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Deusdete, o peão que se tornou exemplo de superação  

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“Posso dizer que os políticos mais atrapalharam do que ajudaram no crescimento de Paranavaí. É uma cidade marcada por mais injustiça do que justiça”

O pioneiro segurando a única mala que restou da época em que tinha uma fábrica de malas na Rua Santa Catarina (Foto: David Arioch)

O pioneiro segurando a única mala que restou da época em que tinha uma fábrica de malas na Rua Santa Catarina (Foto: David Arioch)

Em 1952, aos 22 anos, o pioneiro Deusdete Ferreira de Cerqueira deixou Monte Alegre, na Bahia, e viajou de trem de Mundo Novo até a divisa com Minas Gerais, onde subiu em um caminhão pau de arara que parava em qualquer lugar onde alguém acenasse com a mão. Mais adiante, entrou em outro trem na divisa com São Paulo. “Em Ourinhos, peguei o ônibus e a mala errada. Desci com a bagagem de um companheiro. Quando cheguei em Paranavaí, entreguei a mala dele. Perdi tudo”, conta Deusdete às gargalhadas, acrescentando que as malas azuis de madeira foram feitas pelo próprio irmão.

Depois de nove dias de viagem, o pioneiro chegou a Paranavaí em 9 de julho de 1952. A ideia de sair da Bahia surgiu quando Cerqueira ficou sabendo que um irmão do seu cunhado estava morando em Paranavaí. “Viemos em cinco, incluindo meu irmão e outro parente. Parei na Pensão São João, em frente ao Posto Minas, onde fiquei uma semana. Lá estava hospedado um rapaz que era gerente da fazenda onde meu irmão e cunhado trabalhavam”, relata.

O homem que ficaria conhecido como Toninho do Cartório administrava uma fazenda em Itaúna do Sul, onde Deusdete começou a trabalhar como peão. Meses mais tarde, a inexperiência o deixou com as mãos tão feridas que teve de assumir o posto de cozinheiro nas incursões pela mata virgem da região. Depois de preparar a boia, tinha de levá-la para os peões.

O trabalho era tão difícil que poucos resistiam. “Até quem tinha uma vida ruim na cidade natal preferia voltar assim que recebia um dinheirinho, inclusive meu irmão. Eu quis vencer e sempre fui da opinião de ficar”, afirma. Um dia, Deusdete Ferreira percorreu três quilômetros de mata fechada para levar o café da tarde aos peões. Durante o trajeto, se deparou com uma peroba enorme caída no meio de um estreito carreador. Receoso, olhou para um lado e para o outro.

Ao longe, viu uma onça e ficou tão desesperado que gritou, jogou tudo no chão e saiu correndo. Quando chegou ao galpão, teve de aguentar as broncas do fiscal e dos peões. “E olha que onça não pegava ninguém cara a cara. Ela se escondia e atacava de surpresa”, comenta Deusdete rindo e lembrando que como peão trabalhou na abertura de muitas estradas de três a cinco quilômetros de extensão nas fazendas. Naquele tempo as ferramentas mais usadas eram o machado e o traçador.

Cerqueira também derrubou muitas árvores de cedro e canjerana usadas na construção de residências, tulhas e casinhas para manter a sustentação dos pés de café. O salário baixo não o esmorecia. Em pouco tempo foi promovido a subempreiteiro, responsável pela contratação e fiscalização do trabalho de 10 a 20 peões. “Buscava gente nas pensões de Paranavaí e levava pro mato. Fazia o trabalho de peão e ganhava um pouco mais pra cuidar do serviço da turma e cozinhar. O trabalho se estendia por até 12 horas”, enfatiza.

1960 - Deusdete e Raquel na primeira casa que compraram, situada na Rua Pernambuco (Foto: Arquivo Familiar)

1960 – Deusdete e Raquel na primeira casa que compraram, situada na Rua Pernambuco (Foto: Arquivo Familiar)

Nos tempos da colonização de Paranavaí, eram poucos os que se arriscavam a trabalhar como subempreiteiro, já que havia peões brutos. Entre os mais valentes, a moda da época era o bigode com as pontas mirando os olhos. Armados e bravos, não gostavam de lidar com os teimosos, nome dado aos empreiteiros sem experiência profissional, como era o caso de Cerqueira.

