Archive for the ‘Memórias’ tag
As trapalhadas de Alexandre Dumas
Célebre autor de Os Três Mosqueteiros viveu aventuras dignas de um mosqueteiro trapalhão
Famoso por obras como Os Três Mosqueteiros e O Conde de Monte Cristo, o escritor francês Alexandre Dumas, o Père (Pai), viveu aventuras dignas de um mosqueteiro trapalhão. Uma das mais célebres transcorreu quando ele tinha 23 anos.
Depois de discutir com um soldado durante uma partida de bilhar, Dumas o desafiou para um duelo, confiante de que o impasse seria resolvido com pistolas. Porém, para sua surpresa, ficou decidido que eles deveriam duelar com espadas. Mesmo preocupado, ele compareceu ao compromisso pontualmente. Uma hora mais tarde, seu oponente ainda não havia chegado. Então o escritor soube que o soldado continuava dormindo, e assim o desafio foi adiado.
No dia seguinte, 5 de janeiro de 1825, apesar do frio, Dumas aceitou retirar a capa e aproveitou para remover a parte de cima do seu traje. No mesmo instante, sua calça foi arriada e os espectadores foram às gargalhadas. Com ar de irritado e confuso, ele deu o passo inicial do duelo, fazendo seu oponente saltar para trás, tropeçar em uma raiz e dar uma cambalhota na neve.
Sentindo-se enganado perante a evasiva, Alexandre Dumas esbravejou: “Eu mal o toquei!” O combate foi encerrado após o oponente argumentar que ficou chocado ao perceber como a lâmina da espada de Dumas estava fria. “São histórias que ele definiu como o início de sua carreira como um romântico. No entanto, é preciso levar em conta que suas memórias são tão confiáveis quanto suas obras em que mistura história e ficção. Mesmo assim não deixam de ser relatos cômicos e gloriosos”, declara o escritor canadense e professor de literatura Steve King.
Entre outras aventuras protagonizadas por Alexandre Dumas está uma em que o seu oponente não pôde comparecer ao duelo porque ficou resfriado depois de atravessar o canal a nado. E o terceiro desafio também não aconteceu porque o desafiante perdeu dois dedos em um combate anterior. Mais tarde, prevendo que uma das armas poderia falhar em um duelo de pistolas, Dumas e um político com quem se desentendeu em uma discussão concordaram com um novo tipo de peleja.
Arremessaram uma moeda e quem perdesse deveria atirar em si mesmo. Derrotado, o escritor francês foi até um quarto e fechou a porta. Quando o silêncio já deixava o público apreensivo, ouviram um disparo e correram até o quarto. Assim que a porta se abriu, Dumas apareceu: “Cavalheiros, o mais lamentável aconteceu. Eu perdi!”
Ao longo da carreira, Alexandre Dumas escreveu 250 livros com a ajuda de 73 assistentes. E muitas de suas obras trazem passagens de outros autores que jamais foram citados. Porém, como à época não havia nenhum impedimento legal, seus leitores não se importavam ao saber a verdade. E mesmo em outras circunstâncias ainda o defenderiam.
“Ele era alguém que levava sua espada e seu talento com um sorriso”, enfatiza King, acrescentando que no capítulo um de Os Três Mosqueteiros os leitores estão diante de um Dom Quixote de 18 anos, vestido com um gibão de lã. Assim como o ingenioso hidalgo, D’artagnan também foi humilhado. Derrotado até pelos camponeses das grandes cidades, o jovem viu a espada de seu pai sendo quebrada ao meio. Depois zombaram dizendo que ele deveria montar seu cavalo engraçado e voltar donde veio.
Saiba Mais
Alexandre Dumas nasceu em 24 de julho de 1802 em Villers-Cotterêts, no departamento de Aisne, e faleceu aos 68 anos em 5 de dezembro de 1870 em Puys, no departamento de Seine-Maritime.
Referências
http://www.todayinliterature.com/
http://www.dumaspere.com/pages/vie/biographie.html
Ross, Michael. Alexandre Dumas. Newton Abbot, London, North Pomfret (Vt): David & Charles (1981).
Gorman, Herbert. The Incredible Marquis, Alexandre Dumas. New York: Farrar & Rinehart (1929).
