David Arioch – Jornalismo Cultural

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Considerações sobre Hitler e sua ascensão

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Em 1933, o Partido Nazista se tornou o maior partido do Reichstag, sendo liderado por Adolf Hitler que assumiu como chanceler da Alemanha em 30 de janeiro. Foi só quando Hitler, com o apoio do Parlamento, aprovou a Lei Habilitante que a Alemanha começou a sua transição para o nazismo. Sim, a população que o elegeu não sabia exatamente que Hitler submeteria a República de Weimar a um governo autoritário e autocrático.

Também não pensavam a respeito nem se preocupavam com a possibilidade porque a prioridade-mor era a recuperação econômica, independente de qual seria o custo. Sendo assim, se aparecesse um “salvador da pátria”, mesmo que com discurso populista, porém temerário, naturalmente ignorariam e considerariam os louros do possível progresso. E foi o que aconteceu.

Hitler, como líder do maior partido do Parlamento, conquistou bastante influência até 1932, mas não o suficiente para ganhar a simpatia do presidente Paul von Hildenburg, que comandou o Exército Imperial Alemão, e considerava Hitler um “militar medíocre e boêmio”. Hildenburg evitou o máximo que pôde a transmissão da chancelaria para Hitler, mas por pressões externas e políticas acabou cedendo e vindo a falecer pouco tempo depois, em 1934, no mesmo ano em que Hitler instaurou efetivamente o Terceiro Reich.

A principal arma de Hitler para ganhar a confiança da população foi a propaganda nazista que se apresentava como uma terceira via e fez uma grande parcela dos alemães considerarem os judeus como inimigos, mas não a princípio com a tentativa de relegá-los como inferiores (ou com qualquer relação com a questão ariana ou a eugenia), como faria mais tarde, mas sim como representantes de algo que, segundo Hitler, estava destruindo o país – os comunistas e os capitalistas. Isso mesmo, embora uma antítese, Hitler enxergava esses dois espectros econômicos diametrais como inimigos dos alemães, e vendia essa ideia. Essa crença também permitiu que sua popularidade aumentasse muito, já que Hitler era rejeitado pelos muitos simpatizantes de Hildenburg, que o viam como um ameaça ao Estado Alemão.

Mas com a criação de um inimigo visível, e próximo de todos os alemães, a população germânica, imersa no sonho da recuperação econômica, comprou massivamente a propaganda hitlerista como símbolo da idealização de um Estado rico que pudesse não apenas salvar os alemães, mas se sobressair a todos os outros, e a partir daí então se perpetuaria, de fato, a crença na eugenia, e em uma suprassoberania. Em síntese, o nazismo conquistou a simpatia da população não pelo autoritarismo embutido ideologicamente, mas pelos supostos benefícios econômicos que na mente de uma massa incauta faria qualquer mal valer a pena.

Written by David Arioch

November 1st, 2018 at 12:59 am

Porianna, nascimento e morte de um jovem neonazista

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Não o reconhecia. Defendia crimes contra migrantes, imigrantes e falava em limpeza étnica

A última vez que o encontrei pessoalmente foi em 2001, num festival de bandas de heavy metal no Tribo’s Bar (Foto: Maringá Histórica)

A última vez que o encontrei pessoalmente foi em 2001, num festival de bandas de heavy metal no Tribo’s Bar (Foto: Maringá Histórica)

Conheci Piero pessoalmente quando tínhamos 17 anos. Ele era um adolescente comum. Estatura mediana, magro, cabelos e olhos castanhos e uma exímia vontade de existir e ser notado para além dos cravos e das espinhas que o exasperavam. No final dos anos 1990, nos tornamos amigos por meio da música. Eu já gostava muito de heavy metal e ele também. Então começamos a fazer trade em Maringá, onde ele visitava familiares. Eu saía de Paranavaí e ele de São Paulo. Nos encontrávamos na Musical Box, na Avenida Brasil, onde trocávamos CDs e cópias de fitas de shows em VHS.

Piero era mais tímido do que eu. Falava pouco e não saía sozinho, pelo menos a maior parte do tempo. Me parecia sempre inseguro com seu olhar enviesado e vacilante que fortuitamente mirava o chão ou a parede mais distante. “Depois de mais de dois anos trocando ideias, é legal te conhecer, velho!”, eu disse apertando sua mão tão escanzelada que me dava a impressão de que eu estava segurando pés de galinha. Ele deu um sorriso fragilizado e acenou com a cabeça, em concordância, retomando uma postura que se esforçava para velar uma precoce hiperlordose.

Meu primeiro contato com Piero foi pela internet, em um canal de fãs de heavy metal da velha rede social Brasnet, acessada pelo programa mIRC, muito usado pela geração anos 1980. Tínhamos um grupo de dezenas de pessoas e passávamos pelo menos duas horas por dia tentando expandir nosso canal, fazendo brincadeiras e trocando informações sobre música. Era divertido. Eu era um dos operadores do canal, assim como Piero. Na internet ele se soltava mais. Se sentia mais livre e seguro para manifestar suas opiniões, anseios e inclinações. Nessas horas suas mãos não suavam ou tremulavam porque não havia contato físico. Pessoalmente, Piero só perdia a inibição em shows, quando o álcool e a música em volume extremamente alto o livravam das amarras da excessiva ponderação.

