David Arioch – Jornalismo Cultural

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Por que não ser apenas empático?

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Há pouco, eu estava correndo e pensando: Se não matar outro ser humano fosse um imperativo moral desconectado de suas implicações legais (que nesse caso seriam inexistentes), será que quantas pessoas matariam outras? Qual seria a proporção da mortandade?

Claro que existe a questão da impunidade, mas qual seria o percentual de aumento de assassinatos? Eu não sei dizer até que ponto e em que proporção a humanidade em geral reconheceria o assassinato como errado porque se trata da obliteração de vidas, da imposição de sofrimento (para quem morre e/ou para quem fica), e não porque, dependendo de quem comete o ato, e que tipo de ato, a pena pode significar anos na cadeia (claro, a não ser que você seja um dos premiados pelo fator impunidade).

Mas realmente me intriga que em muitos casos de homicídios não há tanta discussão moral sobre o ato em si, não o seu processo legal. “Fulano de tal fez besteira e pode pegar não sei quantos anos de cadeia…” Essa é uma consideração comum, não o contempto moral que desencadeou tal possibilidade.

Então quer dizer que só não devemos cometer homicídio porque a Justiça pode punir? Não devemos roubar porque podemos ser presos em flagrante? Não devemos agredir pessoas para não parar na cadeia ou ter de pagar fiança? Por que não simplesmente não fazer nada disso porque é errado? Por que não ser apenas empático? Talvez também seja um sintoma da ausência de filosofia moral em nossas vidas, quando necessária.

Written by David Arioch

January 26th, 2020 at 8:42 pm

Alguém diz: “Defendo o fim das vaquejadas e da farra do boi, mas não sou contra matar um animal para comer”

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“Para o animal não importa a finalidade de sua morte, porque isso não muda o fato de que ele deixará de existir”

Um animal não vai te agradecer porque não foi torturado na vaquejada, mas, por exemplo, morreu logo em seguida no matadouro (Fotos: Reprodução)

Alguém diz:

— Eu defendo o fim das vaquejadas e da farra do boi, mas não sou contra matar um animal para comer.

— Imagino que você conheça vegetarianos ou veganos, certo?

— Sim…

— Estão vivos, bem?

— Acho que sim…

— Então por que se alimentar de animais?

— Ora, isso é problema deles, escolha deles. Como porque é gostoso.

— Certo. Se alimentar de um animal então é gostoso. Isso realmente é uma boa justificativa para matar animais? Melhor do que a de não matar que se baseia no fato de que não temos necessidade de tirar vidas para viver bem? E se há pessoas que vivem bem sem consumir a carne de animais, logo sem financiar esse sistema, isso não significa que matar animais acaba por ser um capricho? Quero dizer, privamos um animal de viver, impomos a morte e o comemos. A escolha que existe para nós é inexistente para ele.

— Ainda acho que comer carne não é um problema, porque o animal existe pra isso.

— Entendo, mas quem disse isso?

— A sociedade, o mundo. Ao longo da história, a “sociedade e o mundo” disseram muitas coisas, mas recuaram ou mudaram em diversos aspectos quando houve um entendimento abrangente das consequências de nossas ações em relação ao que não diz respeito somente a nós. Além disso, me responda uma pergunta. Se a “sociedade” decidir que não há nada de errado em sair matando pessoas aleatoriamente, você endossaria isso?

— Claro que não, né?

— Então, isso é uma baliza moral. Independente dos preceitos socialmente aceitáveis, você faria o que considera certo. Sendo assim, matar animais é correto?

— Hum…complicado.

— Considere um ponto. Para o animal não importa a finalidade de sua morte, porque isso não muda o fato de que ele deixará de existir. Ele não vai te agradecer porque não foi torturado na vaquejada, mas, por exemplo, morreu logo em seguida no matadouro. Matar um animal para se alimentar, não anula o fato de que antes ele passou por algum tipo de privação, medo, sofrimento e, claro, algum tipo de violência final que custou a sua vida, tenha sido esse ato curto ou prolongado. Em síntese, nunca há uma boa maneira de matar um animal que não quer morrer.





 

Por que o veganismo é um imperativo moral?

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Se é imperativo, é impositivo? Então o veganismo é uma imposição?

Não há alimentos ou produtos de origem animal se não nos apropriarmos do que pertence a seres de outras espécies (Foto: Jo-Anne McArthur/We Animals)

Porque onde não há veganismo há exploração e morte – isso é apenas uma questão de tempo. O veganismo é um imperativo moral sob a perspectiva da imprescindibilidade e da incontestabilidade, não da arbitrariedade. Até porque quem impõe algo somos nós ao decidirmos quando e como as outras espécies devem nos servir.

Se as pessoas não concordam em se abster de encarar animais como fontes de produtos, então elas concordam com a exploração e com a matança de animais, já que os dois elementos estão associados. Não matar seres humanos também é um imperativo moral, já que sabemos quais são as implicações disso, e não falo sob uma perspectiva legal, mas sim de estado de senciência e consciência, além do construto social.

Se posso não causar dor por que causá-la? Se posso não interferir negativamente na vida de alguém, humano ou não, por que fazê-lo? Se você entende que isso é desnecessário e errado, você compreende essa premissa como um imperativo moral, porque você considera inadmissível “escolher comer algo” que custa condicionamento, privação, sofrimento e/ou morte.

Não há alimentos ou produtos de origem animal se não nos apropriarmos do que pertence a seres de outras espécies. E nessa apropriação nos colocamos em posição de discricionariedade. Afinal, passamos a estimular e a financiar a geração de vidas de outras espécies somente para atender interesses pautados em nossos gostos e vontades.

O que significa que os interesses dos animais não fazem a menor diferença quando o que queremos é usufruir daquilo que não é essencialmente produzido por nós, mas que gostamos de dizer que sim, já que temos os instrumentos necessários para favorecer tal produção. Mas se o que produzimos não é mormente gerado por nós como podemos dizer que somos, de fato, produtores?

Acredito que o veganismo é um imperativo moral porque não cabe suscetibilidade e relaxamento. Afinal, sob a perspectiva vegana, você não acorda e diz: “Hoje comerei algo que custou a vida de um animal que não queria morrer.”





Vaquejada não é esporte, é violência

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Sobre zombar de animais e matá-los baseando-se na crença do querer e poder

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Deveria a morte violenta, coercitiva e indesejada ser associada às coisas boas da vida? 

Deveríamos zelar pelos animais, não violentá-los (Foto: Jo-Anne McArthur/We Animals)

O que leva uma pessoa a tirar foto sorrindo com um animal morto? Você já pensou sobre isso? Considera normal? Aceitável? Por que deveríamos celebrar a morte de criaturas que não nos causam qualquer mal? E mesmo que causassem, consideradas as proporções, isso seria justo? Moral? Ético? Que tipo de mensagem realmente passamos quando jocosamente erguemos um animal morto pelas orelhas, pelas patas, pelo couro ou pelo dorso enquanto seus olhos já não mostram nada a não ser uma ideia concreta de finitude, de um vácuo que parece sempiterno? Como sorrir segurando um corpo desfalecido, um cadáver?

Os animais que matamos, seja para consumo, ou outro tipo de uso ou até mesmo nenhum, não existem ou existiram sozinhos – eles vieram de algum lugar, de alguém. Têm ou tiveram mães, pais, irmãos, irmãs – todo um contexto social, já que não apenas nós humanos somos seres sociais, mas animais de muitas outras espécies também. E mesmo que não tivessem ninguém, e vivessem no mais pleno ostracismo, ainda assim não teríamos tal direito de privar-lhes da vida.

Não tão raramente quanto eu gostaria, um sujeito está junto a um animal morto, o sangue daquela criatura desfalecida ainda quente em contato com a sua mão, mas ele está em frenesi; tão imerso no desconhecimento, no obscurantismo e na ignorância que nem se dá conta de que a sua satisfação e o seu prazer estão associados à morte. E deveria a morte violenta, coercitiva e indesejada ser associada às coisas boas da vida? Como podemos vincular violência e tortura de vulneráveis ao prazer? Deleite? Contentamento?

Deveríamos sorrir quando matamos animais simplesmente porque queremos e podemos? Talvez seja a valiosa lição de que há vidas que podemos suprimir, destruir, exterminar sem qualquer prejuízo consciencioso ou moral? Deveríamos comemorar? Vibrar? Mesmo nos casos em que um animal é apontado como um problema, o ser humano opta sempre pela solução mais fácil – que é exterminá-lo o mais rápido possível. “Matemos e está resolvido!” Não se fala em alternativas, porque alternativas “custam caro”, e vidas não humanas valem pouco.

