapaz reconhecia a derrota. Ficava constrangido e, sentindo-se pior que um sevandija, defecava, sujando mais as pernas e os pés que raleavam o chão com o dorso e as unhas amarelecidas. A zombaria seguia intercalados golpes de vara de marmelo na porção interna das coxas arroxeadas. Quando Nicanor fechava os olhos e o seu queixo encostava no peito, um dos verdugos balançava a corrente que prendia seus pulsos cruzados e ensanguentados. Acordava assustado, titubeava e contraía alguns músculos, principalmente o esfíncter.

Esquecia até da roupa esfrangalhada que usava há mais de mês, tempo suficiente para que colasse em seu corpo como segunda pele. Desejava a morte ao ouvir ao pé da orelha o som estalante de um pedaço de madeira em brasas. Só se tranquilizava ao ver o funesto sujeito careca, parrudo e de dentes escuros se afastando com o naco alaranjado. Enquanto Nicanor fenecia um pouco mais, os quatro algozes comiam broa de milho com manteiga e bebiam um mate tão quente que o vapor molhava as mãos flageladas do rapaz. Após o intervalo, os quatro se levantavam, retiravam seus relhos presos ao cinto da calça e iniciavam o açoite que se prolongava por mais de hora.

Em esforço de reflexão tão dedicado que sentia algo se comprimindo dentro da caixa craniana, Nicanor recordava-se apenas que um mês antes tinha explicado ao patrão, para quem trabalhava desde 1944 em uma propriedade rural de Paranavaí, que mudaria de serviço, abriria o próprio negócio na cidade. O homem então concordou e sugeriu que o rapaz fosse até um rancho no meio da mata no final da tarde para fazer o acerto de contas. Bonachão, percorreu dois quilômetros a pé sem saber que jamais o deixariam partir. Vencido pela aflição incontrolável, gaguejava e suplicava a Deus que o tirasse dali; o permitisse sentir pelo menos mais uma vez o cheiro da relva molhada.

No fim da noite, Nicanor teve convulsão e desmaiou. Prostrado, com a pulsação fraca e principiando o fim, foi arrastado por dois quebra milho para fora da tapera como se fosse pedaço de carniça. Arremessaram seu corpo nas cercanias de um ribeirão e correram, temendo pela própria vida, rememorando a antiga lenda do folclórico Tabaréu do Castiçal, sujeito místico conhecido por cobrar em dobro as mortes em dia de cerração. Na manhã seguinte, o jovem acordou assustado esfregando as mãos pelo corpo. Era difícil acreditar que continuava vivo e que parte dos ferimentos desapareceu, assim como as severas dores nas costas. Perplexo, olhou à sua volta e levou as mãos ao rosto livre do sangue ressequido. Rolou e chorou como criança redescobrindo o mundo ao aspirar intensamente o perfume da tenra relva orvalhada que envolveu seu corpo numa madrugada romanesca.

Curiosidades

Quebra milho era o termo usado para se referir aos jagunços e capangas dos anos 1940 e 1950 em Paranavaí

Dedico “Cheiro de relva” aos peões e colonos explorados e assassinados em Paranavaí nos tempos da colonização.

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Pioneiro forneceu eletricidade a Paranavaí

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Thomaz Estrada iluminou as ruas da colônia e forneceu energia elétrica para muitos profissionais

Thomaz Estrada abriu o primeiro posto de combustível da cidade (Foto: Reprodução)

Nos anos 1940, o imigrante espanhol Thomaz Estrada forneceu energia elétrica para a população de Paranavaí, no Noroeste do Paraná. À época, as ruas da cidade foram iluminadas graças ao gerador do pioneiro.

No tempo em que Paranavaí ainda não contava com o fornecimento de energia elétrica, o espanhol Thomaz Estrada decidiu intervir. O pioneiro tinha um posto de combustível entre a Rua Getúlio Vargas e a Avenida Paraná, sentido ao antigo Terminal Rodoviário. Lá, Estrada mantinha um gerador de energia que poderia ter se limitado a abastecer o empreendimento. Mas o espanhol foi além, estendeu ao máximo a área de fornecimento, beneficiando muitos profissionais que dependiam de energia elétrica para trabalhar.