Ficava sorridente, falava com estranhos, perdia o medo de se aproximar de garotas e até trocava números de telefone. Sóbrio, continuava vivendo em um mundo que distante da realidade eletrônica parecia-lhe visceralmente acinzentado e taciturno. Mais tarde, descobri que Piero sofria de ansiedade e depressão. Nem mesmo seu pai sabia disso. A verdade é que se sentia feio, deslocado, magro demais e desprezado pelo mundo. Seu único orgulho eram os cabelos longos que movimentava com a destreza de um chicote amendoado nos shows que assistia motivado pela mais bucólica das empolgações. Sorria como criança vendo um pônei pela primeira vez.

A última vez que o encontrei pessoalmente foi em 2001, num festival de bandas de heavy metal no Tribo’s Bar, em Maringá. Ele tinha bebido bastante e estranhei quando percebi que sumiu em meio à multidão. Eram três horas da manhã e Piero estava lá fora, sentado sobre o meio-fio enquanto a aragem repentina fazia seus cabelos velarem seu rosto como uma máscara. Ele ajeitou os fios e vi seus olhos vermelhos e úmidos – vestígios de choro.

“Meu pai me expulsou de casa e agora estou sem rumo. E pra piorar, ele ainda fez eu perder meu emprego. Foi bêbado lá na loja de discos onde eu trabalhava e bateu no meu chefe, falando que ele estava usando a música pra me ensinar a venerar o diabo. Foi punk, mano! Minha sorte é que arrumei um quarto na casa da minha tia em Santo André”, desabafou.

A mãe de Piero faleceu em decorrência de câncer de mama quando ele tinha 13 anos. A convivência com o pai era muito conturbada. Ele não passava um dia sem ouvir críticas e ofensas à sua aparência e estilo de vida. Sempre que o pai bebia demais era obrigado a suportar as consequências. Muitas vezes teve de pular a janela e dormir em banco de praça para não ser espancado no próprio quarto. A hiperlordose de Piero também era resultado de chutes e socos desferidos pelo pai.

Quando se mudou para Santo André, Piero abandonou o nosso canal na Brasnet. O procurei por semanas até encontrá-lo em um canal secreto chamado Porianna. Consegui ingressar no grupo com um novo pseudônimo, me passando por outra pessoa. A liberação levou alguns dias. No grupo, Piero usava o nome de Globocnik, em homenagem ao austríaco Odilo Globocnik, general da SchutzStaffel (SS), a tropa de proteção do Partido Nazista.

Porianna era um grupo neonazista criado em 1999 e que contava com dezenas de participantes, talvez muito mais, principalmente das regiões Sul e Sudeste do Brasil. Alguns defendiam o racialismo pacífico enquanto outros pregavam o ódio contra raças não brancas, defendendo inclusive ações pontuais de violência que eram cuidadosamente articuladas. Muitas eram tão bem mascaradas que a polícia acreditava que eram casos isolados.

Acompanhando o grupo pelo canal da Brasnet, notei o embrutecimento e a transformação de Piero. Não o reconhecia. Defendia crimes contra migrantes e imigrantes. Falava em limpeza étnica e na aquisição coletiva de uma fazenda onde fundariam a sociedade Porianna, um novo país dentro do Brasil, onde pessoas armadas impediriam a entrada de pessoas não brancas.

“Estamos em todas as camadas da sociedade. Temos os boneheads na parte mais baixa da pirâmide, agindo junto ao proletariado, e juízes, advogados, médicos, engenheiros e jornalistas, todos bem preparados para influenciar a opinião pública. Não há como isso dar errado. Pode ser que não tão logo, mas um dia chegaremos lá”, declarou um homem, fundador do grupo que usava o pseudônimo de Plínio Salgado, em homenagem ao criador do movimento integralista ultranacionalista.

À época, registrei o discurso de uma mulher de 29 anos que se dizia juíza e era conhecida no Porianna como Vera Wohlauf por causa da sua simpatia pela esposa do oficial da SS Julius Wohlauf. O casal ficou famoso após passar a lua de mel assistindo e participando do massacre de judeus no gueto polonês de Miedzyrzec-Podlaski em 1942.

“A democracia não funciona, só que devemos fingir que sim. O que precisamos é encontrar, forjar ou criar um ponto de ruptura que faça a população, até mesmo inferiores como pretos, amarelos, pardos e outros mestiços, acreditar que o melhor caminho é uma política austera e ao mesmo tempo flexivelmente reacionária. As pessoas precisam achar que existe liberdade demais e que isso está associado à libertinagem. Façamos de conta que a nossa política há de ser maleável e quando ascendermos ao poder colocaremos em prática o nosso segundo plano que é a instauração de um governo verdadeiramente estoico, de extrema direita, mas muito superior ao molde hitlerista e franquista. Pinochet também descambou para o fracasso. O segredo é fingir que todos estão incluídos em nossas propostas. Nossa propaganda deve ser voltar para isso, uma ilusão factível”, dissertou Vera.

Aproximadamente um mês depois de ingressar no canal, conversei com Piero. Ele parecia mais seguro de si. No entanto, eu não tinha a mínima ideia de como isso poderia ser bom, levando em conta que ele se tornou uma pessoa completamente diferente. Estava morando sozinho e me contou que era bem pago para produzir, distribuir e despachar o material de divulgação do Porianna.

“A nossa sociedade foi construída sob os preceitos da cultura branca, totalmente ocidentalizada, então por que devemos absorver uma cultura que não corrobora esses valores? O resto é irrelevante, meu amigo, não tem o mesmo peso, a mesma significância. E quem não aceita isso merece ser expulso do Brasil, nem que seja à base de chutes e socos. Ter a pele clara também não diz nada. O que vale é a sua origem, sua identidade racial. Se você tem sangue não branco, você não é branco, mesmo que sua pele seja a mais clara do mundo. Cor de pele não prova que você seja caucasiano. Os traços também dizem mais do que a cor da pele”, defendeu Piero numa noite de conversa privada.