Nesse aniquilamento ignora-se o fato de que quem morreu não queria morrer – mas apenas viver à sua maneira, não importando conceitos confusamente abstratos ou a racionalização humana da felicidade ou da tristeza. Há quem diga que matamos determinadas espécies porque esse é o papel delas, assim como outros alegam que matamos específicas criaturas porque essas tornaram-se “pragas”.

Se o papel delas é esse por que nasceram sencientes, e até mesmo com níveis distintos e equiparáveis de consciência e inteligência? Com habilidades sociais. Não seriam características a serem consideradas moralmente? Que indicam que assim como nós não partilham do desejo pela morte precoce? Além disso, diante de tanto impacto que causamos ao mundo em proporções desmedidas e pouco refletidas há milhares de anos, e mais visceralmente há centenas de anos, será que temos o direito de chamar qualquer espécie de pinima, de praga?

 





Podemos falar sobre os direitos dos animais?

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“Podemos começar reconhecendo que o fracasso moral do moderno consumo de carne não é o fim da história”

Gottlieb: “quando você pede uma deliciosa vitela à parmegiana em um chique restaurante italiano, você está consumindo a carne de um ser vivo que foi confinado em uma gaiola tão pequena que mal podia se mover” (Foto: Jo-Anne McArthur/We Animals)

Em 2014, o filósofo Roger S. Gottlieb, professor de filosofia do Instituto Politécnico de Worcester, em Massachusetts, e autor de 18 livros, incluindo obras sobre filosofia política e crise ambiental, publicou pelo Harvard Divinity Bulletin, um dos boletins da Universidade Harvard, um artigo intitulado “Can We Talk (about Animal Rights)?”.

No texto, Gottlieb apresenta assuntos bastante controversos que envolvem a discussão dos direitos dos animais, como o uso de animais para as mais diferentes finalidades – como consumo e experimentação animal, e defende que nenhuma mudança é possível se não estivermos dispostos a entender ou reconhecer as implicações de nossas ações para os animais não humanos.

O objetivo do filósofo claramente não é oferecer respostas, mas propor reflexões inclusive conflitantes sobre o nosso papel no mundo a despeito das nossas relações com seres não humanos – inclusive evidenciando argumentos de perspectivas contrárias aos direitos dos animais. No decorrer do artigo, Roger. S Gottlieb enfatiza que se uma pessoa age com indiferença em relação ao sofrimento dos animais, inclusive com escárnio, isso não significa que ela seja incapaz de compreender essa realidade ou mudar, mas que talvez agora a mudança não seja moralmente possível.

Na sua perspectiva, o entendimento da realidade da exploração animal depende de uma reflexão profunda e da aptidão para um diálogo horizontal, que deve partir tanto por parte de quem instiga a reflexão quanto de quem é convidado a toma parte nela: “Uma conversa verdadeiramente moral. Parece necessário nos abrimos para o que a outra pessoa está dizendo e tentar encontrar o máximo possível de verdade.” Segundo o autor, não importa o quão correta seja uma afirmação moral, se a humanidade não estiver pronta para aceitar a sua verdade, ela não terá consequências sociais:

Os animais sofrem por muitas razões: eles congelam até a morte em invernos rigorosos, são despedaçados por predadores, envelhecem e passam fome porque não conseguem mais caçar. Se você colocar uma música bem triste nesse cenário, enquanto testemunhamos esses momentos, sem dúvida, muitos olhos se encherão de lágrimas. Mas essas lágrimas são facilmente remediadas por um momento de reflexão sobre os intermináveis e necessários ciclos da vida e da morte.

Existem outras formas de sofrimento que não diminuem tão facilmente. As aves marinhas cobertas de óleo, a raposa presa na armadilha de um caçador – roendo a própria perna na tentativa de fugir; as longas e longas filas de bois e vacas esperando para serem espancados e terem suas gargantas cortadas; os milhões de camundongos a serem usados, sabe lá Deus para qual finalidade, incluindo aqueles que foram cientificamente e geneticamente modificados para desenvolverem câncer (chamados de onco-camundongos). Sem mencionar espécies inteiras, milhares delas, morrendo porque os humanos dominaram ou contaminaram o seu habitat, ou trouxeram espécies exóticas contra as quais eles não desenvolveram defesas, ou simplesmente foram comidos em grandes quantidades.

O que acontece quando olhamos para a dor deles? Muitas vezes, nada de mais, porque a maioria de nós não se preocupa em olhar. Ou, se o fizermos, o que vemos é uma abstração: x milhões de mortos em experimentos, x milhares de espécies perdidas. Se olharmos com cuidado, dispostos a aceitar quaisquer sentimentos que surjam, como por exemplo no caso dos ursos populares forçados a canibalizarem uns aos outros porque o aquecimento global derreteu tanto gelo que eles não podem mais caçar. Olhe para eles – magníficas criaturas com pelos espessos e brancos, incrivelmente adaptados a suportarem o gelo glacial e à neve, em casa e mesmo no mar. São mães que protegem seus filhos jovens e brincalhões dos poderosos caçadores de focas. Esses animais estão morrendo, não de velhice nem na luta contra predadores ou pela liderança de um rebanho, mas porque nós estamos matando eles através do aquecimento global e da imprudente caça esportiva. Há toxinas feitas pelo homem que se acumulam em suas carnes.

A questão é que não é apenas o sofrimento individual dos ursos polares que chegam até nós, ou mesmo a perda potencial dessa espécie majestosa. Tudo isso é sobre como é difícil olharmos para nós mesmos. Para salvar o urso polar, os grandes felinos e os bovinos nos matadouros, o quanto teríamos que mudar? Quanto da nossa economia, cultura e vida familiar? Quantas leis teríamos que aprovar? Quantos encontros de Ação de Graças seriam ou teriam um sabor diferente? Teríamos que desistir do nosso sonho de infindável expansão econômica a fim de deixar algum espaço para outras espécies? Teríamos que convencer todos os nossos camaradas que um tofu grelhado pode ser tão bom quanto um bife grelhado? Teríamos que dizer que todo o empreendimento humano dos últimos dez mil anos – buscando cada vez mais poder, riqueza, controle, conhecimento técnico e posses – deveria (profundamente, seriamente e essencialmente) ser contido?

Entre a intensidade da dor que sentimos, a culpa pela nossa própria cumplicidade, e a aparente impossibilidade de que todos nós teríamos que mudar, ficamos em uma posição moral difícil. Sentimos culpa por nós mesmos e raiva contra “os outros” que “não entendem isso”. A necessidade de por em prática algo que “fazer tudo parar” e a certeza de que não podemos. Uma vida que já parece suficientemente difícil, mas à qual esses “tipos dos direitos dos animais” querem acrescentar mais preocupações, problemas e coisas para nos incomodar.

Não há saída para esse conflito e confusão. Isto é, de maneira nenhuma isso levará a uma simples solução dos problemas, ou a uma maneira universalmente aceita de pessoas de lados opostos se unirem para terem uma conversa moral calma, racional e agradável. A verdade é que temos sentimentos extraordinariamente poderosos sobre esse assunto, e essas respostas podem se traduzir em intuições morais muito fortes. Essas instituições antagônicas podem ser resumidas da seguinte maneira:

Instituições de ativistas dos direitos animais. Os animais sofrem, como nós. Eles amam seus companheiros e filhos, brincam na grama e brigam entre si. Eles se deleitam em voar através do céu de madrugada, correr pela floresta, ruminar. E apesar do ocasional momento em que eles machucam as pessoas, eles são praticamente indefesos contra nós. E pense em quanto sofrimento lhes causamos: em laboratórios, em fazendas, nos frigoríficos. Se você realmente olhar para eles, ouvir seus gritos, tomar para si suas feridas, como poderá continuar fazendo isso com eles?

Instituições que priorizam o ser humano. Pessoas são mais importantes que os animais. Elas apenas são. Além disso, a vida já é bastante difícil – se eu quiser um bife ou um pedaço de frango frito, eu terei. Tem um gosto realmente bom. E a ideia de que algum rato ou pombo tem direitos é simplesmente ridícula. As pessoas precisam de alimentos. A ciência precisa de animais de laboratório. Pessoas do mundo todo estão famintas e doentes, e você quer que eu me preocupe com uma vaca ou um rato? Caia na real. Se você quiser enlouquecer com isso, tudo bem. Mas deixe o resto de nós em paz. A maioria das pessoas, a maior parte do tempo, vai usar os animais para qualquer coisa que elas queiram. Isso nunca vai mudar.