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Memorial do Alto Tietê, um manifesto de tudo que somos
Sem melodrama, Antonio Neto emociona e faz refletir sobre a difícil realidade dos jovens da periferia
Em Memorial do Alto Tietê, o escritor paulista Antonio Neto, radicado em Santa Maria de Jetibá, no Espírito Santo, é autor e personagem em fragmentos bem estruturados que versam sobre várias etapas da sua vida, mas principalmente a infância. Sem precisar decair para o melodrama, emociona e ao mesmo tempo faz refletir sobre a difícil realidade dos jovens da periferia. A partir de histórias curtas, cândidas e ao mesmo tempo analíticas, o autor desvela a hipocrisia de uma sociedade mergulhada em pré-conceitos e preconceitos.
E faz tudo isso num misto de criança e adulto norteado pelo requinte literário, descritivo e memorial. O grande diferencial de Antonio Neto subsiste na simplicidade da linguagem, no ato de se lançar como um espírito livre, na apresentação dos acontecimentos e das impressões de que um passado distante não está tão longe assim se o leitor observar o que acontece nas periferias das pequenas e grandes cidades, onde a vida acontece em um ritmo diverso, adverso e peculiar.
A relação de afeto com a família, os amigos e as coisas da nostalgia humana são costuradas sob uma perspectiva que permite uma compreensão universal. O peso de algumas histórias é contrabalanceado com a leveza de outras. O autor também evidencia e celebra a maturidade humana ao olhar para o passado com uma sensibilidade peculiar, sem nutrir rancor, amarguras ou desprezo.
É justo e essencial dizer que Memorial do Alto Tietê é um livro sobre a vida, a importância de sentir a própria existência, se arriscar e aceitar que o ser humano pode tanto ser resultado de um meio quanto da realidade, talvez até onírica, que cativa dentro de si mesmo. Se apresenta como um manifesto de tudo que somos e podemos ser se nos apegarmos ao que nos move e nos comove.
Nas 19 crônicas da obra, Antonio Neto se entrega em extensão, convida o leitor a mergulhar no passado, sentir a própria essência, se enxergar sem melindre, aprender a conviver com as alegrias, as tristezas, as perdas, as realizações e as decepções. Tudo isso se soma num convite atemporal para o ser humano se esforçar em semear a empatia e entender que o que somos hoje não merece ser dissociado do que fomos no passado. A vida deve ser vivida e celebrada em aceitação. O livro está à venda na livraria da Editora Penalux (editorapenalux.com.br/loja) por R$ 32.
Saiba Mais
Em junho de 2015, o premiado escritor Antonio Neto, que conheci durante o bate-papo com autores no Festival de Música e Poesia de Paranavaí (Femup) de 2014, me convidou para escrever o prefácio (disponibilizado integralmente logo acima) de “Memorial do Alto Tietê”. Foi uma grande e feliz surpresa. Afinal, é muito gratificante ser convidado a produzir o texto de abertura de um livro, até porque essa missão só é dada a alguém em quem confiamos a compreensão de nossos sentidos literários. Além disso, o que corrobora mais ainda tal importância é o fato de que é hábito antigo do leitor o ato de ler o prefácio antes de mergulhar na obra. Antonio Neto, muito obrigado pelo convite e confiança!
Um dia reconhecendo a fragilidade da vida
Esgotado, mantinha os olhos semimortos em direção ao líquido âmbar profundo dentro do copo
Acordei cedo numa manhã de outubro de 1993. Após o café da manhã, abri o jornal para ler o obituário. Garotinha de 11 anos, homem de 31 anos e senhora de 51 anos estavam na página, vítimas de meningite, acidente de carro e câncer de mama. Os três tinham nomes completos com a mesma quantidade de letras. A expressão no olhar de cada um nas fotos em preto e branco era bastante similar. A mim, transmitia um misto de melancolia e fragilidade. Além disso, fiquei sabendo depois que faleceram no mesmo horário, nem um minuto a mais ou a menos.
Enquanto lia, me distraí e levei um baita susto quando ouvi a voz da minha mãe. Fechei o jornal e, atendendo a um pedido dela, fui até a Casa Moreira, na Rua Manoel Ribas, comprar alguns produtos de limpeza. No caminho, só conseguia pensar no que a morte teria levado de cada falecido. “Ninguém nunca mais vai ver aquelas pessoas andando por Paranavaí. Acho que deve ter gente chorando, gente com raiva… O que será que estão pensando sobre a morte? Nossa! Aqui morre gente todo dia… Se existe paraíso, deve ser um lugar gigante pra caber esse povo todo”, refleti.