Ele já não ouvia mais heavy metal, somente bandas nacionais e internacionais de hatecore e rock against communism (RAC), grupos que pregavam racialismo, racismo, xenofobia, separatismo, violência e intransigência política e social. “Pela primeira vez eu tenho família, cara! Sou amado de verdade. Sou Porianna até a morte!”, comentou em outra ocasião. Um dia, não resisti e falei a ele quem eu era de verdade.

O questionei sobre o seu sumiço e o novo rumo de sua vida. Deixei claro que era difícil crer que alguém pudesse mudar tanto e se tornar algo completamente avesso a tudo em que ele acreditava. “Você desprezava violência e preconceito, cara. Tudo aquilo que seu pai era te dava repulsa. O que houve nesse entrementes?”, disparei. Piero demorou a responder e fiquei em silêncio aventando o que me esperava. Talvez me denunciasse e neonazistas viessem atrás de mim. Quem sabe a poucos quilômetros de distância houvesse algum simpatizante do Porianna disposto a atear fogo em minha casa quando soubesse que eu não era um deles.

Mas isso não aconteceu, embora a probabilidade não pudesse ser desconsiderada. Isto porque na chamada mais baixa hierarquia, o grupo contava com pessoas sem perspectivas de futuro. Eram capazes de matar ou morrer por um propósito, mesmo que ruim. Confundiam a ficção com a realidade, crentes de que talvez fossem heróis, que a morte não era o fim e que talvez renascessem como um tipo mais contemporâneo de highlander.

“Você é um merda, David! Sempre com esse papo de tolerância e não percebe que a própria vida é uma guerra. Estamos aqui para mostrar que uns merecem mandar e outros nasceram para obedecer. Nem todo mundo deve ter direito à vida, e muito menos o direito de tomar decisões que exigem reflexão. O mundo deve ser comandado pelos fortes, pelos puros de sangue, que conhecem a sua própria história. Não quero um mundo que prega a mistura de raças, a extinção dos povos caucasianos. Brancos não devem ser influenciados por outras raças”, registrou sem velar a irritação.

Depois daquele dia, desapareci do canal e soube que eles migraram para a rede internacional Undernet, onde criaram um vínculo com neonazistas portugueses. Em 2004, Jonas, um amigo em comum com Piero, dos tempos de shows em Maringá, me informou que ele foi assassinado dentro de casa, em Santo André. Além de mim, havia outro jovem infiltrado no grupo e ele estava lá para preparar uma retaliação pela surra que um grupo de simpatizantes do Porianna deu em seu irmão, um sharp (skinhead contra o preconceito racial), perto da Praça da Sé, em São Paulo, o deixando paraplégico.

Piero, que desconhecia o episódio, ouviu alguém batendo palmas em frente à sua casa numa manhã ensolarada de verão. Assim que se aproximou do portão segurando um copo de café, um homem disparou um tiro certeiro contra seu peito. O copo se espatifou no chão e Piero caiu agonizando, ainda com vida. Porém não resistiu às coturnadas que recebeu na cabeça, causando afundamento craniano e morte cerebral. Sobre a estante na sala de Piero havia uma foto em que aparecia eu, ele e Jonas em frente ao Tribo’s Bar em 2001. Naquela madrugada, Piero imobilizou um ladrão, impedindo que um sharp que também estava no Tribo’s fosse assassinado a facadas por um ladrão no Terminal Rodoviário Urbano de Maringá.

Anjo da Morte pode ter morado em Graciosa em 1954

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Pioneiros de distrito de Paranavaí suspeitam que médico nazista viveu no Seminário Imaculada Conceição

Pioneiros do distrito de Paranavaí acreditam que o médico nazista Josef Mengele viveu no Seminário Imaculada Conceição

O médico misterioso raramente deixava o seminário (Acervo: Ordem do Carmo)

Em 1954, um grupo de criminosos armou uma emboscada para assassinar o comerciante Ludovico Selhorst na colônia germânica Graciosa, distrito de Paranavaí, no Noroeste do Paraná. Para não serem identificados, os homens usaram máscaras e se esconderam em uma roça de milho nas imediações do comércio de Selhorst.

À noite, assim que o comerciante ficou sozinho, aguardaram alguns minutos, atiraram nele e fugiram. Quando Ludovico caiu, quem estava próximo do local estranhou o barulho e correu até lá para saber o que aconteceu. “Ele foi atingido perto do braço e não teve tempo nem de ver de onde a bala saiu”, relata a pioneira Francisca Bruning Schiroff que à época tinha 19 anos. Os irmãos da vítima, inclusive Jacob Selhorst que era o delegado do distrito, foram os primeiros a socorrer Ludovico, assim como João Bruning, pai de Francisca, que pediu para alguém chamar um médico hospedado no Seminário Imaculada Conceição.

“Ficamos sabendo desse doutor. Só que ninguém sabia quem era”, conta a pioneira. Descrito como alto, forte e aparentando ter mais de 40 anos, o médico pouco comunicativo estancou o sangramento, aplicou um antibiótico injetável e o encaminhou para o Hospital Professor João Cândido Ferreira, conhecido como Hospital do Estado, em Paranavaí. Para transportá-lo, como não havia ambulância naquele tempo, o colocaram sobre um colchão em cima de um caminhão. A princípio, Ludovico reagiu bem, mas não resistiu e faleceu na manhã seguinte.