Uma vez, trabalhando na Fazenda 5R, o patrão atrasou o pagamento e Deusdete teve de vender o próprio encerado para pagar os peões. “O cara poderia até te matar se você não pagasse. Então era preciso se virar”, explica o pioneiro que também complementava a renda comercializando leite, leite condensado e fumo.

A situação só melhorou quando Cerqueira recebeu uma proposta do proprietário da Pensão Jacobina, onde vivia há um bom tempo. Sem condições de assumir a derrubada de 200 alqueires de mata em uma propriedade em Mirador, que pertencia ao diretor da Mercedes-Benz, o homem ofereceu a Deusdete a oportunidade de coordenar metade do trabalho, desde que ele recebesse uma parte dos lucros.

Deu tudo certo e plantaram 200 mil pés de café. A força de vontade de Cerqueira era tão grande que quando faltava comida ele saía de Mirador a pé para fazer compras em Paranavaí. A vantagem era que o proprietário do armazém mandava entregar tudo de caminhão. “Tinha gente que derrubava o mato e deixava margens de quiçaça de pelo menos 10 alqueires, o que era um problema na hora do plantio de café. Nesses casos os fazendeiros geralmente dispensavam ou davam preferência para outras pessoas”, pontua.

Quando o trabalho na mata durava meses, era normal o empreiteiro montar um barracão para vender alimentos aos peões, principalmente arroz, feijão, jabá e peixe. Deusdete percebeu que a maioria tinha o costume de comprar pinga, beber e abandonar a garrafa. Então ele as recolhia e levava para a cidade. “Eu percorria dois quilômetros a pé para trocar por garrafas cheias. Daí à noite, como eu sabia que os peões não tinham mais pinga pra beber durante o jogo de baralho, eu aparecia com as garrafas e vendia os copinhos de pinga”, garante.

Após as noitadas de bebida e jogatina, os peões se amontoavam em um barracão e dormiam sobre camas de palhas de milho e sacos que antes serviram para o armazenamento de carne seca. Quando esfriava, faziam fogueira, mas tinham o cuidado de isolá-la para evitar incêndio. Aos domingos, Deusdete lucrava de outra forma. Enquanto os demais relaxavam ou jogavam, ele ia até uma mina, onde lavava as roupas dos peões sobre uma pedra. Só entregava à noite. “Como fazia frio, ninguém reclamava e pagava certinho”, assegura.

Em 1958, Cerqueira deixou o trabalho na mata e usou as economias para comprar o Bar Continental, um dos pontos preferidos da população mais humilde de Paranavaí. O estabelecimento antes pertencia a uma família italiana que veio do Rio de Janeiro. No local o movimento era constante. Além do espaço amplo e das dez mesas de sinuca, a freguesia era atraída por cerveja, whisky, gim, Fogo Paulista, Cinzano, conhaque de alcatrão São João da Barra, cachaça Jurubeba, pinga Tatuzinho, refrigerantes Garoto, cigarros e charutos. “Eu vendia dois tipos de cerveja. Só que tinha uma que ninguém queria, então quando todo mundo ficava bêbado eu tirava o rótulo da cerveja boa e colocava na outra. Aí bebiam do mesmo jeito”, confidencia gargalhando.

Anos depois, Deusdete viveu uma situação constrangedora. Um dia houve briga e troca de tiros em um bar ao lado do Bar Continental e o chamaram na delegacia para se explicar sobre o acontecido. “Falei que não foi no meu bar e ainda provei. Não deram a mínima para o que falei porque a confusão tinha acontecido em um local frequentado pelos ricos e poderosos de Paranavaí. Queriam me culpar, já que eu não era ninguém na cidade”, reclama.