Na Moreira, assim que coloquei a mão em um frasco de alvejante, ouvi uma mulher de pouco mais de 30 anos chorando. Me aproximei e a vi segurando um maço de velas e retirando uma grande caixa de fósforos da gôndola. Entre soluços, comentou com sua mãe que a sua filha disse na semana anterior qual era o seu sonho. “Mãe, quero cuidar do Tininho. Acho que ele tá doente. Você viu como a barriga dele tá inchada? Se eu melhorar, quero ser médica de animais, assim nunca vou deixar nenhum bichinho sofrer”, narrou a mulher, reproduzindo com sofreguidão o discurso da filha. Seus olhos negros como a noite denunciavam através de um aureolado carmim que o choro se estendeu por tanto tempo que havia sinais de queimaduras na ourela dos olhos.
Quando eu estava me afastando, escutei a moça relatando num rompante emocional: “Perdi a Betina, mãe! A perdi pra sempre! Sabe o que ela me falou antes de morrer? ‘Vou dormir um pouquinho, mãe. Você me acorda daqui a pouco?’” Em seguida, as duas se abraçaram dentro do mercado. E assim continuaram, numa troca de confidências não verbalizadas. Em respeito àquele momento, e com receio de ser visto, me distanciei vagarosamente e passei pelo caixa. Então as duas sumiram do meu campo de visão.
No mesmo dia, antes do almoço, fui com meu pai ao Restaurante Magia, na Avenida Distrito Federal, buscar quatro marmitas. Quase todas as mesas e cadeiras estavam ocupadas por famílias, grupos de amigos e de colegas de trabalho. Notei pessoas em silêncio, sorrindo, contando anedotas, falando alto e repreendendo os filhos pequenos que circulavam por baixo das mesas. Com os braços curtos abraçando o topo da cabeça, fingiam que fugiam de bombardeios.
Em um canto, sentado em um banco, o único homem solitário no restaurante deslizava o dedo indicador da mão direita pelas bordas de um copo de whisky. O seu aspecto sorumbático e adventício contrastava com o cenário, assim como as olheiras formando arcos de ciprestes tão densos que davam a impressão de pesar sobre os seus olhos, o forçando a inclinar a cabeça em frente ao balcão. Esgotado, mantinha os olhos semimortos em direção ao líquido âmbar profundo dentro do copo. As bebericadas eram insuficientes para umedecer os lábios esquálidos e ressecados. Parecia não se importar em suavizar aquelas pequenas fendas que aos poucos se transfiguravam em cicatrizes.
Naquele local a única coisa que o incomodava era a dormência das pernas. Por isso, vez ou outra movia os pés do apoio do banco e os sacolejava. Numa dessas meneadas, um chaveiro de prata escorregou e ficou pendurado no bolso esquerdo da calça de linho cinza, por onde despontava a imagem de uma jovem mulher nos anos 1970. Ocasionalmente o sujeito deslizava os dedos pela foto enquanto conduzia os olhos mortiços até um rádio pequeno a poucos metros de distância que executava “Please, Forgive Me”, de Bryan Adams, em volume baixo.
Ao final da música, o senhor de meia-idade pagou a conta, acenou com a cabeça sem dizer palavra e atravessou o restaurante lotado. Não notou qualquer presença – ou preferiu ignorar. Nem olhou para os lados. Somente parou na entrada do estabelecimento, observou rapidamente o céu, abriu um relógio de bolso dourado para ver as horas e seguiu pela Avenida Distrito Federal com o rosto mirando o bico abaçanado dos sapatos.
No início da tarde, por volta das 13h, minha mãe me chamou para ir ao Cemitério Municipal de Alto Paraná ajudar a limpar os túmulos da minha bisavó e de dois tios-avôs falecidos na juventude. Me empolguei com a ideia de rever o lugar, já que no meu ideário de criança uma necrópole nunca significou simplesmente um ambiente de consternação, mas também um universo de possibilidades de aprender um pouco mais sobre a vida e as pessoas.