As coisas poderiam ser amenizadas se todos nós pudéssemos apenas “concordar em discordar”. Por que cada um de nós não pode se dar bem com pessoas que têm opiniões diferentes sobre comer carne, usar animais em experimentos ou sobre a quantidade de espaço que um bezerro deve ter em sua jaula antes de ser abatido? No entanto, isso não daria certo, porque, querendo ou não, se uma determinada e particular “diferença” é permitida, isso já é parte do problema em si. Como indivíduos, como sociedade, temos que desenhar linhas: entre diferenças que são uma questão de gosto (como um guarda-roupa realmente ruim) e diferenças que o colocarão na cadeia (como abusar de seus filhos). Embora a opção pela tolerância às diferenças seja certamente uma opção possível, os direitos animais e os cuidados com os animais podem não ser um problema de tolerância.

Ao mesmo tempo, ainda que pensemos que nossos pontos de vista são tão moralmente corretos que as pessoas do outro lado não nos pareçam apenas diferentes, mas erradas – e tão erradas que o que elas fazem deveria ser ilegal e considerado um ultraje antiético –  seja lá qual for o lado em que estamos, ainda devemos ponderar que há muitas pessoas do outro lado. Se vamos nos relacionar moralmente – pensar naqueles do outro lado como agentes morais que merecem respeito por suas escolhas, assim como nós fazemos, é importante pelo menos para tentarmos nos entender, Além do mais, tal entendimento pode nos levar a um pouco de terreno comum.

Quando os pontos de vista têm uma aceitação ampla e de longa data – como a superioridade humana, consumo de carne e a exploração científica de animais – temos de levá-los a sério em seus próprios termos. Similarmente, quando tantas pessoas são vegetarianas morais, ou se opõem ao uso de animais na ciência, não funciona descrevê-los como hippies excessivamente sentimentais. Se um dos lados for desconsiderado logo no começo, as tentativas de comunicação, ou mesmo de compreensão, dessas diferentes pessoas estarão condenadas desde o início. E onde isso nos deixaria? Uma conversa verdadeiramente moral. Parece necessário nos abrimos para o que a outra pessoa está dizendo e tentar encontrar o máximo possível de verdade.

Primeiro vamos reconhecer que nos relacionamos com os animais de muitas maneiras diferentes. Considere: usamos animais como alimento, para o trabalho e para experimentos científicos. Há animais de estimação, animais selvagens e animais de zoológico. Os animais são presas de caçadores, sacrifícios para algumas religiões e companheiros para os cegos. Como podemos entender todos esses diferentes contextos? Não vou oferecer uma regra simples e universal. No entanto, podemos comparar dois contextos muito diferentes e ver como as diferenças afetam nossas respostas.

Aqui está o primeiro cenário: quando você pede uma deliciosa vitela à parmegiana em um chique restaurante italiano, você está consumindo a carne de um ser vivo que foi confinado em uma gaiola tão pequena que mal podia se mover, e foi mantido por muito tempo no escuro para que sua carne empalidecesse, sem qualquer companhia (o que é necessário, sendo ele um animal social) e, para preservar a delicadeza do gosto de sua carne, nunca foi alimentado sequer com a comida sólida que seu organismo naturalmente requeria.

Claramente, existem todos os tipos de razões culturais para continuar comendo vitela à parmegiana – que tem sido uma iguaria por muito tempo. E tem um ótimo sabor. As pessoas ganham a vida criando, cozinhando e servindo vitela. No entanto, se você se inclinar na direção dos direitos animais, como eu faço, pode parecer muito fácil descartar todas essas defesas em relação à carne de vitela – apontando [inclusive] que a escravidão foi culturalmente apoiada e que as pessoas ganharam dinheiro com o Holocausto. Mas a grande maioria das pessoas simplesmente não equipara gaiolas para bezerros com campos de concentração, então, ao comparar o tratamento dado aos animais aos horrores que humanos infligiram uns aos outros pode ser moralmente válido, mas pode não parecer para muitas das pessoas que você precisa convencer disso.

Mas é muito difícil entender o modo como os bezerros são criados sem dizer que a dor dos animais é moralmente insignificante. Essa posição é uma espécie de antropocentrismo ortodoxo: as pessoas são o centro de todas as coisas e os seres na periferia disso tudo não contam muito. Curiosamente, até mesmo as pessoas que creem nesse tipo de coisa geralmente não acreditam nisso completamente; e é essa falta de completude que deixa uma abertura para a outra perspectiva. Por exemplo: um bom número de consumidores de vitela à parmegiana (ou servidores) sem dúvida têm seus próprios animais de estimação favoritos que não sonham em tratar da maneira como os bezerros são tratados: animais cujo bem-estar, felicidade e prazer contam para alguma coisa. Nisso há uma inconsistência fundamental que cria um profundo buraco lógico do qual é muito difícil sair.

Então, quando olhamos para a vitela – e, na verdade, para o consumo de carne em geral – o que temos é uma prática social profundamente arraigada que é, quando examinada, sem qualquer justificativa moral. O que o consumidor de vitela pode dizer em resposta? Não muito, e é por isso que sua resposta geralmente é o riso, o desprezo, o ato de ignorar a verdade, isso quando não assistem os filmes sobre as fazendas industriais e os matadouros e dizem: “Isso é apenas como as coisas são feitas aqui”, e repetem: “Isso tem um gosto bom”, como se isso fosse razão suficiente para continuar comendo. Geralmente, há muita atitude, mas pouca discussão. Se o feliz consumidor de carne não quiser se envolver seriamente com as alegações de um defensor dos direitos animais, o que devemos fazer?

Bem, podemos começar reconhecendo que o fracasso moral do moderno consumo de carne não é o fim da história. Há muitas coisas que fazemos que não se somam moralmente. Certamente tenho minhas próprias fraquezas éticas. De fato, todo ativista dos direitos animais vive de uma maneira que prejudica os animais. Esses ativistas dirigem seus carros [elétricos] que se ligam à rede elétrica, contribuindo com o aquecimento global que erradica inúmeras espécies. Até mesmo sua dieta totalmente vegana envolve agricultura em grande escala que promove o deslocamento de animais. E quando seus filhos estão doentes eles não rejeitam medicamentos “fora de princípio” que foram desenvolvidos por meio de testes em animais.

Uma das coisas que distingue a ética em uma época de aquecimento global é que não podemos deixar de ser parte do problema. Certamente seremos [problematicamente] menos importantes se deixarmos de comer produtos de origem animal e nos recusarmos a comprar produtos que foram testados em animais. Mas enquanto integrarmos essa sociedade, estaremos nesse limite.

E a triste verdade é que muitas pessoas que apreciam profundamente os animais podem, ao mesmo tempo, ser indiferentes a outras pessoas e a outras preocupações morais importantes. Elas podem pensar e falar com humanos que comem animais com ódio e violência verbal. Elas podem se refugiar em um senso reconfortante de superioridade, analisando incessantemente o inventário moral das falhas de todos os outros enquanto nunca examinam seriamente as suas próprias falhas.

Essa linha de pensamento não elimina as tensões entre os “dois lados”. No entanto, permite que o ativista dos direitos animais, crítico moralmente, se aproxime do seu adversário com uma postura menos arrogante e mais modesta. Poderíamos também ser capazes de ver que uma melhora parcial é melhor do que nenhuma melhora. Em alguns países, houve um acordo sobre restrições legais sobre como você pode criar carne de vitela e em outros assuntos relacionados a animais também. Se essas novas leis não são o suficiente para o vegetariano moral, entendo completamente. Mas a vida moral é, muitas vezes, talvez tipicamente, não um caso de “suficiência”. Geralmente é, na melhor das hipóteses, um caso de “buscar melhorias”.

Agora vamos considerar um segundo cenário: seu filho nasceu com fibrose cística (FC), uma condição genética geralmente fatal em que a ausência de uma enzima leva a problemas pulmonares e digestivos. Enquanto isso costumava significar uma morte prematura para todos os portadores, pesquisas recentes permitiram que muitos vivessem por seus 30 e 40 anos.

Se fosse seu filho, condenado a uma vida de infecções pulmonares frequentes, ciclos de tosses aparentemente intermináveis, e um tratamento contínuo de fisioterapia respiratória para limpar o muco de FC distintamente espesso e imutável, você se importaria com quantos animais de laboratório estão morrendo na busca pela cura? Ou mesmo na busca de um tratamento que permitirá ao seu filho ter uma vida um pouco mais longa e tolerável? Em 40 anos, a idade média de portadores de FC passou de dez para 37. É isso que você está contando, não o número de ratos que foram usados para desenvolver tratamentos e, potencialmente, uma cura para o seu filho.