Com a experiência de quem se tornou comerciante na Bahia quando era criança, Deusdete ganhou dinheiro o suficiente para comprar uma casa na Rua Pernambuco e investir em pequenas propriedades rurais. “Adquiri uma chácara de um português atrás do 8º Batalhão da Polícia Militar. Depois vendi e comprei cinco alqueires do pioneiro Severino Colombelli perto da Fafipa [Faculdade Estadual de Educação, Ciências e Letras de Paranavaí]”, assinala.

Cerqueira viu uma boa oportunidade quando o governo começou a pagar para que os produtores rurais cortassem seus pés de café. Numa época em que as terras eram desvalorizadas, Deusdete comprou propriedades cheias de café, derrubou os cafezais e, seguindo a determinação governamental, plantou outra cultura por dois anos. “Quando ficava pronta, eu vendia pro vizinho. Fui indo, comprando e vendendo, até que consegui adquirir uma área de mais de 35 alqueires. Vendi também e comprei outra na Água da Cobra, perto do finado Luiz Lorenzetti”, cita.

Mais tarde, com a ajuda de Raul Piccinin, comprou uma fazenda de café de pouco mais de 100 alqueires em Santa Isabel do Ivaí. O imóvel pertencia a um senhor árabe de Londrina, conhecido como “Seu Nagibe”. Em 1965, Deusdete vendeu o Bar Continental, adquirido com o dinheiro que ganhou trabalhando na fazenda em Mirador. “Não cheguei e comprei. Continuei trabalhando até quitar o valor total. Falava-se em reserva de domínio. Depois vendi a minha metade do bar para um sócio”, revela e informa que o bar abria às 8h e fechava por volta da 1h.

Mais tarde, investiu em uma fábrica de malas de duratex na Rua Santa Catarina, no cruzamento com a Rua Souza Naves. Além de 10 funcionários, tinha também um caminhão. Deusdete vendia tantas malas que precisava viajar de avião com frequência para São Paulo, onde buscava matéria-prima na indústria de Paulo Maluf.

Em melhores condições financeiras, o pioneiro adquiriu a Fazenda Nova Marília, com 120 mil pés de café, de um fazendeiro árabe chamado Ney Jorge. Aproveitou que os bancos estavam oferecendo financiamento com juros baixos e investiu.

"Com o meu touro Reno, fui campeão nacional em 1974 em Uberaba, Minas Gerais" (Foto: David Arioch)

“Com o meu touro Reno, fui campeão nacional em 1974 em Uberaba, Minas Gerais” (Foto: David Arioch)

Deusdete e Raquel se casaram após um mês de namoro

Em 1960, depois de oito anos em Paranavaí, Deusdete Ferreira de Cerqueira foi para a Bahia rever a família. Desembarcou de avião em Feira de Santana e subiu em um caminhão pau de arara com destino a Angico, onde na infância já costumava participar da feira, vendendo galinha, fumo de corda, rapadura, leitoa e banana. “Vi uma mocinha e gostei muito dela. Fiquei na casa do primo João Soares e ela parava lá porque tinha comércio também. Então deu certo da gente namorar. Antes falei com a família dela. A mãe aceitou, até porque o pai da Raquel era afilhado do meu avô e nossas famílias moravam perto. Mas exigiu que eu ficasse lá. Eu disse que não porque estava recomeçando a vida no Paraná”, narra.

Após um mês de namoro, o vínculo de confiança entre os dois era tão forte que decidiram se casar na Bahia com a bênção das duas famílias. Deusdete tinha 30 anos e Raquel Reis, a primeira de uma família de 14 irmãos a sair da Bahia, tinha 18. “Vim pra um lugar completamente diferente, mas não foi muito difícil. Senti muita saudade da família. Fui me adaptando, construindo a vida, fazendo amizades. Gosto de Paranavaí. Lá eu morei 18 anos e aqui 55 anos, então aqui é a minha cidade. Meus filhos nasceram aqui e pretendo ficar aqui por toda a vida”, diz Raquel Reis de Cerqueira.

Deusdete declara que não seria quem é hoje se não fosse a companhia de Raquel. Segundo o pioneiro, a esposa só merece elogios. “O casamento me ajudou demais. Minha mulher me acompanhou desde o começo. Sofreu muito quando tínhamos filhos pequenos e íamos de um lugar para o outro na tentativa de melhorar de vida”, analisa.