Francisca Schiroff: "Ele ficou mais ou menos um ano em Graciosa" (Foto: Reprodução)

Francisca Schiroff: “Ele ficou mais ou menos um ano em Graciosa” (Acervo: Fundação Cultural de Paranavaí)

A suspeita é de que os envolvidos no assassinato trabalhavam explodindo pedreiras com dinamite. “Achamos que o crime foi cometido por homens contratados para retirarem pedras de um rio perto de Graciosa. Eles estavam atuando na construção do seminário e se desentenderam na hora do pagamento. Me parece que queriam receber mais, então é provável que tenha sido um ato de vingança”, declara Francisca.

A pioneira se recorda do dia em que o frei Bonaventura Einberger falou sobre a chegada de um médico alemão para ajudar os mais necessitados. “Explicou apenas que o médico, assim como ele, também participou da guerra. Como a gente era bem jovem, ninguém tinha coragem de perguntar demais. Além disso, o ‘frei Bona’ não gostava de comentar sobre a Alemanha do período nazista”, relata. Apesar do conhecimento básico de português, o médico não enfrentou nenhum problema no distrito, até porque nos anos 1950 muitos moradores de Graciosa se comunicavam mais em alemão do que em português.

Frei Bonaventura explicou apenas que o médico, assim como ele, também participou da guerra (Acervo: Francisca Schiroff)

Frei Bonaventura explicou apenas que o médico, assim como ele, também participou da Segunda Guerra Mundial (Acervo: Francisca Schiroff)

“Ele se vestia com simplicidade, acho que até para não chamar a atenção. Só que era fácil perceber que não era um médico comum”, avalia Francisca que certo dia foi até o seminário acompanhada da mãe para se consultar com o alemão de quem ninguém sabia o nome.

O médico demonstrava muita experiência profissional, tanto que soube lidar com todos os problemas de saúde dos pacientes. “As consultas com ele eram rápidas e quem não sabia alemão ia acompanhado de um intérprete. Me recordo que a primeira pergunta dele para a minha mãe foi: ‘Como está se sentindo?’”, cita a pioneira.

Polido, parcimonioso e reservado, o médico atendeu praticamente todas as famílias que viviam em Graciosa em 1954. Ainda assim, um fato curioso chamou a atenção dos moradores. O misterioso alemão não registrava prescrições médicas em papel nem pedia que alguém o fizesse para que ele apenas assinasse. “Era tudo falado, de boca mesmo”, garante Francisca Bruning Schiroff.

No distrito, o médico auxiliava o frei Bonaventura na distribuição gratuita dos medicamentos enviados da Alemanha pela Caritas Internacional, entidade de promoção e atuação social que trabalha na defesa dos direitos humanos, da segurança alimentar e do desenvolvimento sustentável solidário. “Eles também levavam remédios para o frei alemão Ulrico Goevert em Paranavaí. Era uma assistência muito boa. Realmente fazia a diferença”, pondera a pioneira.

Após ajudar muita gente em situação de carência social, um dia o homem partiu. A notícia foi lamentada pelos moradores de Graciosa. “Ele ficou mais ou menos um ano aqui. Ninguém sabe exatamente quando chegou nem quando foi embora”, confidencia Francisca. No distrito, o médico morou em um pequeno quarto no Seminário Imaculada Conceição. Poucas vezes foi visto em outros locais.

Lidia Selhorst reconheceu o médico como sendo Josef Mengele (Foto: Reprodução)

Lidia Selhorst reconheceu o homem como sendo Josef Mengele (Foto: Reprodução)

Alguns meses depois, Lidia Selhorst, esposa de Ludovico Selhorst, e também falecida, foi surpreendida ouvindo rádio, quando o locutor noticiou que estavam procurando o médico nazista Josef Mengele, conhecido como Todesengel, Anjo da Morte. A descrição era a mesma do médico que morou em Graciosa. “Falaram que o Mengele tinha inclusive uma cicatriz perto do pescoço. Quando ele se abaixou para prestar atendimento ao Ludovico, a Lidia viu essa cicatriz”, enfatiza Francisca Schiroff.

Como o frei Bonaventura Einberger foi enfermeiro da Wehrmacht, Forças Armadas da Alemanha nazista, até o final da Segunda Guerra Mundial, pode ser que eles tenham se conhecido anos antes. “Não dá pra afirmar até que ponto o ‘frei Bona’ o conhecia, mas a partida do médico foi suspeita. Acho que o frei ficou com medo de alguma coisa e recomendou que o homem partisse para outro lugar”, supõe a pioneira.

“Ele preferia crianças, gêmeos e anões”

Nascido em 11 de março de 1911 em Günzburg, na Alemanha, Josef Mengele se tornou um dos personagens mais famigerados da Segunda Guerra Mundial. Discípulo do geneticista Otman von Verschuer, com quem trabalhou em Frankfurt, Mengele tinha um doutorado em antropologia e outro em medicina.

Bonaventura Einberger, ex-enfermeiro da Wehrmacht, pode ter conhecido o médico muitos anos antes (Acervo: Francisca Schiroff)

Ex-enfermeiro da Wehrmacht, Bonaventura Einberger pode tê-lo conhecido muitos anos antes (Acervo: Francisca Schiroff)

Em 1937, ingressou no Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães (NSDAP) e se voluntariou para trabalhar na SS Medical Corps como pesquisador de genética no reassentamento da Província de Posen, na Polônia. O papel de Mengele consistia em preservar a pureza racial dos membros da Schutzstaffel (SS). Sendo assim, casamentos só eram aprovados após análises invasivas e estudos sobre a árvore genealógica da noiva.