Se comer carne, em especial vitela, é uma imoral autoindulgência, o uso de animais para pesquisas para curar doenças mortais é outra coisa. Aqui temos o que pelo menos parece ser uma escolha clara: permitir que uma criança sofra e morra jovem, ou faça o que precisa ser feito pelo humano às custas dos animais. Se você é esse pai – ou a própria criança – você acha que vai dar mais atenção aos relatos sobre o sofrimento animal?

É claro que o defensor dos direitos animais pode simplesmente dizer que não há razão para preferir o humano ao animal, ou levantar questões de grau e escopo. Além disso, e mais poderosamente, pode-se argumentar que usar animais para pesquisa custa dinheiro, e que o dinheiro para os cuidados de saúde é limitado e que há muitas outras coisas que podemos fazer com esse dinheiro que são boas para a saúde das pessoas e não envolvem crueldade contra os animais. Podemos melhorar o meio ambiente para que menos pessoas tenham câncer em decorrência da poluição; podemos ensinar as pessoas e terem melhores hábitos de saúde; para que as doenças que surgem a partir dos seus estilos de vida diminuam; podemos encorajar as pessoas a não comerem alimentos de origem animal, uma vez que contribuem muito para o surgimento de problemas de saúde. Essas medidas não prejudicarão os animais; na verdade, elas ajudarão tanto os animais quanto as pessoas, uma solução vantajosa para todos.

No entanto, mesmo os melhores regimes ambientais e toda uma população fazendo ioga, meditando e comendo apenas saladas, arroz integral e lentilhas cozidas não acabarão com problemas genéticos de saúde como a FC. Ainda teremos o pai desesperado e a criança doente, pessoas com uma doença terrível e os animais cujas vidas desejaremos sacrificar para encontrar melhores tratamentos.

Talvez, mais uma vez, a única abordagem com uma chance razoável de sucesso seja tentar melhorar as coisas. Primeiro, pare com todos os estúpidos, inúteis e insanos experimentos com animais: os que jogam cosméticos nos olhos dos coelhos até ficarem cegos, ou que esmagam as cabeças dos macacos em paredes para confirmar se cabeças esmagadas contra uma parede ferem o cérebro; ou aquele teste de quanto tempo leva para os animais enlouquecerem, sujeitando-os aleatoriamente a choques elétricos.

E quanto aos experimentos de fibrose cística? Bem, talvez pudéssemos concordar em falar sobre eles mais tarde. Há muita coisa que pode ser feita para limitar ou eliminar experimentos com animais antes de pararmos a pesquisa destinada a curar doenças letais. Em uma vida moral, muitas vezes nos deparamos com escolhas difíceis. Às vezes, essas são escolhas realmente falsas, e devemos nos certificar de que sabemos quem ou o que disse: “Escolha entre A e B.”

Talvez haja uma opção C que funcione para todos nós – como as medidas de saúde holísticas e preventivas descritas acima. Ainda assim, às vezes, e infelizmente, há casos em que não há saída para alternativas dolorosas. Nós ainda teremos que lidar com a dor nesta vida, assim como todos os outros, e nenhuma quantidade de bondade moral jamais levará isso embora. Tipos que defendem “Eu posso fazer qualquer coisa que eu quiser com os animais” têm seus próprios animais de estimação, assim como há defensores dos direitos animais que têm seus filhos e outras pessoas que privilegiariam em vez dos animais. Essa é uma das razões pelas quais essa questão dos experimentos com animais é muito difícil, e exatamente onde um acordo entre diferenças reais pode ser alcançado.

A verdade prática de qualquer reivindicação moral – direitos dos animais, das mulheres, casamento gay, e o que devemos às pessoas que passam fome – é tão poderosa quanto o nível de desenvolvimento moral das pessoas com quem estamos conversando. Não importa quão correta seja uma afirmação moral, se a humanidade não estiver pronta para aceitar a sua verdade, ela não terá consequências sociais. Pode ser que, de acordo com o pleno respeito pelos animais, isso seja apenas algo que não é psicologicamente e, portanto, moralmente possível agora. A cada minuto de cada dia a nossa civilização pode de fato estar cometendo crimes monstruosos, e talvez os angustiados e “extremistas” gritos dos ativistas dos direitos animais são exatamente o que precisamos para despertar. No entanto, suspeito que, neste caso, quaisquer mudanças que façamos serão necessariamente graduais, mais baseadas na compreensão silenciosa e em lentas e moderadas melhorias do que em rejeições morais por atacado.

Provavelmente, alguns ativistas dos direitos animais, e talvez até mesmo os próprios animais, pensem que isso é uma desculpa covarde diante do massacre em massa. Mas devemos lembrar que a longa luta pela igualdade social e legal das mulheres está longe de terminar; e enquanto os escravos foram libertados em 1865 [nos Estados Unidos], mais de um século depois, os afro-americanos ainda lutavam por direitos civis básicos. Com todas as mudanças importantes que ocorreram, é difícil saber quanto foi conquistado através de raiva, violência verbal e leis coercivas, e quanto foi conquistado pelo paciente trabalho de conversação moral – em que fazemos o melhor que podemos para entender o “outro”, apesar do amargo desacordo. Talvez refletir sobre essa história nos ajude a ficar um pouco satisfeitos com ganhos limitados que tornam a vida um pouco melhor, em vez de nos apegarmos com raiva e amargura a um ideal impossível [em curto prazo]. Goste ou não, grandes mudanças são lentas.

Enquanto isso, aqueles de nós que prestam atenção [a essa realidade], podem pelo menos reconhecer o quanto isso nos incomoda. Podemos nos lamentar em relação aos limites morais de outras pessoas, sabendo que por nós mesmos já temos muitos limites. Podemos nos perguntar qual é a diferença entre o golden retriever que dorme em nossa cama à noite e o bacon que comemos no café da manhã. E se estamos realmente dispostos a sentir toda a gama e intensidade de nossas emoções sobre os nossos primos animais, na tentativa de assimilar a sua dor e a nossa responsabilidade sobre isso, e desenvolver a compaixão por eles e ao mesmo tempo por nossos companheiros humanos, quem sabe no que isso pode resultar? Não o suficiente, com certeza. Mas claramente o suficiente para fazer a diferença.

Referência

Gottlieb, Roger S. Can We Talk (about Animal Rights)? Harvard Divinity Bulletin. Harvard University (2014).





Imagine um mundo onde não déssemos a mínima para coisas

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Ron English – Super Supper, 2010

Imagine um mundo onde as pessoas não dessem a mínima para coisas, ou pelo menos não as exaltassem em demasia ou atribuíssem valor acima da vida, porque coisas são basicamente o que são – em muitos casos, produtos aos quais atribuímos mais valor pelo que nos custam, pela exceção, pelo distanciamento que existe entre elas e os outros, do que pelo que são em um sentido funcional ou mesmo hedonista.

A ausência de distinção baseada no poder econômico ou no “acúmulo de coisas que não são acessíveis para uma maioria” possivelmente exigiria um esforço intelectual para se destacar, levando em conta que platitudes como “o que eu tenho que você não tem” não chamaria mais a atenção, e simplesmente porque o ter, materialmente, talvez fosse relegado à insignificância, ou pelo menos à adiáfora.

E neste contexto o ser precisaria estar em constante evolução, ao contrário do ter, que não exige evolução moral de ninguém, caso a pessoa não queira. Prova disso são pessoas que nascem em um ambiente de grande poder econômico, e de repente, optam por não fazer nada no decorrer da vida a não ser gastar dinheiro para ocupar o tempo, desconsiderando todo o resto.

Há também pessoas com muito dinheiro que tendem a considerar seus chamados esforços, envolvam eles atividades ilícitas ou não, desrespeito ou não à vida e a dignidade humana e não humana, como sendo únicos, singulares, e por isso devem ser recompensados de forma dissemelhante, mesmo que isso signifique uma diferença do tipo: “O que você jamais ganhará a vida toda eu ganho em uma semana”. “Eu fiz o que você não seria capaz de fazer. Por isso estou onde deveria estar, onde não é o seu lugar.”

“Porque o meu esforço é muito maior que o seu, sou muito mais inteligente que você, então mereço, de fato, ganhar muito mais que você; e a você resta me servir, mesmo que para isso tenhamos que criar um simulacro de evolução para evitar que você ache que sua vida não está melhorando.” Em síntese, uma sutil estagnação oscilante. “Afinal, porque isso é o que cabe à sua limitada competência que está sempre longe de se igualar à minha”, diriam.

Muitas das mazelas que existem no mundo estão intrinsecamente relacionadas ao fato de que muitos daqueles que têm poder encaram sua força e distinção econômica como uma forma de certidão de superioridade, e o mundo diz que eles estão certos, por mais que leis que não valem na prática tentem informar o contrário. Porque leis são fundamentadas na plasticidade. Existem mais para parecer do que para ser.