Depois de percorrer 19 quilômetros de asfalto e mais alguns de senda – sentindo imponderável friozinho na barriga ao passar por tantas lombadas de terra, fomos surpreendidos por um cãozinho mestiço, bigodudo, de pelagem rala e acobreada que correu em frente ao carro enquanto assistíamos as cortinas de poeira sabulosa ocultando o horizonte com a intensidade de um siroco. Por sorte, meu pai conseguiu frear a tempo.
Escanifrado e de barba sarapintada, um rapaz recostado na carroceria de um caminhão velho carregado de melancias orgânicas tirou o cigarro de palha do canto da boca. Veio em nossa direção segurando com a mão esquerda um facão respingando suco de melancia. Com a direita acompanhada de um olhar dúbio, acenou para o meu pai abaixar o vidro.
“Óia, não leve a mal não. Além de pestiada, a bichinha tá baruiano. Então ela fica tchuca tchuca. Ô alemoa, traz uma metade dessa melancia aí que vou taiá pro homem aqui”, gritou o rapaz para a sua companheira. Meu pai sorriu, agradeceu e disse que não era necessário. Ainda assim, o homem insistiu até levarmos um pedaço da fruta de miolo vermelho tão aveludado que parecia uma iniquidade comê-lo.
Perto da entrada, durante a limpeza do túmulo da minha bisavó, minha mãe perguntou se eu sabia o porquê do cemitério ficar tão longe da cidade. “Quando foi construído, pensaram que o progresso, a área urbana de Alto Paraná, viria até aqui. Uma pena! As erosões não permitiram construções nesta área”, explicou. No terceiro jazigo, do meu tio-avô João, falecido em 1962, havia flores de uma ex-namorada dos tempos da juventude.
A poucos metros de distância, o som de uma brisa, que fazia árvores das mais diversas espécies se inclinarem sobre os visitantes ,desapareceu em meio a soada de passos fragorosos e vozes dissonantes. O pandemônio chamava a atenção para uma jovem de beleza delicada, pele oliva, cabelos castanhos e não mais que 25 anos caída sobre uma lápide. Ela não se movia. Estava mole e frágil como a rosa vermelha e antes cálida que murchou com a soalheira, se dobrando ao seu lado dentro de um vaso de cerâmica rosácea. Em meio ao barulho ensurdecedor dos curiosos, seu rosto tinha feição serena e alheia. Quem sabe, como sua própria existência.
Fora do cemitério, talvez por educação, algumas beatas praguejavam a moça pelo suicídio à base de estricnina. “Quis morrer? Tá bom! Conseguiu. Mas acha que vai ingrupi Deus? Não vai não! Lugar de quem faz isso é no inferno. Aaah! Se fosse minha filha tinha levado uma camaçada de pau pra não ter esse tipo de pensamento de gente varrida!”, esbravejava uma senhora de pelo menos 60 anos, representante de uma entidade filantrópica. Lá fora, um pedreiro que sempre fazia bicos de reforma e limpeza de túmulos no mês de outubro contou a alguns abelhudos o possível motivo da morte da moça.
Em casa, à noite, recostei a cabeça no travesseiro e demorei a dormir, refletindo sobre tudo que vivenciei naquele dia 30 de outubro de 1993. Da janela do meu quarto, observei de soslaio as parreiras de uvas que se enrolavam nas treliças de arame rente ao muro branco. Mais adiante, um céu quebrantado e abissal me fez imaginá-lo furibundo, prestes a engolir o mundo. “Cadê as estrelas? Cadê a lua? Talvez esteja de luto pelas tantas estrelas que viu nascer e morrer. Será que se cansa como nós? Ah! Não dá pra saber! Deve tá reunindo forças pra ressurgir com a manhã!”, pensei.
Voltei meus olhos para as parreiras e notei que algumas tinham se soltado das treliças. Pareciam quebradiças, sem liames, moribundas. Então lembrei das três pessoas do obituário. Ao longo de uma manhã e uma tarde o acaso me conduziu a elas através da dor daqueles que padeciam diante do vácuo da ausência e da contumácia da solidão.