Em 1942, enviaram Josef Mengele para atuar na Frente Leste como cirurgião da 5ª Divisão Panzer. Ferido em combate, teve de ser transferido para o Oeste. Na Alemanha, foi promovido a capitão e se juntou mais uma vez ao geneticista von Verschuer no Instituto Kaiser Wilhelm, onde se concentravam os maiores estudos de antropologia, hereditariedade e eugenia da Alemanha, temas com os quais Mengele se identificava muito.

No instituto, o médico seguiu uma hermética linha de pesquisa baseada na qualificação racial e limpeza étnica. O seu trabalho foi determinante na criação do Aktion T4, programa de eutanásia e esterilização voltado para a identificação de pessoas consideradas “inaptas a se reproduzir ou viver”.

Meses mais tarde, transferiram Mengele para a rede de campos de concentração de Auschiwtz-Birkenau, na Polônia. Com o apoio incondicional do governo alemão, realizou experiências com pessoas que ele mesmo escolhia e qualificava como fracas ou inúteis. Documentos do The National WWII Museum, de Nova Orleans, nos Estados Unidos, responsabilizam Josef Mengele pelo envio de 400 mil pessoas para as câmaras de gás dos campos de concentração. “Ele preferia crianças, gêmeos e anões, pessoas com quem ele fazia experiências sem qualquer tipo de remorso”, comenta o pesquisador e historiador estadunidense Tom Gibbs.

Tom Gibbs: "Ele fazia experiências sem qualquer tipo de remorso" (Foto: Reprodução)

Tom Gibbs: “Ele tinha o hábito de presentear crianças com leite e doces” (Foto: Reprodução)

Von Verschuer e outros cientistas receberam de Mengele muitos cadáveres, órgãos, esqueletos e amostras de sangue de crianças judias e ciganas. “Ele gostava de ‘cortejar’ suas vítimas, tanto que oferecia melhores condições de moradia e alimentação. Também tinha o hábito de presentear crianças com leite e doces”, relata Gibbs.

Em janeiro de 1945, após a evacuação de Auschwitz-Birkenau, Mengele percorreu alguns campos menores até ser capturado. Ficou preso na Alemanha até junho do mesmo ano, quando conseguiu fugir para a Argentina com um nome falso. Mais tarde, partiu para o Paraguai e depois se mudou para o Brasil. Supostamente, Mengele morreu afogado em 7 de fevereiro de 1979 em Bertioga, no litoral paulista. No entanto, até hoje há pesquisadores que refutam o motivo e a data da morte.

Enterrado no Cemitério do Rosário, em Embu das Artes, na grande São Paulo, Josef Mengele teve os ossos exumados em 1985, quando uma equipe de especialistas do Instituto Médico Legal (IML) de São Paulo e da Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo (USP) confirmou a sua identidade. Em 1992, foi feita uma ratificação por meio de análise em DNA.

Saiba Mais

Há inúmeros relatos de moradores de Graciosa e de Paranavaí que viram o médico caminhando sozinho pelo Bosque de Graciosa em 1954.

Mengele quando já estava vivendo na América do Sul (Foto: Reprodução)

Mengele quando já estava vivendo na América do Sul (Foto: Reprodução)

O que também despertou a suspeita dos moradores de Graciosa é que o misterioso alemão raramente circulava pela área central do distrito.

A 137 quilômetros de Paranavaí, pioneiros de Mamborê, no Centro Ocidental Paranaense, afirmam que Josef Mengele, usando o nome de Josef Kanat, trabalhou como médico no então distrito de Campo Mourão em 1956.

No mundo todo, o médico nazista inspirou livros, filmes, documentários, músicas e programas especiais para a TV. No Brasil, a obra mais conhecida é o filme “Meninos do Brasil”, de 1978. Em 2013, a cineasta argentina Lucía Puenzo lançou o filme “Wakolda”, também inspirado na vida do médico, principalmente em sua passagem pelo Sul da Argentina.

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Mais diplomacia e menos guerra

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Crise na Ucrânia vai muito além do que a grande mídia informa

Crise na Ucrânia vai muito além da política e da economia (Foto: Getty Images)

Situação envolve mais do que economia e política (Foto: Getty Images)

Penso que a situação na Ucrânia não é menos delicada do que foi a do Kosovo, Tchetchênia, Sérvia e Montenegro. E pra citar dois períodos hoje remotos, o fim do Império Austro-Húngaro em 1918 e a invasão Bolgar muitos séculos antes. Não há nada simplista quando se trata de povos que, embora dividam o mesmo espaço, e estão sujeitos às mesmas conjunturas sociais e econômicas, possuem formações culturais e posições políticas convergentes e divergentes.

Não acho que o problema da crise na Ucrânia seja apenas político e econômico, embora tenha surgido na grande mídia com tal conotação, até porque esse foi o estopim. Vai muito além disso. Infelizmente, a imprensa tem a mania de aproveitar o fato de que não pensamos em plano cartesiano. Então nos bombardeiam com informações que nos confundem demais ou nos permitem julgar algo da maneira mais superficial possível.