Infelizmente, até mesmo entre os mais miseráveis há aqueles que não gostariam de um mundo justo, de igualdade; logo jamais lutariam por isso se desejam ocupar a posição daqueles que “estão no topo”, sejam eles criminosos ou não. Claro, porque a sua inexistência é uma consequência natural do que você não possui, segundo a perspectiva comum. Então perpetua-se a crença de que existirei à medida do que terei.




Written by David Arioch

April 22nd, 2018 at 8:53 pm

Tom Regan: “Chegará o dia em que bilhões [de pessoas] não comerão mais a carne de animais mortos nem vestirão suas peles”

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“Nunca duvide que um pequeno grupo de pessoas conscientes e engajadas possa mudar o mundo. De fato, sempre foi assim que o mundo mudou”

Regan: “Qualquer chance de realização dos defensores dos direitos animais depende do crescimento do movimento”

Falecido em 17 de fevereiro de 2017, aos 78 anos, Tom Regan foi um importante filósofo moral da teoria dos direitos animais e professor de filosofia da Universidade Estadual da Carolina do Norte, onde lecionou por 34 anos. Conquistou prestígio internacional por sua produção prolífica voltada ao abolicionismo animal. Em 2006, Regan teve o seu livro “Empty Cages”, ou “Jaulas Vazias”, publicado no Brasil. Alguns anos depois, publicou um raro artigo em seu site “The Animals Voice”.

Intitulado “Vegan Choice”, no texto, Regan aborda a sua compreensão do veganismo e da importância das pessoas se absterem de consumir produtos de origem animal, e entenderem, de fato, que a luta pelos direitos animais também diz muito sobre quem somos e o que fazemos enquanto seres humanos. Talvez uma das mensagens mais importantes do artigo seja a de que “é pouco provável que consigamos o que queremos alcançar sem entender a natureza dos desafios que enfrentamos.” Ainda assim, “Vegan Choice” é um texto diverso – com passagens picarescas, realista, ponderado e ao mesmo tempo alentador – em que Regan deixa claro que a descrença não deve vencer quem luta por justiça pelos animais, e que é importante seguir em frente até o “último suspiro”:

No convite que me foi feito nesta ocasião, pediram que me ocupasse de abordar a escolha vegana. Agora, pelo menos na minha experiência, diferentes veganos entendem o veganismo de maneira distinta.

Alguns estão inclinados a pensar nisso como uma escolha alimentar: veganos são pessoas que não comem a carne de outros animais, nem os chamados produtos de origem animal, incluindo leite, queijo e ovos. Assim, os veganos não só seguem um estilo de vida que difere das pessoas que clamam por carne animal do McDonald’s e da KFC; eles também diferem dos vegetarianos que, assim como os veganos, se abstêm da “carne”, mas que, ao contrário dos veganos, consomem ovos ou produtos lácteos. Essa é uma maneira de entender o veganismo: é o nome de uma escolha alimentar.

A Vegan Society entende o veganismo de maneira diferente. Aqui está como eles definem o termo:

“A palavra ‘veganismo’ denota uma filosofia e um estilo de vida que procura excluir – na medida do possível e do praticável – todas as formas de exploração e crueldade contra os animais visando alimentos, roupas ou qualquer outra finalidade; e, por extensão, promove o desenvolvimento e o uso de alternativas livres de animais para o benefício de humanos, animais e meio ambiente. Em termos dietéticos, denota a prática de dispensar todos os produtos derivados parcialmente ou totalmente de animais.”

Observe como essa definição abrange “todas as formas de exploração e crueldade contra animais”, não só para “alimentação”, mas também para “roupas ou qualquer outro propósito”. A definição do veganismo da Vegan Society inclui, em termos dietéticos, “dispensar todos os produtos derivados total ou parcialmente de animais”. A definição inclui muito mais do que a escolha de uma pessoa do que comer. Ou não.

Então, nós nos reunimos aqui para pensar sobre a “escolha vegana”, e a primeira pergunta que temos a fazer é como entender essa escolha: estritamente (como uma escolha estrita a dieta apenas) ou abrangente (como uma escolha que inclui outros aspectos sobre como vivemos – que roupa usamos, por exemplo). Sempre estive inclinado a pensar sobre a ideia de forma estrita:

Veganismo é o nome de uma prática dietética. No entanto, devo admitir que é difícil para mim dizer que a Vegan Society, que pretende falar por veganos de todos os lugares, não entende a ideia para a qual foi nomeada. É por isso que sugiro, e espero que você concorde, que entendamos “escolha vegana” de maneira ampla [como defendido pela Vegan Society], o que significa que a escolha que estamos considerando é se devemos ou não adotar um modo de vida que procure remover nosso apoio, na medida do possível e praticável, de todas as formas de exploração e crueldade contra animais para qualquer propósito.

Entendida dessa maneira, “a escolha vegana” é indistinguível de outra ideia com a qual muitos (na verdade, provavelmente todos vocês) estão familiarizados: a ideia dos direitos animais ou, para ser mais preciso, a ideia de como seria o mundo se os direitos animais fossem reconhecidos e respeitados. Pois se eles fossem reconhecidos e respeitados, não por poucos, mas por todos, as pessoas não comeriam carne animal ou produtos de origem animal, assim como não usariam roupas feitas de peles ou lã. Por causa de como essas duas ideias (escolha vegana e direitos animais) se amalgamam, vou usá-las de forma intercambiável.

Agora, os veganos não são conhecidos por seu senso de humor. Isso é fato. Mesmo assim, ouvi algumas boas piadas veganas ao longo do caminho. Como:

Por que a galinha atravessou a estrada?

Porque ela estava sendo perseguida pelo Coronel Sanders [em referência ao fundador da KFC].

Ou algo como:

Por que o vegano atravessou a estrada?

Porque ele estava protegendo a galinha.

E tem:

Quantos veganos são necessários para trocar uma lâmpada?

Dois, um para trocá-la e outro para checar se há insumos de origem animal.

Mas também lembre-se:

Quantos vivisseccionistas são necessários para trocar uma lâmpada?

Nenhum, eles não querem que você veja o que eles estão fazendo.

Como o comediante estadunidense Bill Cosby observa: “Você já notou os clientes [veganos] em lojas de alimentos saudáveis? Eles são pálidos, magrelos e parecem meio mortos. Em uma steakhouse, você vê pessoas robustas e coradas – que estão morrendo, claro, mas, ei! eles parecem formidáveis!

Aqueles que me conhecem sabem disso: Se Tom Regan tem uma mensagem central e recorrente é essa: qualquer chance de realização dos defensores dos direitos animais depende do crescimento do movimento – e crescendo não um pouco, mas muito. O que quero dizer com muito? Não quero dizer centenas, milhares ou dezenas de milhares de novas pessoas abraçando os direitos animais. Nem quero dizer centenas de milhões. Não, o que quero dizer com muito é o que o astrônomo Carl Sagan era conhecido por dizer: Quero dizer bilhões e bilhões. Só se chegar o dia em que bilhões e bilhões de pessoas acreditarem e praticarem os ideais que definem o veganismo, amplamente concebido – só então teremos uma esperança realista de alcançar o que queremos alcançar.

Agora, pessoas diferentes podem ter reações diferentes à enormidade do desafio que encaramos. Uma vez que esse desafio é traçado em termos de números reais (e muito elevados), alguns defensores dos animais dirão (a grosso modo): “Meu Deus, a situação é desesperadora!” Alguns irão além e dirão: “A situação é tão desalentadora que estou jogando a tolha – desistindo – abandonando a causa.”

Entendo essas reações. Quem entre nós não olhou para o que está acontecendo com os animais (mais de 50 bilhões são abatidos no mundo todo anualmente, e isso sem contar a vida marinha) – quem entre nós não abriu os olhos para as dimensões incalculáveis do trágico destino que os animais devem suportar, e não se sentiu totalmente exaurido, completamente exausto, totalmente mitigado pelos desafios que enfrentamos? Sentir desespero diante das esmagadoras adversidades é uma resposta humana perfeitamente natural. Também não é muito útil. Nós não nos incluímos aos nossos números subtraindo-nos do total. Deixe me repetir isso porque é importante: Não nos incluímos aos nossos números subtraindo-nos do total.

Não, a esperança para os animais exige que permaneçamos no curso, enquanto pudermos – até o nosso último suspiro, na verdade. Isso é o mínimo que podemos fazer. E é uma promessa muito pequena quando comparada com o que os animais têm que suportar até o último suspiro.