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Quando Alex Kidd nos inspirou a viver
“Por um momento, quis ser admirado por explodir tijolos e saltar sobre balões vermelhos”
A primeira vez que joguei videogame foi em 1988, quando meus pais trouxeram para casa um Atari 2600. O ligávamos em uma TV com caixa de madeira de 21 polegadas. Eu achava o controle engraçado porque me lembrava o estribo de uma bicicleta na posição vertical. No dia do teste, minha empolgação era tão grande que eu não conseguia parar de sorrir. Parecia o Animal do desenho animado Muppet Babies. Também tive uma repentina crise de comichão que só desapareceu depois de 30 minutos jogando Enduro. Para mim, aqueles carrinhos que mais se assemelhavam com aranhas deformadas representavam a mais fidedigna perfeição. “Olha, Douglas! Legal demais, né? Tem até disputa na neve”, comentava com meu irmão mais velho.
Depois de Enduro, conhecemos uma infinidade de outros jogos, como River Raid, H.E.R.O, Keystone Kapers, Space Invaders, Pac-Man, Pitfall, Boxing, Ice Hockey, Freeway, Sneak ‘n Peek, Spider-Man, Adventure, Donkey Kong, Skiing e Mario Bros. O que facilitava o acesso eram os cartuchos multijogos. A maior diferença de se jogar Atari quando o videogame ainda estava no auge era a oportunidade de ver as reações de crianças, adolescentes e adultos. Não era difícil testemunhar pessoas chorando de alegria ao jogar pela primeira vez. O videogame também funcionava como um tipo peculiar de “medidor de solidariedade”. Ou seja, você podia perceber facilmente quem eram seus amigos, colegas e conhecidos mais egoístas. Alguns chegavam a chamar vizinhos apenas para assistir aos jogos, sem oferecer qualquer possibilidade dos convidados encostarem as mãos em um controle.
Participei de um episódio assim na casa do garoto mais rico do meu bairro em 1989. Detentor de um Master System novinho, ele fez questão de chamar a minha atenção e a de mais outras seis crianças. Na tarde daquele dia, brincávamos de esconde-esconde nas imediações de um terreno baldio perto da minha casa, na Rua Pernambuco, em Paranavaí. “Olha, meu pai trouxe pra mim dos Estados Unidos o melhor videogame do mundo. É um Master System. Hum…aposto que nunca ouviram falar dele, né? É muito, muito melhor do que o seu Atari. Quem quiser pode ir lá em casa daqui meia hora que vou mostrar como ele é perfeito”, disse o menino. Imediatamente, sem se despedir, virou as costas e foi embora.
Na hora, nem me importei com o tratamento dado pelo garoto. Ignorei a sua altivez, arrogância e pedantismo. Me preocupei apenas com as palavras Master System. A princípio, o resto foi descartado como se eu jamais tivesse ouvido qualquer outra frase saída de sua boca descarnada. Aquele nome mexeu tanto com a nossa imaginação que paramos de brincar de esconde-esconde. Sentamos no meio-fio e comentei em tom de contemplação: “Master System parece um nome bonito, né? Maaa…sss…teer…Syyysss….teeem. Aaaah, mas será que existe coisa melhor que Atari? Atari é Atari!” Na nossa turma de jovens de quatro a sete anos, todo mundo concordou. Alguns balançaram a cabeça e outros emitiram apenas um monossilábico “aham” seguido por risos. Chegada a hora, fomos até a casa do “Pozinho”, um apelido oculto que atribuímos àquele garoto que vivia no palacete branco da esquina. Como passamos boa parte da tarde brincando de esconde-esconde, escalando árvores e atirando com pistolas de água, não estávamos bem limpos.
Quando chegamos à esquina, do alto de seu quarto, contíguo a uma sacada romanesca, Pozinho nos observou com um olhar displicente e sobranceiro. Talvez nos enxergasse como formigas obreiras que estavam ali para cultuá-lo, levá-lo ao êxtase com nossa inferioridade reafirmada na falta de acesso a um videogame, um objeto de desejo recém-despertado em nós por ele mesmo, na gana de tentar ferir nossos sentimentos. Sim, lá em cima estava uma criança de seis anos, mas com anseios perniciosos tão sobressaltados que despertava admiração até em adolescentes celerados. Assim que Pozinho se afastou da janela, fiquei na ponta dos pés para acionar o interfone. Martinha, uma senhora negra, alta, simpática e de pele reluzente que trabalhava como empregada doméstica na casa há mais de 20 anos, destravou o portão. Quando coloquei meus pés sobre um tapete felpudo dourado que ornava o antepasso da sala, percebi como meu tênis chinesinho branco estava demasiado sujo.
