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Aves Exiladas

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Eles contavam histórias de um lugar mítico, chamado Paraná. Um mar de terras férteis

Crônica em homenagem aos paranaenses faz parte do livro "Memorial do Alto Tietê", de Antonio Neto (Foto: David Arioch)

Crônica em homenagem aos paranaenses faz parte do livro “Memorial do Alto Tietê”, de Antonio Neto (Foto: David Arioch)

Maringá, Apucarana, Cornélio Procópio, Londrina, Cianorte, Campo Mourão, São José dos Pinhais: nomes que começaram a ser ouvidos na periferia de Poá, em meados dos anos 70, com a chegada de inúmeras famílias paranaenses. Eles contavam histórias de um lugar mítico, chamado Paraná. Um mar de terras férteis. Um mundo belo, onde cresciam as lendárias araucárias e se ouvia o canto da gralha azul.

Chegavam famílias inteiras. Pai, mãe, filhos e agregados. Procuravam os terrenos baratos da periferia. Construíam casas pequenas, nas quais acontecia o milagre do compartilhamento dos mínimos espaços e recursos. Êxodo rural era uma expressão que eu não compreendia. Quando, por acaso, eu a ouvia; logo imaginava o êxodo bíblico. Moisés à frente. O povo eleito atrás. Seguindo-o. Todos atravessando, estupefatos, o Mar Vermelho. Qual faraó teria expulsado tanta gente do Paraná? Quem seria o Moisés que os conduzira até ali?

Perguntas que ficaram sem resposta…

Início dos anos 80. Mais famílias chegando! Construção do conjunto habitacional Nova Poá. Meu pai e um vizinho, paranaense, trabalharam na construção desse novo bairro. Íamos eu e uma mocinha, a Eva, levar as marmitas para os nossos pais. A Eva me falava de Maringá, da torre da catedral em formato de cone e de outras singularidades. Ganhávamos, desses vizinhos, belos cartões-postais dessa terra intrigante.

E a década de 80 avançava trazendo mais gente do Sul. Que faraó teria o poder de exilar tanta gente? Quem seria o Moisés que guiaria esse povo? Adonai! Não havia nenhum Moisés! Só a dor de deixar a terra natal e chegar, quase sem recursos, a uma Canaã pauperizada!

Muitos migrantes, que chegaram crianças, já são avós. Criaram raízes no Alto Tietê. Perderam a verdura e o cheiro de novidade que trouxeram na chegada. Foram bem-vindos! Integraram-se! Trouxeram cultura e foram aculturados. Antropofagia cultural: paulistas e paranaenses.

O Alto Tietê acolheu e aninhou um número fora das estatísticas dessas aves exiladas, que chegaram cansadas, desiludidas e traziam no olhar a esperança de encontrar a Terra Prometida. Adonai!!! Por que da terra não mana mais leite e mel?

Crônica de autoria do escritor paulista Antonio Neto, radicado em Santa Maria de Jetibá, no Espírito Santo. O texto faz parte do seu livro de crônicas “Memorial do Alto Tietê, comercializado no site da livraria da Editora Penalux (editorapenalux.com.br/loja) por R$ 32.  

Sobre a crônica, Antonio Neto explica:

“É um tributo aos migrantes paranaenses que se aninharam no Alto Tietê. A migração paranaense ficou esquecido por causa da maciça migração vinda de outros estados. Então eu quis resgatar essa história pouco contada.”

Written by David Arioch

February 6th, 2016 at 11:30 am

Memorial do Alto Tietê, um manifesto de tudo que somos

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Sem melodrama, Antonio Neto emociona e faz refletir sobre a difícil realidade dos jovens da periferia

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Memorial do Alto Tietê é uma obra sobre a vida, a importância de sentir a própria existência (Imagem: Divulgação)

Em Memorial do Alto Tietê, o escritor paulista Antonio Neto, radicado em Santa Maria de Jetibá, no Espírito Santo, é autor e personagem em fragmentos bem estruturados que versam sobre várias etapas da sua vida, mas principalmente a infância. Sem precisar decair para o melodrama, emociona e ao mesmo tempo faz refletir sobre a difícil realidade dos jovens da periferia. A partir de histórias curtas, cândidas e ao mesmo tempo analíticas, o autor desvela a hipocrisia de uma sociedade mergulhada em pré-conceitos e preconceitos.

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Em junho de 2015, Antonio Neto me convidou para escrever o prefácio do seu livro de crônicas (Fotos: David Arioch)

E faz tudo isso num misto de criança e adulto norteado pelo requinte literário, descritivo e memorial. O grande diferencial de Antonio Neto subsiste na simplicidade da linguagem, no ato de se lançar como um espírito livre, na apresentação dos acontecimentos e das impressões de que um passado distante não está tão longe assim se o leitor observar o que acontece nas periferias das pequenas e grandes cidades, onde a vida acontece em um ritmo diverso, adverso e peculiar.

A relação de afeto com a família, os amigos e as coisas da nostalgia humana são costuradas sob uma perspectiva que permite uma compreensão universal. O peso de algumas histórias é contrabalanceado com a leveza de outras. O autor também evidencia e celebra a maturidade humana ao olhar para o passado com uma sensibilidade peculiar, sem nutrir rancor, amarguras ou desprezo.

É justo e essencial dizer que Memorial do Alto Tietê é um livro sobre a vida, a importância de sentir a própria existência, se arriscar e aceitar que o ser humano pode tanto ser resultado de um meio quanto da realidade, talvez até onírica, que cativa dentro de si mesmo. Se apresenta como um manifesto de tudo que somos e podemos ser se nos apegarmos ao que nos move e nos comove.

Nas 19 crônicas da obra, Antonio Neto se entrega em extensão, convida o leitor a mergulhar no passado, sentir a própria essência, se enxergar sem melindre, aprender a conviver com as alegrias, as tristezas, as perdas, as realizações e as decepções. Tudo isso se soma num convite atemporal para o ser humano se esforçar em semear a empatia e entender que o que somos hoje não merece ser dissociado do que fomos no passado. A vida deve ser vivida e celebrada em aceitação. O livro está à venda na livraria da Editora Penalux (editorapenalux.com.br/loja) por R$ 32.

Saiba Mais

Em junho de 2015, o premiado escritor Antonio Neto, que conheci durante o bate-papo com autores no Festival de Música e Poesia de Paranavaí (Femup) de 2014, me convidou para escrever o prefácio (disponibilizado integralmente logo acima) de “Memorial do Alto Tietê”. Foi uma grande e feliz surpresa. Afinal, é muito gratificante ser convidado a produzir o texto de abertura de um livro, até porque essa missão só é dada a alguém em quem confiamos a compreensão de nossos sentidos literários. Além disso, o que corrobora mais ainda tal importância é o fato de que é hábito antigo do leitor o ato de ler o prefácio antes de mergulhar na obra. Antonio Neto, muito obrigado pelo convite e confiança!