Uma razão pela qual os desafios que enfrentamos parecem tão grandes é porque tentamos imaginar aqueles bilhões de pessoas se juntando às nossas fileiras, mas por outro lado permanecendo do mesmo jeito. Chegará o dia em que bilhões [de pessoas] não comerão mais a carne de animais mortos nem vestirão suas peles; não irão aos circos nem visitarão os parques marinhos; não comprarão cosméticos que foram testados em animais, e não doarão dinheiro para instituições de caridade que apoiam pesquisas com animais; eles não…bem, você pode adicionar à lista do que eles eliminam de suas vidas. Mas além dessas mudanças, muitos de nós parecem assumir que esses bilhões de pessoas são os mesmos que compõem a maioria da população atual. A única diferença é que eles têm que vir para o nosso lado quando se trata do veganismo ou dos direitos animais.

Quero sugerir que esse modo de pensar é simplista demais. Não estamos tentando apenas mudar alguns velhos hábitos sobre o que as pessoas comem ou vestem. Bilhões de pessoas abraçarão os direitos animais apenas se bilhões de pessoas mudarem de forma mais profunda, mais fundamental, e de forma mais revolucionária. O que quero dizer não é nada menos do que isso: Eles devem abraçá-lo e, em suas vidas, devem expressar uma nova compreensão do que significa ser humano. Como seria esse novo entendimento? Aqui (por meio de um esboço grosseiro) está a minha resposta:

Salve não apenas as baleias e o planeta, mas nós mesmos.

Como seria esse novo entendimento? Isso é o que tenho tentado explicar; é isso que a Geração Ti representa. Os desafios que enfrentamos, então, não podem ser reduzidos a convencer bilhões de pessoas a escolherem o veganismo; isso inclui a transformação de quem são as pessoas de hoje em quem elas podem ser amanhã.  Não algumas delas. Muitas. Bilhões e bilhões.

A situação é desalentadora? Devemos abandonar a causa? Acho que não. Pelo menos não até que tenhamos feito sérios esforços para trazer o tipo de mudança revolucionária que tenho descrito. É pouco provável que consigamos o que queremos alcançar sem entender a natureza dos desafios que enfrentamos. Nunca vamos entender a natureza dos desafios que enfrentamos se pensarmos exclusivamente em ter bilhões e bilhões de pessoas abraçando o veganismo. Porque isso é apenas uma parte, não a totalidade da mudança que buscamos. Quanto às perspectivas do nosso sucesso? Encerro citando brevemente as palavras da imortal Margaret Mead: “Nunca duvide que um pequeno grupo de pessoas conscientes e engajadas possa mudar o mundo. De fato, sempre foi assim que o mundo mudou.”

Referência

Regan, Tom. Vegan Choice. The Animals Voice.

 





Tom Regan: “Os direitos animais nos levam a fazer um inventário moral de nossa maneira de viver no mundo”

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“Coloco-me entre aqueles que acreditam apaixonadamente nos direitos animais. Mas minha crença apaixonada não flui da emoção cega”

Em “Animal Rights”, Human Wrongs”, Regan usa como referência a filosofia que rege os direitos humanos como ponto de partida para a discussão dos direitos animais (Foto: Reprodução)

Em 2003, um ano antes do filósofo moral Tom Regan, referência na discussão dos direitos animais, lançar o livro “Empty Cages: Facing the Challenge of Animal Rights”, ele publicou um livro intitulado “Animal Rights, Human Wrongs – An Introduction to Moral Philosophy”. Esta obra de introdução à filosofia moral foi apontada por Regan como a que abriu o caminho para o seu trabalho lançado no ano seguinte. Por isso, é justo dizer que “Empty Cages”, lançado no Brasil como “Jaulas Vazias” em 2006, é uma continuidade das discussões de “Animal Rights, Human Wongs”, mas com duas distinções substanciais. Enquanto o livro de 2003 fala quase que restritamente à razão, o segundo, que tem um escopo mais abrangente, clama também ao coração. Sendo assim, para quem já leu uma das obras, ler a outra permite uma compreensão complementar da perspectiva moral de Regan em relação aos animais que objetificamos, matamos e consumimos para atender supostas necessidades.

Em “Animal Rights”, Human Wrongs”, Regan usa como referência a filosofia que rege os direitos humanos como ponto de partida para a discussão dos direitos animais. O filósofo aborda questões bastante controversas envolvendo o contratualismo de Thomas Hobbes, John Locke e Jean-Jacques Rousseau; e o utilitarismo gestado por Jeremy Bentham e John Stuart Mill. Pode-se dizer que “Animal Rights, Human Wrongs” é um livro com orientações, e características de guia, que perpassam pela realidade, história, equívocos morais e o ideal posicionamento moral em relação aos seres não humanos. Tom Regan oferece respostas e reflexões para questões complexas e até hoje altamente discutíveis em relação à intransigência humana no tratamento destinado a seres não humanos.

A obra, que de certa forma celebrou os mais de 30 anos do envolvimento de Regan com os direitos animais, também pode ser interpretada como um manual sobre como discutir sobre os direitos animais sem deixar-se vencer pelos arroubos da passionalidade – algo que pode impedir que defensores dos direitos animais consigam transmitir uma mensagem eficaz contrária à exploração animal na perspectiva do filósofo.

Logo no prefácio do livro, o autor diz que algumas pessoas, incluindo ele, são apaixonadas pela convicção de que muitos animais não humanos têm direitos; já outras não são menos apaixonadas pela convicção de que eles não os têm:

“A atmosfera emocionalmente carregada em torno dos partisans de ambos os lados é reminiscente de outras questões morais controversas – aborto e ação afirmativa, por exemplo. Para aquelas pessoas (a grande maioria, por acaso) que não têm fortes convicções em relação aos direitos animais, de uma forma ou de outra, é difícil saber o que pensar.”

Registrado isso, Regan busca orientar aqueles que têm muitas dúvidas sobre como lidar principalmente com opositores aos direitos animais, que frequentemente descrevem os defensores desses direitos como irracionais, emocionais, anticientíficos e misantrópicos. Segundo Regan, essas caracterizações ou estereótipos podem ser verdadeiras para alguns, mas elas não são verdadeiras para a grande maioria dos defensores dos direitos animais.

“A estratégia [do livro] é simples. Fazemos perguntas difíceis, exploramos as possibilidades relevantes e procuramos as melhores respostas. Então vemos onde essas respostas nos levam.[…]  Quando seguimos essa estratégia, acredito que a lógica nos leva a uma conclusão simples: muitos animais não humanos têm direitos. Alguns dos desafios que enfrentamos surgem na teoria moral.”

Primeiro o livro apresenta um referencial de ideias fundamentadas em diferentes filosofias morais; e nas nossas relações com essas ideias. Então utiliza esses parâmetros como um arcabouço para as questões que são desenvolvidas e elencadas no decorrer do livro, mas principalmente nos últimos capítulos. Até porque Regan entende que não há como gerir boas respostas se não considerarmos a base e as motivações que dão origens às perguntas, mesmo que nos pareçam picarescas ou provocativas.

“Animal Rights, Human Wrongs” está dividido nos capítulos “Da indiferença à Defesa”, “Exploração Animal”, “A Natureza e a Importância dos Direitos”, “Visões Indiretas do Dever”, “Visões Diretas do Dever”, “Direitos Humanos”, “Direitos Animais”, “Objeções e Respostas” e “Filosofia Moral e Mudança”. Partindo de um princípio introdutório à filosofia moral, Tom Regan cita que naturalmente teóricos morais fazem com frequência dois tipos de perguntas: “O que torna certos atos certos?” e “O que faz com que os atos errados sejam errados?” Afinal, teorias diferentes oferecem respostas diferentes.

“Apesar dessas diferenças, toda teoria tem algo a dizer sobre quem tem posição moral (que conta moralmente). Por exemplo, algumas teorias morais dizem que todos e apenas os seres humanos têm uma posição moral. Se for verdade, a notícia não é boa para animais não humanos. Se for verdade, os animais não humanos não contam para nada moralmente”, cita Regan partindo de uma comum perspectiva antropocêntrica que ele teve de confrontar ao longo de sua carreira em oposição a filósofos que não reconheciam e não reconhecem os direitos dos animais.

Por outro lado, há teorias morais, incluindo a defendida por ele, que dizem que todos os seres sencientes (capazes de sentir prazer e dor) têm uma posição moral. Claro, sendo verdade, esses animais contam moralmente. “Não pode ser verdade que somente os seres humanos tenham uma posição moral”, enfatiza Regan que introduz o leitor ao entendimento do que são os direitos morais, e por que até hoje os seres humanos têm direitos morais embora não os outros animais.