Os cadarços encardidos me deixaram constrangido ao ver tudo brilhando no interior daquele cômodo. Um aroma suave e cítrico, simbolizando a mais devotada das limpezas domésticas, amplificava o meu pré-remorso. “Que vergonha! Ela limpou aqui agora”, pensei comigo mesmo. No canto, um vaso grande com lírios-da-paz, uma das plantas preferidas da minha mãe, realçava ainda mais o perfume do ambiente. Ao ver minha hesitação, Martinha disse que não tinha problema nenhum. “Entre, menino! Não vão ser seus pés miúdos e menores que a palma da minha mão que vão atrapalhar o meu trabalho. Pode ficar sossegado!”, garantiu ela com um sorriso tão confortável que fez sucumbir o meu mal-estar. Na mesma esteira, seguiram-me as outras crianças. Martinha então nos levou até o quarto de jogos do Pozinho, situado no terceiro piso.
Éramos como os sete anões seguindo os comandos de Martinha, a nossa laboriosa Branca de Neve nos guiando aos aposentos da Rainha Grimhilde. Antes de abrir a porta e se despedir, ela recomendou que ignorássemos o jeito grosseiro e a metidez do juvenil patrão. Assim que entramos, Pozinho nos deu uma olhadela e comentou: “Todos vocês vieram? Certo! Só não fiquem muito perto de mim nem da TV porque preciso de espaço pra me concentrar.” Olhamos uns aos outros e seguramos o riso com as mãos, ignorando nossas unhas com resíduos de terra e de cascas de árvore. Sem perceber nossa reação, o garoto ligou o videogame e se acomodou em uma confortável poltrona inclinável que trazia uma etiqueta com a bandeira dos Estados Unidos. Ao alcance de sua mão direita, havia uma bandeja com Dadinho, Ice Pop, balas Fizz, pirulitos do Zorro, 7 Up e Sukita.
Ensaiando uma centelha de educação, sugeriu que sentássemos onde quiséssemos. Não havia lugar para todo mundo, então fomos todos para o chão. Em poucos minutos, nos mostrou Alex Kidd, um jogo de plataforma em que um garoto orelhudo destrói pedras com os punhos. Nossos olhos brilhavam ao ver tantas cores em um game. O que era aquilo? Quem era aquele herói cabeçudo serpenteando por bosques e cavernas? Pensei que estivesse sonhando. Quis morar naquele quarto para sempre. Não! Por um momento, quis viver dentro do jogo, sendo admirado por explodir tijolos e saltar sobre balões vermelhos. Como o jogo estava em inglês, Pozinho fez questão de dizer sem base alguma que ele entendia tudo e nós não entendíamos nada.
O ignoramos e trocamos olhares maliciosos. Nos comunicamos muito bem sem precisar abrir a boca. Havia um desejo unânime, não verbalizado, de tapar a boca de Pozinho com esparadrapo e trancá-lo dentro do guarda-roupa. Jogaríamos Alex Kidd por algumas horas e então o soltaríamos. Sim, na teoria parecia plausível. Só que a realidade era muito diferente. Não tínhamos coragem, nem achávamos aceitável fazer algo assim. Fabiano e Mariana, dois da nossa turma, não resistiram, se levantaram e pediram para jogar. Pozinho desdenhosamente declinou a proposta com um olhar de desprezo seguido por uma careta de nojo. A negativa os emocionou sobremaneira que ao longe se podia notar a transparência e o aspecto orvalhado de seus olhos. “Rá! Até parece! Chamei aqui só pra vocês passarem vontade mesmo. Agora podem sair daqui. Tchau!”, declarou sem velar o sorriso sardônico e a intenção capciosa.
