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Um banho de sangue sérvio
A incrível história de sobrevivência de Bogdan Bukumiric
Em 13 de agosto de 2003, Bogdan Bukumiric tinha 15 anos quando foi baleado oito vezes. O motivo? Ser sérvio. Apesar da crueldade com a qual foi surpreendido, o jovem sobreviveu e dias depois já estava fora do coma. Até hoje, Bukumiric não sabe quem foi o responsável pelo banho de sangue contra todas as crianças e adolescentes que descansavam no Rio Bistrica, perto de Goraždevac, uma aldeia do Kosovo, na península balcânica.
É impossível visitar Goraždevac sem se emocionar com o monumento em homenagem aos jovens vitimados pelos terroristas albaneses. Os rostos de Panto Dakic e Ivan Jovovic estampam a obra que denuncia a maldade vivida por sérvios em um gueto que até então era considerado um oásis. Panto e Ivan foram assassinados enquanto brincavam no Rio Bistrica com um grupo de amigos.
É chocante saber que essa carnificina jamais esquecida pelos sérvios teve a conivência da Organização do Tratado Atlântico Norte (Otan), segundo testemunhas que viviam em Goraždevac. Perto das fotos de Dakic e Jovovic há uma frase profunda em sérvio com os dizeres: “Mais assustador que a morte é ser enterrado vivo.”
Panto e Ivan foram surpreendidos por um grupo de desconhecidos que abriram fogo contra todos que estavam nas imediações do Rio Bistrica. “Quatro de nós ficaram gravemente feridos. O meu quadro era o pior. Os médicos disseram que eu tinha 96% de chance de morrer e 4% de chance de sobreviver”, conta Bogdan Bukumiric, alvejado com oito tiros na emboscada de 13 de agosto de 2003.
Superando todas as expectativas, Bukumiric sobreviveu e hoje vive em Belgrado, na Sérvia, onde lamenta o desrespeito dos albaneses ao monumento de seus amigos mortos. Há várias marcas de tiros na escultura erigida em memória de Panto Dakic e Ivan Jovovic. Nascido em Goraždevac, no Kosovo, Bogdan aprendeu a conviver com os abusos e agressões dos albaneses e da Otan, organização militar intergovernamental que em tese deveria garantir a segurança dos civis em regiões de guerra.
A situação na localidade só começou a melhorar depois de 1999, com o fim da Guerra do Kosovo. “Naquele tempo, a aldeia tinha uma população de apenas mil pessoas e era cercada por assentamentos albaneses. A cidade mais próxima era Peć. Tínhamos sempre que sair para comprar comida escoltados pela Kfor [Força do Kosovo]”, relata Bogdan Bukumiric.
Mas a emboscada no Rio Bistrica não foi o primeiro atentado sofrido pela família Bukumiric. Anos antes, Milica Bukumiric, tia de Bogdan, foi assassinada em frente a própria casa, quando terroristas albaneses arremessaram granadas no seu quintal. O garoto cresceu sendo obrigado a se isolar para sobreviver. Teve uma infância difícil, sem entretenimento ou possibilidade de viajar para outros lugares. “Só tínhamos a nossa comunidade e a escola. Viver era muito arriscado”, admite.
Em 13 de agosto de 2003, cansados da monotonia na aldeia, os amigos de Bukumiric passaram em sua casa e o convidaram para dar um mergulho no Rio Bistrica. Como se prevesse o pior, o pai de Bogdan disse que ele deveria ficar em casa, até porque a água estava muito fria, especialmente naquele dia. “Então eu perguntei de novo, ele acabou cedendo, mesmo sem querer. Havia bastante crianças no rio, além de jovens adultos e pais. Como fazia muito frio, fiquei perto do fogo. Em menos de dez minutos, ouvi tiros de metralhadora. Eu e meus amigos estávamos mais próximos dos terroristas”, lembra.
Em questão de segundos, três balas atingiram o lado esquerdo de Bogdan que conseguiu ver uma grande movimentação na floresta. Outros tiros o acertaram no peito, estômago e cabeça. Ele se recorda que a oitava bala se alojou em sua perna esquerda. O garoto só teve tempo de gritar bem rápido por ajuda, cair, tentar se levantar e em seguida sentir a vida se esvaindo.
Os sérvios não atingidos pegaram Bukumiric nos braços e o levaram para um hospital na base militar da Kfor. Infelizmente, não havia médicos e os primeiros socorros foram feitos em uma pequena clínica local. A primeira medida era estancar o sangramento. Ainda consciente, Bogdan pediu para afastarem seu irmão da sala de emergência, evitando ser visto em estado tão preocupante. Um senhor sérvio exigiu que a Kfor levasse Bukumiric para o hospital em Peć. O pedido foi negado e muitas desculpas foram dadas.
Por conta e risco, o irmão de Bogdan e um vizinho o transportaram de carro até Peć, uma cidade de predomínio albanês. Tentando mantê-lo acordado, os dois disseram: “Bogdan, espere, você é um herói e vai sobreviver!” O garoto retribuiu afirmando: “Não me renderei!” Perto de um mercadinho em Peć o motor do carro parou. Como a placa do veículo era sérvia, os albaneses os atacaram. O automóvel foi destruído e nenhuma das janelas ficou intacta. Para piorar, tentaram arrastar os três garotos para fora do carro. O vizinho e o irmão de Bogdan foram atingidos com pedras enquanto tentavam ligar o veículo e se defender, mantendo os punhos sobre a cabeça.