“Única coisa que me deu prejuízo foi a política”

Ao receber o convite dos amigos para ser candidato a prefeito de Paranavaí em 2000, Deudete Ferreira de Cerqueira aceitou porque tinha o sonho de ver Paranavaí retomar o caminho do desenvolvimento que rendeu tanta popularidade ao município até o final da década de 1960. “Única coisa que me deu prejuízo foi a política. Você não vence uma eleição se não gastar. Banquei tudo do meu bolso. Gastei demais. É claro que ganhando R$ 4 mil por mês eu nunca iria recuperar isso”, admite.

Porém, o que desanimou mais Deusdete não foram os gastos com a campanha, mas sim o que veio depois. Sem grandes apoiadores, sentiu o peso da influência dos grupos políticos mais representativos de Paranavaí. Um deles interviu para que o município não recebesse recursos dos governos estadual e federal. “Paranavaí tinha R$ 3,5 milhões para receber. E só consegui fazer esse dinheiro chegar depois de muito tempo. Eu não tinha apoio. Dei R$ 1 milhão para a Santa Casa de Paranavaí e sobrou R$ 2,5 milhões. Foi o único recurso que recebi na minha gestão”, desabafa, acrescentando que a cidade tem uma história política marcada pela malandragem de grupos que agem como mafiosos.

A preocupação maior não era o futuro da cidade, mas sim atrapalhar o trabalho do poder público municipal. “Meu apoio era a minha família e o povo que acreditava em mim. Muita gente me defendeu, mas minha família sofreu muito por causa da exposição”, afirma Deusdete e revela que os opositores só não conseguiram prejudicar sua imagem porque ele não devia nada a ninguém. De 2001 a 2004, o então prefeito teve de trabalhar no limite, contando principalmente com recursos municipais.

“Não fiz tudo que gostaria porque não havia muito dinheiro, mas pelo menos deixei para a população algumas escolas novas, reformei praças, ruas, avenidas, investi um pouco em saúde e nos pequenos empresários. Tenho orgulho de ter ajudado na criação de uma cooperativa de costura para mais de 600 donas de casa. O resultado foi bom, mas quando saí acabaram com a cooperativa”, lamenta.

Cerqueira relata que deu continuidade a vários projetos do prefeito anterior. No entanto, desabafa que desde que Paranavaí surgiu a cidade é castigada pela inveja entre prefeitos. É rara a preocupação de não sacrificar o progresso em benefício próprio. “Por que Paranavaí não cresceu tanto quanto os outros municípios? Tínhamos tudo nas mãos, mas aqueles que têm o poder sempre fizeram o possível para que a cidade ficasse para trás. Sabe por quê? Porque eles se beneficiam disso”, enfatiza.

Mesmo quando era prefeito, Deusdete Cerqueira teve de enfrentar o preconceito. Ouvia ofensas até nos corredores da prefeitura. “Sofri muito por causa da minha cor e por ter pouco estudo. Nunca deixei de passar por essa situação. Só que enfrentei tudo de cabeça erguida, ignorando quem me agredia. Não me arrependi de ser prefeito, mas o resultado não foi o esperado. Posso dizer que os políticos mais atrapalharam do que ajudaram no crescimento de Paranavaí. É uma cidade marcada por mais injustiça do que justiça”, avalia.

Saiba Mais

Deusdete Ferreira de Cerqueira nasceu no dia 13 de março de 1930.

Frases do pioneiro e ex-prefeito Deusdete Ferreira de Cerqueira

“Tudo que tenho eu devo a Paranavaí.”

“Prefeitura foi feita para ser tocada como uma empresa, um comércio. Não pode ser administrada com base na politicagem.”

“Peguei a prefeitura com uma dívida de R$ 2,7 milhões. Paguei tudo e não deixei nenhuma dívida quando saí.”