Nos levantamos, abrimos a porta e descemos os degraus. Olhei para trás e mais uma vez ele estava nos observando. Se regozijava com a nossa pequenez, já que a sua anormal baixa estatura para alguém de seis anos não permitia tal comportamento tão empertigado quando estávamos de pé diante dele e sobre o mesmo piso. Para quebrantar sua satisfação, acenei, sorri e agradeci o convite. Lá embaixo, a iluminada Martinha nos aguardava com doces e refrigerantes. “Olha o que separei pra vocês. Coloquem em seus bolsos ou escondam em suas roupas e vão com Deus”, sugeriu numa despedida afetuosa. De volta ao meio-fio, entre goles de Soda Limonada, dividimos sorvete fura bolo, arrozinho em flocos, azedinho de morango e balas. Ao escurecer, fomos para casa. No dia seguinte, eu soube que três amigos adoeceram de tanta vontade de jogar Alex Kidd no Master System. Ficaram febris e passaram dias sem consumir alimento sólido.
Irritado, me senti tentado a retornar à casa de Pozinho para destruir o seu videogame a marteladas. Consegui me controlar e também evitei de contar a algum adulto o que aconteceu. Ninguém da nossa turma relatou nada. Uma semana depois, já não nos importávamos muito com o Master System. Continuamos jogando Atari, realizando pequenos torneios de jogos de corrida e luta. Quando enjoávamos, saíamos para escalar árvores, colher frutas ou brincar de esconde-esconde, pega-pega e “balança, caixão”. Em frente à Sanepar, subíamos em um muro alto que permitia uma visão privilegiada da baixada do Jardim Paulista, onde mais tarde desceríamos com carrinhos de rolimã.
Azul e límpido ou enuviado e chovediço, o céu nunca nos mostrou limites, assim como as sibipirunas, os ipês, as sete-copas e os jamelões que se refaziam conforme as estações do ano. Os muros e as escadas cada vez maiores também reconduziam nossas aventuras. As novas construções instigavam nossas visitas tanto quanto as casas e os barracões abandonados. Cães de diversos tamanhos ainda nos perseguiam, não por maldade, mas porque no dia a dia eles eram personagens dos jogos de plataforma que eram nossas vidas. No final de 1989, Pozinho ainda me observava ao longe. Tentando me provocar, um dia balançou o controle retangular do Master System para fora da sacada do seu quarto. O cumprimentei e sorri brevemente. Não, não quis ser irônico. Senti pena e compaixão ao ter certeza de que enquanto ele simulava ser um personagem aventureiro de um videogame, nós éramos felizes por sermos os Alex Kidd do mundo real.
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A minha primeira vez no caldeirão do inferno
Imaginei o mais tenebroso e abissal dos cenários, com chamas flamejantes ao fundo
Meu pai gostava muito de viajar. Depois que se aposentou então a frequência aumentou consideravelmente. Às vezes, levantava de madrugada e acordava todo mundo. Pedia para arrumar as malas e avisava que partiríamos em uma hora. Era divertido viajar sem planejamento, até porque quando ele avisava com bastante antecedência eu e meu irmão Douglas ficávamos agitados e ansiosos. Ou seja, não dormíamos.
Amante da cultura paranaense, meu pai tinha predileção por mostrar como o estado onde nascemos possui muitas riquezas que passam despercebidas por tanta gente. Foi assim que conheci o Paraná de Norte a Sul quando criança. Ele enaltecia a simplicidade, as coisas da terra e o teor sereno das pessoas do campo, dos vilarejos e das pequenas formações citadinas, lugares alheios ao tempo, onde tudo parecia transcorrer sem pressa. No caminho, cantávamos canções escoteiras como “A Velha A Fiar”, “A Árvore da Montanha” e “La Bela Polenta”. Meu pai dirigia com tranquilidade enquanto desafiava eu e meu irmão a ler primeiro o que estava escrito nas placas, outdoors e letreiros que encontrávamos em cada trajeto.
Curioso, eu tentava observar tudo à minha volta, mas ocasionalmente sentia náuseas. Em algumas situações consegui evitar o pior ao abrir a janela, colocar o rosto para fora, fechar os olhos e absorver o aroma da relva amplificado pelo vento. Quando não resolvia, o jeito era parar o carro. Eu descia pálido e estonteado. Assim que vomitava, me sentia revigorado em poucos minutos. Percebia até a temperatura corporal retornando ao estado normal. Para me animar, meu pai e minha mãe contavam histórias dos lugares por onde passávamos, o que me fazia sonhar acordado, imerso num universo pessoal mais próximo da fantasia do que da realidade.