Mesmo com uma pessoa quase morta dentro do carro, os albaneses não demonstraram misericórdia. A sorte dos três foi que minutos depois apareceram dois carros de patrulha da Kfor. “Só os vi atirando para o ar, espantando os agressores. Não demorou e entrei em coma. O que soube depois me foi relatado por amigos”, enfatiza Bukumiric, levado para um hospital de Peć, onde também estava em estado grave o amigo Panto Dakic que não sobreviveu.
Naquele dia, uma médica albanesa tentou examinar Panto, mas o pai do garoto não permitiu, preocupado que garantissem sua morte. Um médico sérvio alertou sobre a importância de levar Bogdan de helicóptero até o Norte de Kosovska Mitrovica. Para isso, era preciso a permissão da Kfor. Três horas depois, Marco Bogicevic, outra criança ferida no atentado, chegou a Peć em um helicóptero. No mesmo veículo, enviaram Bukumiric para o hospital da Kfor em Mitrovica.
Depois de operarem o baço do garoto e extraírem uma bala a dois milímetros do rim esquerdo, os médicos franceses da Kfor perceberam que dificilmente o garoto sobreviveria, pois não havia nenhum neurocirugião para dar continuidade aos procedimentos. Ciente da gravidade da situação, o médico Milenka Cvetkovic desempenhou um papel crucial que evitou a morte de Bogdan. Cvetkovic insistiu para o levarem até Belgrado, na Sérvia. Aí surgiu um dilema porque a Kfor não permitia o desembarque de helicópteros sérvios sem autorização.
A solução apresentada pelo médico foi transportar Bukumiric de carro até a Academia Médica Militar de Belgrado. Mesmo com a pressão extremamente baixa, e perdendo os sinais vitais, tiveram de aguardar 11 horas para chegar a Belgrado com toda a documentação necessária. Bogdan já estava com pouco sangue, então foi preciso realizar uma transfusão emergencial na Academia Militar. A cirurgia só pôde ser feita no dia seguinte.
Em 19 de agosto, o prognóstico ainda era o mesmo. As chances de sobrevivência se resumiam a 4%. Logo que saiu do coma, o garoto teve muita febre em função das lascas de ossos que danificaram o córtex cerebral. Quatro cirurgias mais tarde e uma meningite, Bukumiric conseguiu recuperar os movimentos do lado direito do corpo. Passados alguns meses de muita luta, peserverança e exercícios intensos, Bogdan voltou a andar.
A história de sobrevivência do jovem sérvio chamou a atenção do alto escalão da Missão das Nações Unidas para a Administração Interina do Kosovo (Unmik), inclusive do líder Harri Holkeri, ex-primeiro-ministro da Finlândia que o visitou em Belgrado, onde desejou-lhe melhoras e um rápido retorno a Goraždevac. Bogdan supreendeu Holkeri ao perguntar se ele já havia prendido os criminosos.
“Ele não esperava esse tipo de pergunta de um jovem de 15 anos”, confidenciou um funcionário da Unmik. O finlandês explicou que estavam trabalhando nisso, mas não tinham conseguido recolher provas o suficiente. A verdade é que muito tempo se passou e até hoje nada de concreto foi feito. Ao longo dos anos, Bukumiric tentou buscar justiça, se correspondendo com várias organizações internacionais. Algumas assumiram o compromisso de ajudá-lo.
As boas intenções para resolver o caso se estenderam até 2007, quando as investigações cessaram. Apesar de tudo, Bogdan ainda busca justiça. “Fomos atacados por monstros enquanto nos divertíamos no rio. Eles não se importaram nem com as crianças de cinco anos. Foi um plano extremo, de atacar os mais jovens para atingir os mais velhos”, avalia Bukumiric. Embora tenha uma vida praticamente normal, o sobrevivente sérvio ainda não tem controle total sobre o braço esquerdo, mas se anima com a ideia de viajar para a Rússia, onde soube que há excelentes médicos dispostos a tratá-lo.
Desde 2003, Bukumiric, que perdeu a mãe quando tinha apenas cinco anos, mora com o pai e o irmão em um apartamento arrendado em Belgrado. Sensibilizado com a difícil situação financeira de Bogdan, o tabloide sérvio Večernje Novosti lançou uma campanha para arrecadar 59 mil euros para que a família compre um imóvel. “O governo nunca esteve interessado em meu caso, então sou obrigado a contar com a ajuda das pessoas. Tenho formação técnica de eletricista, mas como ainda sofro por causa de algumas limitações preciso me cuidar a maior parte do tempo”, frisa.
Bogdan até hoje não teve a chance de retornar a Goraždevac porque precisa estar em constante observação médica em Belgrado. Os demais sobreviventes do atentado ainda vivem na aldeia, assim como os pais de Panto e Ivan. “Sou orgulhoso de minha aldeia. Temos a igreja mais antiga dos Bálcãs. Ela foi construída há oito séculos sem um único prego. Acredito que ela protege minha terra natal porque superamos a Primeira e Segunda Guerra Mundial, o Conflito do Kosovo e muitas outras tragédias”, comenta Bukumiric emocionado.