Ele faz isso de forma a permitir que o leitor tire suas próprias conclusões. Ademais, levanta questões envolvendo certo e errado enquanto posição moral, e defende que quanto mais nos deparamos com dúvidas, críticas e argumentos contrários aos nossos mais fortalecemos a nossa filosofia moral em relação aos direitos animais e também a outras questões:

“Nossa exploração dos direitos dos animais, em particular, serve como uma introdução à filosofia moral em geral. A filosofia moral não é apenas teoria; é repleta de significado prático. Isso significa que, além de fazer perguntas teóricas, também precisamos fazer perguntas práticas, incluindo essa em particular: Que diferença faz se os animais têm ou não direitos morais? Como vemos, não há questão mais importante, julgada do ponto de vista dos animais. Se os animais não têm direitos, então nenhuma das maneiras pelas quais os seres humanos os exploram (como fonte de alimento ou roupas, por exemplo) é errada em princípio, e nenhuma necessidade errada deve ser criada se continuarmos a explorá-lo dessa maneira em um futuro indefinido. Por outro lado, se os animais têm direitos, então todas as formas de exploração deles são erradas, em princípio, e cada uma delas deve ser interrompida imediatamente.”

Para entender a importância dos direitos animais, Regan sugere que as pessoas julguem isso do ponto de vista dos animais, porque neste caso a preocupação é elevada à condição primária: “Também não devemos minimizar a importância dessa questão para nós. Se os direitos dos animais são violados quando eles são criados para a produção de alimentos, presos por causa de suas peles ou usados como instrumentos em pesquisas, então temos o dever de mudar a maneira como vivemos, os alimentos que comemos (ou não comemos) e as roupas que vestimos (ou não vestimos).”

De acordo com Tom Regan, nada reflete melhor a maneira como absorvemos e entendemos a moral do que a prática de nossas vidas diárias. No chamamento à discussão moral em relação ao direito à vida não humana, ele discorre sobre questões como aborto e suicídio assistido por médicos como ações de grande significado prático:

“Em contraste, a questão dos direitos animais nos obriga a perguntar o que devemos fazer quando nos sentamos para a nossa próxima refeição ou quando vamos comprar um casaco novo. Os direitos animais são um tipo de investigação que nos leva a fazer um inventário moral de nossas escolhas mais comuns, nossa maneira de viver no mundo. Como eu disse no início, coloco-me entre aqueles que acreditam apaixonadamente nos direitos animais. Mas minha crença apaixonada não flui da emoção cega ou da falta de respeito pela razão, quanto mais pela misantropia. Acredito nos direitos dos animais porque acredito que a teoria moral na qual seus direitos são afirmados é racionalmente uma teoria mais satisfatória do que aquelas teorias em que seus direitos são negados.” Em “Animal Rights, Human Wrongs”, talvez a pergunta mais importante seja: “Como podemos viver uma vida que respeite os direitos dos outros animais?”

Referência

Regan, Tom. Animal Rights, Human Wrongs. Rowman & Littlefield Publishers. 144 páginas (2003).





Tom Regan x Peter Singer: abolicionismo e utilitarismo, uma discussão sobre os direitos animais

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Tom Regan e Peter Singer, abolicionismo e utilitarismo (Fotos: Reprodução)

A rivalidade de Tom Regan e Peter Singer no campo da filosofia moral que rege os direitos animais surgiu publicamente no início dos anos 1980. Mas foi em 1983 que os dois filósofos passaram a representar dois espectros consideravelmente distintos da discussão sobre os direitos animais. De um lado, Regan, autor de obras como “The Case for Animal Rights” e “Empty Cages”, com uma perspectiva mais próxima do que se entende hoje por abolicionismo animal, e “Peter Singer”, autor do clássico “Animal Liberation”, com um posicionamento utilitarista e pragmático que permite concessões no uso de animais em casos específicos.

Dois anos depois que Tom Regan lançou o seu primeiro clássico – “The Case for Animal Rights”, de 1983, Peter Singer publicou uma crítica ao trabalho de Regan no New York Reviews of Books. E desde então, os dois passaram formalmente a se posicionar cada vez mais publicamente sobre suas diferenças no entendimento dos direitos animais. Porém, apesar das disparidades, os dois nunca se viram ou se consideraram como inimigos. Muito pelo contrário, relegavam suas desconformidades apenas ao campo das ideias e da filosofia.

Exemplo emblemático e histórico dessa rivalidade é uma crítica de autoria de Tom Regan publicada no New York Review of Books em 25 de abril de 1985 em resposta ao artigo “Tem Years of Animal Liberation”, de 17 de janeiro de 1985, que comemorou os dez anos de lançamento do livro “Animal Liberation”, de Peter Singer. Na crítica, Regan relata que nos últimos dez anos ele e Peter Singer traçaram caminhos diferentes, aplicando teorias éticas diferentes a uma variedade de questões morais e sociais, incluindo o tratamento dado aos animais não humanos.

Regan registrou que Singer já se esforçava para apoiar seu argumento com base no que ele chama de “movimento de libertação animal” em cálculos utilitaristas: “No livro ‘The Case for Animal Rights’, que recebeu uma resenha de Singer nestas páginas, tentei estabelecer as bases teóricas para o que, em contraste com Singer, chamo de ‘o movimento pelos direitos animais’.”

Em uma discussão sobre a obra “The Case for Animal Rights”, Tom Regan e Peter Singer tiveram um impasse em 1985 sobre uma história hipotética envolvendo o caso de um bote salva-vidas em que alguns seres humanos dividem o espaço com um cão. Porém, para a sobrevivência da maioria, um deles deveria deixar o bote. O dilema baseado em um exemplo, que naturalmente não faz parte de uma realidade comum, acirrou ânimos, mas serviu para ilustrar convergências e divergências entre as perspectivas filosóficas de Regan e Singer na década de 1980:

Nas palavras de Tom Regan

Há mais do que uma diferença verbal aqui. É pelo apelo aos direitos animais que a visão de direitos, como chamo a posição desenvolvida em meu livro, emite sua condenação categórica da escravidão, por exemplo. Essa instituição está categoricamente errada, sejam quais forem as consequências, porque sistematicamente viola o direito dos seres humanos de serem tratados com respeito. A posição de Singer, no entanto – (supondo que os interesses iguais foram considerados igualmente) – é o de que a escravidão esteja errada por causa das consequências, uma posição que, por fazer com que o erro da instituição esteja sujeito consequências, claramente implica que a escravidão não seria errada se as consequências fossem otimistas [sic]. É difícil exagerar a diferença moral radical entre o utilitarismo de Singer e a visão de direitos.

Essa mesma diferença pode ser ilustrada quando consideramos o tratamento dos animais. A visão de direitos oferece uma condenação categórica do uso nocivo dos animais na ciência, por exemplo, exigindo sua total abolição. E faz isso independente dos apelos às consequências, repousando seu caso aqui, como no caso de sua condenação da escravidão, na violação sistemática dessa instituição do direito dos animais de serem tratados com respeito. Como um utilitarista, Singer não pode oferecer uma crítica que seja independente dos apelos às consequências; de fato, ele é obrigado a admitir – e ele tem admitido – que alguns usos nocivos dos animais em benefício da ciência podem ser moralmente permissíveis. A posição de Singer não é antivivissecionista. A visão dos direitos é. Mais uma vez, a diferença entre as duas posições não poderia ser mais clara.

“The Case for Animal Rights”, como a discussão anterior sobre as instituições da escravidão de bens móveis e o uso prejudicial de animais na ciência, pode sugerir uma preocupação com a oferta de uma base para avaliar práticas e políticas sociais em andamento.  Isso é algo que um leitor da crítica de Singer pode perder, já que Singer concentra seu fogo crítico, não neste aspecto do livro, mas na minha breve discussão sobre um caso de salva-vidas: quatro humanos normais e adultos e um cachorro morrerão a menos que um dos humanos sacrifique sua vida; ou um dos humanos ou o cachorro seja jogado ao mar. Seria errado jogar o cachorro no mar nessas terríveis circunstâncias? Eu não acredito que seria, e eu argumento que a visão de direitos apoia este julgamento. Singer, por sua vez, “confessa ter alguma dificuldade em compreender” minha resposta, e pergunta se minha disposição em sacrificar o cão neste caso pode não ser inconsistente com minha oposição categórica ao uso nocivo de animais na ciência.