Na minha primeira visita as Furnas, no Parque Estadual de Vila Velha, em Ponta Grossa, eu tinha nove anos quando me disseram que iríamos aos “caldeirões do inferno”. Criança que era, e com uma perspectiva de desenho animado, imaginei o mais tenebroso e abissal dos cenários, com chamas flamejantes ao fundo, onde o diabo aguardava um deslize para arrastar crianças desobedientes até as profundezas do desconhecido. Sem dizer nada a ninguém, comecei a pensar em tudo que fiz de ruim naquele ano e me perguntei: “Será? Será que existe algum motivo pra eu ir pro inferno agora que ele tá tão perto de mim?”
Logo lembrei das vezes em que fiquei de castigo na escola por mau comportamento, do dia em que não obedeci minha mãe e tomei banho de chuva. Claro, também de quando comi escondido doces que não eram meus. “Será que o capeta sabe que peguei umas figurinhas do álbum do Campeonato Brasileiro do meu irmão? E aquele dia que faltei na catequese? Tô lascado se hoje for o dia do acerto de contas”, refleti enquanto sentia um gosto de fel na ponta da língua.
Quando entrei receoso, e a passos leves e curtos no elevador panorâmico da Furna 1, percebi uma abrupta revoada de morcegos. Ouvi um guia contando a um visitante que um dia uma noiva cometeu suicídio, saltando lá de cima. Eu que pouco entendia sobre o significado da morte me recordei de um episódio da série Contos da Cripta que assisti escondido dos meus pais. Pensei na possibilidade da mulher reaparecer por aquelas bandas, quem sabe até emergindo das águas caliginosas da lagoa para me levar com ela a contragosto. Pelo menos fiquei mais aliviado quando vi de longe que não havia fogo nem diabo.
Conforme o elevador descia, me senti mais minúsculo e curioso diante daquela enorme e profunda cratera onde uma vegetação primitiva e predominantemente rasteira adornava o cenário. Notei também no entorno algumas lâminas rochosas pontiagudas e assimilei com a matéria-prima do caricato tridente do capeta. Lá embaixo, caminhei sobre a plataforma de madeira, tentando identificar o que havia sob a água. Divaguei, aventando a possibilidade da Furna abrigar algum animal tipo o Monstro do Lago Ness. “E se isso aqui quebrar e a gente cair na lagoa?”, uma reflexão constante cada vez que eu observava a pequena distância entre as águas turvas e os meus pés.
Meu pai se aproximou e disse que o local era território de peixes cegos e albinos, então imaginei como seria viver em um ambiente como aquele – um mundo pequeno e escuro, uma masmorra fluvial, onde animais eram punidos por motivos secretos, condenados à infelicidade até os seus últimos dias. Não! Eu poderia estar errado. Por que pensar no pior? Talvez existissem muitas belezas no fundo daquele caldeirão, coisas tão belas que jamais poderiam ser vistas, mas apenas ouvidas e sentidas, aguçando somente a imaginação. Quem garante que o meu mundo não poderia ser mais limitado do que o deles?
Naquela época, eu tinha lido “Vinte Mil Léguas Submarinas”, de Júlio Verne, o que me influenciou a julgar num rompante de ingenuidade e pessoalidade que houvesse uma maneira de saber se aqueles peixes que viviam nas Furnas eram felizes. Me agachei vagarosamente e com muito esforço fiz um círculo na água com o miúdo dedo indicador da mão direita, o suficiente para emitir uma vibração diferente daquela com a qual os animais da Furna 1 estavam acostumados. Menos de um minuto depois, três peixes pequenos se aproximaram da superfície. Após o contato de breves segundos, mergulharam nas profundezas, numa sequência que parecia ensaiada.
Para qualquer outra pessoa quem sabe não significasse nada, mas pra mim, no meu universo peculiar de criança com nove anos, era um sinal de que a vida naquele lugar não era hostil. Interpretei que aqueles peixes ainda não tinham motivos para desgostarem do ser humano, ainda um visitante, não um invasor. “É, acho que ainda são felizes”, concluí com um sorriso enviesado e a fé cândida de que aquele lugar que me pareceu tão aterrorizante em um primeiro momento era belo, harmonioso, justo e cabalístico à sua maneira.
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