Na minha avaliação pessoal, as manifestações na Ucrânia têm a ver com a sua própria trajetória e as muitas transições que surgiram em centenas de anos, começando pelo século 7. É um país com uma história bem complicada de dominância e submissividade. Me recordo que a Ucrânia já sofreu influência russa, búlgara, polaca, lituana, cossaca, mongol, cazar, tártara, viking e bizantina. E acho que tem mais por aí…

Nacionalistas ucranianos mandam mensagens aos russos por meio de depredações (Foto: Reprodução)

Nacionalistas mandam mensagens aos russos (Foto: Reprodução)

Hoje, muitos preferem não pensar muito sobre o assunto, incorrendo no erro de simplesmente amar ou odiar a Rússia, concordar ou discordar das manifestações na Ucrânia. Acho que mais importante do que julgar objetivamente a influência oriental ou ocidental é a necessidade de ponderar sobre uma resolução baseada na diplomacia. Sim, os nacionalistas ucranianos odeiam a Rússia e isso tem muito tempo. Usam símbolos controversos para afrontar os russos.

Nestor Makhno, líder russo perseguido pelos soviéticos até 1921 (Foto: Reprodução)

Nestor Makhno, líder ucraniano perseguido pelos soviéticos até 1921 (Foto: Reprodução)

Não são poucos os jovens que desfilam pelas ruas de Kiev gritando “Heil Hitler”, o popular 88 do movimento nazista, bem como as 14 palavras do slogan “Devemos assegurar a existência de nosso povo e um futuro para as crianças brancas.” São clichês perpetuados há muito tempo. Entretanto, até que ponto e em que proporção isso representa o pensamento do povo ucraniano? Simplesmente não representa. É apenas uma das vozes da Ucrânia moderna, mas está longe de conquistar a simpatia da maioria, como alguns tentam pincelar.

Considero justas algumas reivindicações dos nacionalistas. Embora dentre os defensores do Nacional Socialismo ucraniano tenha muita gente endossando o movimento somente durante as manifestações, há boas justificativas para não simpatizarem com a Rússia. Entre os anos de 1917 e 1921, os soviéticos perseguiram Nestor Makhno, o maior líder da Revolução Ucraniana. Contrário aos bolcheviques, se tornou o principal desafeto de Leon Trotsky.

À época, o intelectual marxista contratou dois homens para assassiná-lo. Não conseguiram porque o ucraniano fugiu para a França, onde viveu até morrer de tuberculose. Nem todos tiveram a mesma sorte. Antes o Exército Vermelho dizimou milhares de ucranianos. Pouco tempo depois, em 1930, foi a vez de Josef Stalin promover dois dos maiores genocídios do povo ucraniano. Com isso, a Ucrânia enterrou parte de sua herança cultural, já que entre os mortos estavam muitos artistas e intelectuais. Isso explica, mas não justifica o ódio generalizado dos nacionalistas ucranianos contra os russos.

O nacionalismo surge como força transformadora em momentos de grande vulnerabilidade. Ele é contraditório em essência porque consegue ser bom e ao mesmo tempo ruim. É bom porque obriga o ser humano a assumir uma posição ativa, olhar para si mesmo, para sua história e a dos seus. Em concomitância, é ruim porque o cega para suas falhas e o faz julgar o que é diferente como uma deformidade, uma degeneração com um viés idiossincrásico bem limitado. Além disso, como defender um Estado e uma cultura homogênea quando a própria arquitetura do país simboliza a diversidade? Uma das sete maravilhas da Ucrânia é o Castelo Kamianets-Podilskyi, um símbolo do multiculturalismo do Leste Europeu.

Castelo Kamianets-Podilskyi, símbolo do multiculturalismo do Leste Europeu (Foto: Ukraine Incognita)

Castelo Kamianets-Podilskyi, símbolo do multiculturalismo do Leste Europeu (Foto: Ukraine Incognita)

É importante levar em conta que a Ucrânia é um país com mais de 7,5 milhões de pessoas de origem russa. Sendo assim, o que aconteceria com os ucranianos de origem russa, caso os nacionalistas assumissem o poder? Quando falo em diplomacia, penso que seria justo os ucranianos terem direito a uma maior “ocidentalização”, se for o desejo da maioria, assim como ouvir e avaliar as queixas dos nacionalistas.

Por outro lado, também é certo assegurar os direitos dos russos que vivem na Ucrânia, afinal, eles também estão lá para contribuir, trabalhar e constituir família. Não devem ser responsabilizados por algo que não fizeram. Ser Pró-Rússia na Ucrânia é ainda uma forma de autodefesa para muitos descendentes de russos e outras minorias.

Ouso dizer que a história da Ucrânia faz parte da história da Rússia e vice-versa. O maior exemplo disso é “A Crônica Primária”, um trabalho que ganhou status de documento em 1767. A obra é de autoria de Nestor, considerado um dos maiores estudiosos da cultura eslava de todos os tempos.

David Arioch, apenas um entusiasta da cultura do Leste Europeu.

Os mais de 70 anos de Casablanca

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Amor, antinazismo e exploração da figura do “herói americano” no Marrocos

Obra se tornou clássica ao abordar a impossibilidade do amor (Foto: Reprodução)

Obra se tornou clássica ao abordar a impossibilidade do amor (Foto: Reprodução)

Lançado em 1942, Casablanca vai ser sempre lembrado como um clássico estadunidense que aborda a impossibilidade do amor. O filme do cineasta tcheco Michael Curtiz conta a história do exilado estadunidense Rick Blaine (Humphrey Bogart) que mora em Casablanca, no Marrocos, onde administra uma casa noturna e ajuda refugiados estrangeiros no início dos anos 1940.