Em parceria com outros moradores, Estrada também criou alguns esquemas para a iluminação de ruas e avenidas. “O motor ficava dentro do posto e iluminava até o Banco Noroeste”, lembrou o espanhol em entrevista à Prefeitura de Paranavaí há algumas décadas. Para os pioneiros, Estrada fez muito mais que uma benfeitoria, dissipou a escuridão que impedia a colônia de existir no fim do dia. “Com o brilho daquela luz, Paranavaí ganhou nova dimensão, coisa que não se traduz, alegria arredia que destoa coração”, poetizou o pioneiro cearense João Mariano.

O abastecimento de energia deu novo sentido à vida em comunidade. Os moradores se beneficiavam da iluminação noturna realizando atividades que até então dependiam da luz solar. “As crianças aproveitavam a claridade pra brincar um pouco mais na rua”, relatou Mariano. Para o pioneiro mineiro José Alves de Oliveira, conhecido como Zé do Bar, a iniciativa do espanhol, que vivia numa residência ao lado de onde é hoje o Cartório Tomazoni, fez a diferença na colônia.

“Era tudo sertão e havia bicho pra todo lado”

O pioneiro Thomaz Estrada, que nasceu em 2 de julho de 1901, na Espanha, chegou à Fazenda Velha Brasileira, atual Paranavaí, em 1942, por sugestão de Francisco de Almeida Faria, inspetor de terras que conheceu em Londrina. “Me mudei pra cá em 1943. Aqui era tudo sertão e havia bicho pra todo lado. Veados andavam pelas ruas”, ressaltou Estrada.

Paranavaí quando construíram os primeiros postes para condução de energia elétrica (Foto: Reprodução)

O pioneiro admitiu que a fama da Fazenda Velha não era das melhores. “Um dia, ali em frente de onde eu morava, mataram dois”, confidenciou. A única estrada que existia naquele tempo era a que ligava a colônia ao Porto São José, o mesmo picadão para onde o capitão Telmo Ribeiro partia em direção ao Mato Grosso em busca de peões. “O Capitão Telmo tinha uma invernada onde é hoje o Jardim São Jorge”, disse o espanhol. De acordo com Estrada, no início, havia muita gente que não “prestava”. “Tinha muitos enguiços, mas decidi ficar. Coloquei um armazém pra sustentar a família”, pontuou e acrescentou que comprou uma fazenda na Brasileira e a vendeu em seguida.

O documento era a foice e o machado

Segundo o pioneiro espanhol Thomaz Estrada, o documento no período da Fazenda Velha Brasileira era a foice e o machado, ferramentas emblemáticas da colônia entre as décadas de 1930 e 1950. A verdade é que representavam mais do que instrumentos, um paradoxo semeado sob metáforas de luta, força, perseverança, injustiça, fragilidade humana e todas as agruras da colonização.

A Família Estrada viu exemplos disso tudo em Paranavaí. Enquanto o desenvolvimento trouxe mais qualidade de vida, em contrapartida, se intensificou a animosidade, até mesmo por banalidades. “Um dia na nossa loja, o Zé Capataz e o Zé Tabuinha começaram a beber. Eles puseram a faca e o revólver em cima da balança. Pedi pelo amor de Deus para que não brigassem. Daí pegaram eles e levaram pra fora. Outra vez foi o Joaquim das Éguas que tirou os briguentos daqui”, enfatizou Ana Maria Estrada.

Por muitas vezes, a pioneira passou medo no tempo da colonização. Quando o marido viajava, Ana Maria e o filho tinham de atender todos os fregueses. À época, muitas vacas dormiam em frente à casa comercial dos Estrada. “Também tinha muito mato em volta. Só foi mudando depois de 1950″, garantiu a pioneira.