As lembranças de José Francisco de Oliveira

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“Tinha uma pensão onde as discussões sempre acabavam em morte”

Seu Zé: “A situação era feia até em Piracema. No distrito, tinha uma pensão onde as discussões sempre acabavam em morte” (Fotos: David Arioch)

O paulista José Francisco de Oliveira se mudou para Paranavaí em 1944, nos tempos da Fazenda Brasileira. À época, deixou Avaré, no interior de São Paulo, para trabalhar na abertura de estradas, embora tenha ouvido falar do Distrito de Montoya em 1932, quando Getúlio Vargas já havia desapropriado a região. “Eu era ‘molecão de tudo’ e contaram pra gente muito do que aconteceu aqui. Pra você ver como a história ia longe”, diz Oliveira que apesar de sofrer com a deficiência auditiva ainda se recorda com precisão de muitos fatos dos anos 1940.

“Seu Zé”, de 95 anos, como é mais conhecido, é um desses pioneiros que não fizeram fortuna e com o passar das décadas foram relegados ao anonimato, mesmo tendo contribuído para o desenvolvimento da região. O aposentado fala do passado sem ocultar um misto sentimento de alegria, tristeza e saudade. Hoje em dia, com o corpo e a voz cansada, sai pouco de casa, combalido por problemas de saúde.

Ainda assim, não se abstém de sorrir e gargalhar quando se recorda da mocidade e da família grande que hoje se resume a três pessoas. Por força do hábito, e da empolgação pela visita, não consegue se comunicar sem gesticular e faz o possível para detalhar com preciosismo cada um dos momentos que considera os mais históricos dos 68 anos vividos em Paranavaí.

Em 1944, ao chegar à Fazenda Brasileira, José Francisco de Oliveira desembarcou na pensão de Durvalino Moreira. Logo o pioneiro se tornou um dos responsáveis pela abertura da estrada que ligaria Paranavaí a Nova Esperança. ”Aqui era só capoeira e quiçaça. Quando chegamos à Capelinha [Nova Esperança], não tinha água e tivemos de abrir um poço com 90 metros de profundidade. Daí não quiseram fazer a cidade num ponto mais arriba e seguiram pra baixo”, conta. Além de ser encarregado de alguns peões, Seu Zé desmatava e carpia. Tinha de percorrer muitos quilômetros para fazer bueiros e pontes com lascas de coqueiro.

“Mas acontecia de não pagarem a gente por má vontade mesmo”

Por volta de 1945, Oliveira ajudou a ampliar uma estrada até Peabiru, na região de Campo Mourão. No mesmo ano, o chefe dos peões, José Augusto Machado, o encarregou de criar novas vias na Barra do Surucuá. “Abri até a fazenda do falecido Estevão. Em 1946, fui até Assaí [no Norte Pioneiro Paranaense] buscar minha mãe e meus irmãos”, relata. Na mesma década, viajou a Salamanca, a 32 quilômetros de Guaíra, no Oeste Paranaense, para trabalhar em novas áreas de desmatamento e construção de residências.

O pioneiro que nunca ficou mais de seis meses longe de Paranavaí também atuou na criação da estrada até Mirador. Seu Zé trabalhou muito, mas nem sempre recebeu pelo serviço. “Certa vez, o responsável pelas obras morreu numa terça-feira, daí falaram pra gente que o irmão dele poderia acertar a situação. Por azar, o outro morreu na sexta-feira e não recebemos de ninguém. Mas acontecia de não pagarem a gente por má vontade mesmo”, conta, acrescentando que o chefe dos peões na região de Paranavaí era amigo do interventor federal Manoel Ribas.

Nos anos 1940, era comum o assassinato de ladrões de madeira. Muitos eram mortos às margens do Rio Paraná. “A situação era feia até em Piracema. No distrito, tinha uma pensão onde as discussões sempre acabavam em morte. A vítima era enterrada logo atrás do estabelecimento”, lembra Oliveira. Outro fato que é mencionado com clareza pelo Seu Zé diz respeito a um pioneiro que se envolveu com uma mulher casada e foi assassinado pelo marido traído. No dia do julgamento do homem, um grupo de policiais fazia a escolta em frente ao fórum quando apareceu um rapaz atirando contra o suspeito. “Naquele tempo, você matava na frente da polícia e de testemunhas e ainda escapava da condenação”, comenta.