O protagonista vive um dilema quando reencontra acidentalmente a antiga paixão Ilsa (Ingrid Bergman) que tenta fugir para os Estados Unidos com o marido Victor Laszlo (Paul Henreid), um antinazista tcheco. A obra aproveitou com certo caráter propagandístico, e bastante favorável aos EUA, o sentimento de contrariedade ao Nacional Socialismo durante a Segunda Guerra Mundial.

Embora secundário, Peter Lorre se destaca pela interpretação sempre enigmática (Foto: Reprodução)

Embora secundário, Peter Lorre se destaca pela interpretação sempre enigmática (Foto: Reprodução)

Embora hoje seja cultuado em todo o mundo, a verdade é que quando Casablanca começou a ser produzido não havia tantas expectativas em torno do sucesso da película. Nem mesmo o elenco, principalmente a atriz Ingrid Bergman – que não acreditava tanto no filme – imaginava que a obra figuraria até hoje entre as dez das mais importantes listas de melhores trabalhos cinematográficos da história. Casablanca surgiu a partir de um roteiro de teatro intitulado Everybody Comes To Rick’s dos teatrólogos Murray Burnett e Joan Alison que o escreveram após uma viagem internacional.

Sem dinheiro e investidores para produzirem o espetáculo, optaram por vendê-lo por vinte mil dólares, à época, um valor bem elevado para uma história nunca encenada. Mas a fórmula do filme deu certo e o investimento de pouco mais de um milhão de dólares garantiu quase quatro milhões em faturamento. Casablanca ainda arrecadou muito mais nas décadas subsequentes, a partir de lançamentos especiais e merchandising.

A essência antinazista da obra também teve repercussão muito positiva da crítica que naquele tempo já era favorável em explorar até a exaustão a figura do “herói americano”, sujeito aparentemente falho, mas capaz de abdicar do amor em prol da liberdade e felicidade coletiva. Reflexo dessa grande aceitação são os três Oscars que o filme conquistou nas categorias melhor roteiro, filme e diretor. Na minha opinião, uma interpretação esfíngica, sempre digna de destaque, é a do inconfundível eslovaco Peter Lorre que vive Ugarte, um estrangeiro e amigo de Rick que vende cartas de trânsito para refugiados.

O humor cáustico de Mel Brooks

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Primavera Para Hitler ironiza o nacional socialismo e a elitização da arte

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Filme é protagonizado pelos célebres Gene Wilder e Zero Mostel (Foto: Reprodução)

The Producers, de 1968, lançado no Brasil como Primavera Para Hitler, é uma comédia do cineasta estadunidense Mel Brooks sobre personagens fracassados que alcançam um sucesso nunca almejado. A obra ironiza o nacional socialismo e a elitização da arte.

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Peça de Bialystock e Bloom alcança sucesso inesperado (Foto: Reprodução)

No início do filme, o espectador é introduzido ao mundo degradante, embora cômico, de Max Bialystock (Zero Mostel), um produtor de teatro falido que sobrevive mantendo romances simultâneos com mulheres idosas. Na história, Bialystock conhece o contabilista Leo Bloom (Gene Wilder) que lhe apresenta a teoria do insucesso.

Leo explica a Max que superfaturar uma peça de teatro ruim aumenta as chances de um produtor enriquecer. A justificativa está no fato de que sem retorno financeiro não há lucro para dividir com os investidores. Assim, todos devem aceitar o fracasso como uma consequência natural.

Após uma pesquisa, a dupla decide produzir a peça Primavera para Hitler, um musical criado por um lunático imigrante alemão que mesmo depois de vivenciar a Segunda Guerra Mundial ainda defende o regime nazista. A peça escrita pelo germânico é uma cômica e caricata perspectiva romântica sobre o nacional socialismo e o Führer. Além de descaracterizar e ironizar os regimes totalitaristas, Mel Brooks mostra que a própria natureza humana, sempre atraída pelo incomum, impede que o homem seja politicamente correto. Exemplo é o sucesso da peça e surpresa de Bialystock e Bloom, crentes de que o público condenaria o espetáculo pelo teor xenófobo.

O cineasta também critica a elitização cultural, mostrando no filme que não é preciso ser artista, muito menos conceituado, para obter sucesso com a arte. O primeiro longa-metragem de Mel Brooks funciona também como uma autobiografia em que o humor corrosivo e ingênuo do autor, herança da comédia pastelão, tenta abrir os olhos dos espectadores para a necessidade em cultuar o que é novo e livre das amarras da tradição.

De Bamberg a Paranavaí

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Enfermeiro da Segunda Guerra Mundial cumpriu missão e encontrou paz no Brasil

Padre era tímido e não gostava de ser fotografado sozinho (Foto: Acervo da Ordem do Carmo)

Padre era tímido e não gostava de ser fotografado sozinho (Foto: Acervo da Ordem do Carmo)

Depois de enfrentar as tragédias da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o padre e enfermeiro alemão Bonaventura Einberger veio a Paranavaí com a missão de construir um seminário em Graciosa, distrito de Paranavaí, no Noroeste do Paraná. Além de concluir o trabalho, adotou o Brasil como pátria e aqui viveu ao longo de 31 anos.

Em meados de 1953, o frei alemão Ulrico Göevert, que já vivia em Paranavaí, pediu para a Ordem dos Carmelitas na Alemanha enviar um padre apto a construir um seminário em Graciosa. “O frei Bonaventura mal chegou e já foi visitar propriedades nas imediações da igreja. Ali ele escolheu um sítio. No dia seguinte, começaram a derrubada da mata”, conta a pioneira Francisca Schiroff.