Não há inconsistência aqui, entretanto, já que os dois casos diferem de maneira moralmente crucial. No caso do uso nocivo de animais na ciência, animais são coercitivamente colocados em risco, riscos que eles não correm de outra forma, para que outros possam se beneficiar. Dia após dia, eles são forçados a correr riscos por nós (e pelos outros), e assim são institucionalmente tratados como se existissem como meros recursos, cujo lugar no esquema moral das coisas é servir aos interesses de outros indivíduos. Essa transferência coercitiva de riscos, de outros para esses animais, quando os próprios animais não correm o risco de sofrer os danos que lhes são impostos é, como explicarei detalhadamente no caso, uma violação indefensável de seu direito de ser tratado com respeito.

O caso do bote salva-vidas é diferente. O risco de morte do cão é assumido como sendo o mesmo de cada um dos sobreviventes humanos. E ainda é assumido que ninguém corre esse risco por causa de violações precedentes de direito; por exemplo, ninguém foi forçado ou enganado a bordo. Os sobreviventes estão todos no bote salva-vidas porque, digamos, uma embarcação maior afundou ou o rio inundou.

Não há indício de inconsistência, portanto, em fazer julgamentos morais diferentes nos dois casos. É errado – categoricamente errado – coercitivamente colocar um animal em risco de dano, quando o animal não correria esse risco, para que outros pudessem se beneficiar; e é errado fazer isso em um contexto científico ou em qualquer outro contexto, porque tal tratamento viola o direito do animal de ser tratado com respeito, reduzindo o animal ao status de um mero recurso, um mero meio, uma coisa. No entanto, não é errado jogar o cão do bote salva-vidas ao mar se o cão corre o mesmo risco de morrer que os outros sobreviventes, se ninguém violar o direito do cão ao colocá-lo a bordo, e se todos a bordo do bote perecerão se continuarem em sua condição atual.

Dado que essas condições são satisfeitas, a escolha de quem deve ser salvo deve ser decidida pelo que chamo de princípio de dano. O espaço me impede de explicar esse princípio aqui (veja o livro “Case For the Animal Rights”, capítulos 3 e 8). É suficiente dizer que ninguém tem o direito de fazer com que o seu menor dano seja maior do que o maior dano do outro. Assim, se a morte seria um dano menor para o cão do que seria para qualquer um dos sobreviventes – (e esta é uma suposição que Singer não contesta) – então o direito do cão de não ser ferido não seria violado se ele fosse lançado ao mar. Nessas circunstâncias perigosas, suponho que nenhum direito de ser tratado com respeito tenha sido parte de sua criação, o direito individual do cão de não ser prejudicado deve ser ponderado de forma equitativa contra o mesmo direito individual de cada um dos sobreviventes humanos.

Ponderar esses direitos dessa maneira não é violar o direito de qualquer pessoa de ser tratada com respeito; exatamente o oposto é verdadeiro, e é por isso que os números não fazem diferença nesse caso. Dado que o que devemos fazer é pesar o dano enfrentado por qualquer indivíduo contra os danos enfrentados pelo outro indivíduo, em relação a um indivíduo, não em relação a uma base coletiva, então não faz diferença quantos indivíduos sofrerão menos, ou qual indivíduo sofrerá mais. Não seria errado lançar um milhão de cães ao mar para salvar os quatro sobreviventes humanos, supondo que o caso do bote salva-vidas fosse o mesmo. Mas também não seria errado lançar um milhão de humanos ao mar para salvar um sobrevivente canino, se o dano que a morte causaria aos humanos fosse, em cada caso, menor do que o dano que a morte causaria ao cão.

Tendo tentado aqui dissipar os fundamentos da confessa “dificuldade” de Singer em entender o meu tratamento do caso do bote salva-vidas, quero enfatizar novamente o meu ponto anterior, que “The Case” tenta oferecer uma base teórica para avaliar a ética das práticas sociais em cursos e instituições, e, no curso disso, atende à tarefa de lançar as bases do movimento dos direitos dos animais. Fazer muito da minha breve discussão sobre uma ocorrência isolada, bizarra e pouco comum – o caso do bote salva-vidas – é perder a maior parte do que “The Case” apresenta, seja [a obra] bem-sucedida ou não.

Nas palavras de Peter Singer

Regan procura enfatizar as diferenças entre a sua visão e a minha. Ele diz que sua posição requer a abolição total do uso nocivo de animais na ciência, enquanto a minha não. É verdade que, numa visão utilitarista, poderia haver circunstâncias em que um experimento com um animal pudesse reduzir tanto o sofrimento, que seria permissível realizá-lo mesmo que envolvesse algum dano ao animal. (Isso poderia ser verdade, aliás, mesmo se o animal fosse um ser humano). Mas se concentrarmos na prática social da experimentação, uma posição utilitarista exige que procuremos acabar com esses trágicos conflitos de interesses, desenvolvendo métodos de pesquisa que não envolvem o uso nocivo de criaturas sencientes. A abolição de todos os usos nocivos dos animais na ciência é, portanto, tanto o objetivo do meu ponto de vista quanto o de Regan.

Mas, Regan protestaria, pois o utilitarismo é apenas um objetivo final; na visão de direitos é um requisito imediato. De fato – pensando ainda na prática social da experimentação como um todo, e não em casos individuais, bons argumentos utilitaristas poderiam ser oferecidos para a imediata abolição da experimentação animal. Seria imensa a quantidade de animais poupados do sofrimento; os benefícios perdidos na melhor das hipóteses seriam incertos; haveria um incentivo que proporcionasse o rápido desenvolvimento de meios alternativos de condução de pesquisas, as mais poderosas imagináveis.

Se, por outro lado, desviarmos nossa atenção da prática social existente de experimentação para casos hipotéticos, então a visão de Regan também não pode consistentemente implicar a abolição total de todos os usos nocivos de animais na ciência. Em minha análise, sugeri que, dado o que ele diz sobre o caso do bote salva-vidas, ele não pode negar consistentemente que seria permissível sacrificar um número ilimitado de cães para salvar uma vida humana. Ele agora responde que o caso do bote salva-vidas é diferente da experimentação animal, porque os animais no bote salva-vidas não foram coagiados à situação em que correm risco de sofrer danos. Essa diferença, no entanto, não distingue a situação do barco salva-vidas de todas as circunstâncias possíveis em que os animais são usados em experiências.

Suponha, por exemplo, que um vírus novo e fatal afete os cães e os seres humanos. Cientistas acreditam que a única maneira de salvar as vidas de qualquer um dos afetados é realizar experimentos com alguns deles. Os sujeitos dos experimentos morrerão, mas o conhecimento adquirido significará que outros afetados pela doença viverão. Nesta situação, os cães e os seres humanos estão em perigo igual, e o perigo não é resultado de coerção. Se Regan acha que um cão deve ser expulso do bote salva-vidas para que os seres humanos possam ser salvos, ele não pode consistentemente negar que devemos usar um cão doente para salvar humanos doentes.

Isso não é tudo. Desde que Regan diz que nesses casos os números não contam, e um milhão de cães deve ser jogado ao mar para salvar um único ser humano, ele teria que dizer que seria melhor realizar o experimento em um milhão de cães do que realizar em um único humano. Aqui podemos ver as extraordinárias consequências da recusa em tomar conhecimento dos números: nas circunstâncias descritas, a suposta visão “totalmente abolicionista” de Regan permite muito mais – na verdade, literalmente e infinitamente mais – experimentação animal do que a visão utilitária que acrescenta que até o dano sofrido pelos cães em algum ponto é muito maior do que o dano que seria sofrido por um único ser humano.

Independentemente dessa consequência infeliz da visão de Regan, parece errado sustentar que o que podemos fazer a um cão em um bote salva-vidas depende de como o cão passou a estar no bote salva-vidas em primeiro lugar. O ponto é bem feito em um artigo não publicado por Dale Jemieson, um filósofo da Universidade do Colorado. Como Jamieson argumenta, dificilmente parece apropriado perguntar, antes de decidirmos colocá-los em nosso bote salva-vidas, se os animais ou pessoas que afogam estão na água porque foram empurrados (o que presumivelmente seria uma violação de seus direitos), ou porque caíram (o que não seria). Portanto, Regan não conseguiu conciliar o que ele diz sobre o caso do barco salva-vidas com seu apoio declarado à abolição total da experimentação animal. Concordo inteiramente, entretanto, que tais casos hipotéticos bizarros não têm nenhum significado prático. O valor prático do livro de Regan está em seus ataques às nossas práticas sociais de usar animais como ferramentas de pesquisa e como meros pedaços de carne viva e palatável. Sobre essas questões práticas, Regan e eu estamos em total concordância. Vista da perspectiva de uma sociedade que continua a aceitar essas práticas, as diferenças filosóficas entre nós pouco importam.

Referência

Regan, Tom; Singer, Peter. The Dog in the Lifeboat: An Exchange. The New York Review of Books (25 de abril de 1985).