O pioneiro que encomendou a morte do homem traído era irmão do amante. Conhecido em toda a região como um violento grileiro de terras, o contratante ordenou o assassinato de outras dezenas de pessoas, entre fazendeiros e colonos. Ao longo dos anos, o homem que mais tarde recebeu até homenagens em Paranavaí fez tantas inimizades que certo dia pagaram para que o piloto responsável por levá-lo de avião até Londrina, no Norte Central Paranaense, saltasse de paraquedas, deixando o grileiro diante da morte. “Só sei que o sujeito morreu”, ressalta Seu Zé.

José Francisco de Oliveira presenciou a chegada de 300 bois trazidos a Paranavaí através do Porto São José, onde a travessia já era feita de balsa. À época, grande parte da carne bovina da localidade vinha do Mato Grosso ou São Paulo. O episódio se tornou inesquecível porque o fazendeiro que encomendou a boiada fez um acordo de pagar pelos animais ao final do percurso. Porém, em vez de entregar o dinheiro, o comprador disparou vários tiros contra o vendedor e em seguida desovou o cadáver nas águas do Rio Paraná. “Era uma família rica. A viúva pagou investigadores para procurar pelo marido, mas nunca mais viu nem o corpo do homem”, revela.

“Do nada, os bichinhos começaram a fazer ‘tiu, tiu, tiu’, ‘prim, prim, prim’, ‘tiziu, tiziu, tiziu’”

87 anos de amor aos animais

O pioneiro José Francisco de Oliveira, o Seu Zé, sobrevive com um salário mínimo por mês e, mesmo sem condições de ter uma vida mais digna, se preocupa em cuidar dos animais que circulam pela sua pequena residência. Gasta cerca de sete pacotes de quirela por mês alimentando centenas de pássaros. “Tem dia aqui que chego a contar 200 rolinhas de uma vez. Fica tudo preto. Eu não mato um passarinho de jeito nenhum, nem que eu morra de fome. Não aceito que um bicho morra para que eu possa me alimentar. Teria vergonha de matar um animal pra comer”, conta.

O pioneiro começou valorizar a liberdade dos animais em 1925, aos oito anos, quando morava em uma roça nas imediações do Rio Capivari, no interior de São Paulo. “Eu estava andando por aquelas bandas carregando quatro gaiolas cheias de passarinhos, daí, do nada, os bichinhos começaram a fazer ‘tiu, tiu, tiu’, ‘prim, prim, prim’, ‘tiziu, tiziu, tiziu’ e eu parei, fiquei olhando e escutando. Carreguei eles mais um pouco e quando cheguei em casa, abri cada uma das gaiolas e soltei todos. Nunca mais prendi nenhum passarinho. Se eu tivesse dinheiro, comprava tudo pra soltar”,  garante Seu Zé.

Impressões sobre o entrevistado

Seu Zé se emociona o tempo todo no decorrer da entrevista. Demonstra gratidão por ser lembrado pelos muitos anos dedicados à abertura de centenas de quilômetros de estradas. Faz brincadeiras durante a conversa, age com uma inquietude jovial e lamenta pela deficiência auditiva, não por tê-la, mas, segundo o pioneiro, pelo fato dos outros terem que lhe repetir a mesma pergunta tantas vezes.

José Francisco de Oliveira tem um estilo de vida simples, sem apego material, passa horas do dia em introspecção, envolvido em uma forma bastante pessoal de espiritualidade. Admite que diariamente divaga até um passado que lhe conforta a existência. Seu Zé confidencia sentir muita falta da mulher e da filha que faleceram, mas não tem arrependimentos nem medo de morrer.

Frases de Seu Zé

“Nessa claridade, já tô olhando os 96 anos.”

“Sei que ninguém é melhor que ninguém porque no fundo somos todos uma mesma pessoa.”

Curiosidade

José Francisco de Oliveira nasceu em 7 de agosto de 1917.

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