Entre o início da construção e a inauguração, passaram nove meses. A maior parte do investimento veio da Ordem dos Carmelitas da Alemanha. De acordo com Francisca, quase todos da comunidade ajudaram, mas o destaque maior foi o frei Bonaventura que viveu em função do Seminário Imaculada Conceição.

Antes de chegar a Graciosa, onde a quietude se contrastava apenas com o som preponderante da natureza, Einberger ainda mantinha fresca em suas lembranças os sons de bombas, metralhadoras e gritos exasperados, consequência de dores, na maioria das vezes, irremediáveis.

Tudo começou em meados da década de 1940, quando o frei Bonaventura foi convocado a compor um grupo de enfermeiros em um navio do Terceiro Reich. Segundo a pioneira, o padre cuidou de centenas de soldados alemães que se feriram na linha de frente.

A guerra fez com que Bonaventura Einberger perdesse o contato com os familiares, principalmente com os irmãos Otto Einberger, inspetor-chefe da SS (Schutzstaffel), unidade de elite da polícia nazista, e o caçula Heinrich Einberger, soldado do Exército alemão.

Ao final da Segunda Guerra Mundial, Einberger desconhecia o paradeiro dos irmãos. “Otto, que tinha 38 anos, foi capturado pelo Exército soviético. Ele ficou oito meses em uma prisão russa próxima de Moscou, até que foi encontrado morto depois do fim da guerra”, revela Francisca, referindo-se ao fatídico dia 13 de outubro de 1945.

Bonaventura, inconformado com a morte do irmão, decidiu buscar o corpo para enterrá-lo em Bamberg, sua cidade natal. O corpo de Heinrich nunca foi encontrado e a única conjetura possível é a de que foi alvejado em um confronto terrestre com os soviéticos.

Em 1953, depois de perder os pais e os irmãos, surgiu uma oportunidade de deixar tudo para trás. Acompanhado pela cunhada e três sobrinhos, filhos do irmão Otto Einberger, o frei Bonaventura veio a Paranavaí. “Eles compraram um sítio de cinco alqueires aqui em Graciosa e fixaram residência, com exceção do frei que vivia no seminário”, garante Francisca.

Einberger era discreto e reservado

Quando chegou a Graciosa, o frei Bonaventura Einberger foi recebido por todos os moradores do distrito. “Ele falou muito obrigado em português”, relembra a pioneira Francisca Schiroff que durante décadas guardou um grande baú de madeira que pertenceu ao frei.

O objeto foi doado para a Fundação Cultural de Paranavaí e colocado em exposição no Museu Histórico de Paranavaí que funciona na Casa de Cultura Carlos Drummond de Andrade. “Ele trouxe grandes caixas de madeira. Veio com toda a mudança. A ideia dele já era se fixar aqui”, destaca Francisca.

Quando aprendeu a falar fluentemente em português, o frei Bonaventura visitou todas as capelas da região. “Ele ia a cavalo, não tinha pressa. Inclusive quando o animal ficava com fome e havia algo na beira da estrada, ele parava e deixava o cavalo comer. Tinha dó”, conta Francisca sorrindo. O equino foi o principal meio de transporte do frei durante sete anos, até que ganhou um jipe da Ordem dos Carmelitas.

Segundo a pioneira, Einberger era bastante amistoso e jamais teve qualquer tipo de inimizade. “Acho que todo mundo gostava dele justamente por não se envolver com política e assuntos familiares. Só ajudava quando lhe era solicitado, algo constante”, informa, referindo-se a uma época em que padre desempenhava papel de conselheiro.

No entanto, Bonaventura Einberger era bastante reservado e tímido. A pioneira conta que o padre era acanhado a ponto de evitar ser fotografado sozinho. “Me recordo também que festas para ele tinham de ser surpresa, do contrário, ele fugia”, enfatiza em tom de nostalgia.

Frei alemão adotou pátria brasileira

Quando, por curiosidade, questionavam o frei Bonaventura Einberger sobre as agruras vivenciadas durante a Segunda Guerra Mundial, a expressão do padre mudava na hora. Hesitante e apreensivo, se limitava a dizer que era algo horrível.

Einberger torcia para que qualquer guerra jamais chegasse ao Brasil, citando a experiência de ter visto tantas pessoas morrendo. “Falava também que viu muitas casas sendo bombardeadas, noite após noite”, reitera a pioneira Francisca Schiroff.

Quando o assunto era o Brasil ou nova pátria, como ele mesmo dizia, o frei Bonaventura, com um sorriso cândido e olhar profundo, afirmava que não errou em escolher um país que tem tudo para estar entre os melhores do mundo. “Dizia que aqui é muito bom para se viver. Era algo muito sincero, tanto que ele esteve com nós até o dia de sua morte”, lembra a pioneira Francisca Schiroff emocionada.

O frei Bonaventura Einberger faleceu em 14 de novembro de 1984, aos 80 anos, em decorrência de algumas complicações envolvendo rins, pulmão e coração. “Agradecemos por ele não ter ficado muito tempo acamado. Foi uma grande perda, ainda mais se tratando de uma pessoa que dedicou sua vida ao povo de Graciosa e de Paranavaí”, enfatiza Francisca.

Saiba Mais

O frei Bonaventura Einberger está enterrado na cripta da Igreja São Sebastião em Paranavaí.

Ele nasceu em Bamberg no dia 15 de fevereiro de 1904 e se tornou sacerdote em 29 de junho de 1929.

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