David Arioch – Jornalismo Cultural

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Paranavaí e a sociedade de “colonização bruta”

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Uma cidade que de tão heterogênea surgiu com grandes falhas sociais

Paranavaí foi colonizada pelo próprio governo paranaense (Foto: Reprodução)

Sem planejamento, Paranavaí foi colonizada pelo próprio governo paranaense (Foto: Acervo da Fundação Cultural de Paranavaí)

Não são poucos os pioneiros que afirmam que Paranavaí, no Noroeste do Paraná, é uma cidade formada a partir de uma sociedade de “colonização bruta”. Mas qual é o significado disso?Declarações como essa são justificadas por fatos envolvendo principalmente distinções culturais. Paranavaí foi colonizada pelo governo paranaense, ou seja, houve pouca participação ou abertura para a colonização de iniciativa privada ou planejada. Assim a organização precisava partir da própria comunidade.

Nos anos 1940, nos tempos da Fazenda Brasileira, Paranavaí contava com uma sociedade restrita, pouco sociável e formada pela política da conquista de novas terras. A colônia atraía todo tipo de gente porque os lotes eram baratos e, em algumas situações, até doados. “Havia a coletividade, mas sem articulação social. A maior parte das pessoas vinha pra cá com esse interesse em comum. Não socializavam quase. Assim surgiu uma sociedade com uma colonização bruta, sustentada apenas pelos mesmos objetivos econômicos”, afirma o pioneiro Ephraim Marques Machado.

Como havia povos das mais diferentes origens, por vários anos persistiu uma segregação entre os moradores. Muitos se relacionavam apenas com pessoas que vieram do mesmo estado, região ou país. “Em Paranavaí, naquele tempo, mineiro era chamado de nortista e nortista aqui era considerado ladrão para os migrantes preconceituosos. Sofri muito com isso”, lembra o pioneiro Sátiro Dias de Melo. O testemunho é endossado pelo pioneiro cearense João Mariano que viu muitos peões e colonos nordestinos serem escravizados por migrantes do Sul e Sudeste nos anos 1950 e 1960.

De acordo com Ephraim Machado, a heterogeneidade podia ser vista como um problema social, já que Paranavaí lembrava uma colônia dividida em pequenos povoados. “Os nortistas e os sulistas eram muito diferentes, então o distanciamento foi inevitável. Sem dúvida, algo que interferiu na evolução local. Paranavaí demorou para começar a se constituir como o que chamamos de sociedade nos moldes atuais”, avalia Machado.

População demorou para se articular socialmente (Foto: Toshikazu Takahashi)

População demorou para se articular socialmente (Foto: Toshikazu Takahashi)

A facilidade de acesso às terras fez Paranavaí receber muita gente diferente, não apenas migrantes que sonhavam com um pedaço de terra para construir uma moradia, plantar e assegurar o futuro da família. Aventureiros e oportunistas das mais diversas regiões do Brasil, até mesmo assassinos e ladrões, vinham para a região, crentes de que encontrariam um lugar isolado e de muitas riquezas. “O governo até fretava aviões para abandonar criminosos nas matas virgens das imediações de Paranavaí. O objetivo era não ter despesas e responsabilidades com essa gente”, diz João Mariano.

Pelo país afora, a colônia era conhecida como um local administrado pelo poder público, com pouca interferência da iniciativa privada. “Muitos gostaram daqui por isso”, declara Mariano. Já cidades colonizadas por companhias não atraíam tanta gente assim. O custo de vida não era barato e o investimento era maior em função do planejamento minucioso. E claro, também tinha mais exigências e mais burocracia. Outro diferencial é que em áreas loteadas pelo poder público havia menor participação de autoridades e maior facilidade na realização de negociações escusas.

Intimidada pelo baixo custo dos lotes da antiga Fazenda Brasileira, a Companhia de Terras Norte do Paraná (CTNP), conhecida por vender imóveis por preços mais altos, criou uma situação desconfortável entre as décadas de 1940 e 1950. “A companhia chegou até Nova Esperança e ali parou. Eles queriam nos isolar. Não deixavam ninguém fazer nada em Paranavaí, inclusive convenciam quem queria investir aqui de que seria um mau negócio”, lamenta Mariano.

Nos tempos de colonização, Paranavaí foi palco de muitas brigas de corretores de imóveis. “Não esqueço que em 1950, antes de me casar, eu morava no Hotel Real, na antiga Rua Espírito Santo, e ali mesmo o Cangerana assassinou um sujeito por causa de comissão de terras”, relata Machado. Os pioneiros também se recordam do episódio em que um homem matou na Avenida Paraná, no prédio do antigo Banespa, três pessoas que o enganaram em uma negociação.

Ephraim Machado: "As pessoas partilhavam apenas os mesmos interesses econômicos" (Foto: Toshikazu Takahashi)

Ephraim Machado: “As pessoas partilhavam apenas os mesmos interesses econômicos” (Foto: Toshikazu Takahashi)

“Os maiores crimes dos tempos da colonização foram provocados por causa de comissão e não disputa de terras”, ressalta Ephraim Machado, embora admita que houve muitas situações em que o capitão Telmo Ribeiro, braço direito do ex-diretor da Penitenciária do Estado do Paraná, Achilles Pimpão, e amigo do interventor federal Manoel Ribas, teve de intervir em casos de grilagem de terras. Ribeiro foi proprietário de uma fazenda que se transformou no Jardim São Jorge.

No entanto, nada se sabe sobre as implicações legais das atuações de grileiros em Paranavaí, deixando subentendido que muita gente pode ter construído fortunas sem se submeter, em qualquer momento, aos rigores da lei. “Desconheço qualquer caso de alguém de Paranavaí que foi punido por causa disso. Ainda assim, sei que encrenca maior se deu na Gleba Sutucu, Areia Branca, dos Pismel e também na Gleba 23. Teve quem foi tirado da terra à força. Juridicamente, não tenho a mínima ideia de como tudo foi feito”, comenta Machado.

O fato de Paranavaí ser tão grande até o início dos anos 1950 facilitava a grilagem de terras. À época, a colônia tinha uma vasta área que ia até as fronteiras com os estados do Mato Grosso (área do atual Mato Grosso do Sul) e São Paulo. Quem iria fiscalizar tudo isso e com quais recursos, sendo que hoje, mesmo com tantos avanços, ainda existe grilagem no Brasil?”, questiona João Mariano.

Sátiro de Melo: "Mineiro era chamado de nortista e nortista aqui era considerado ladrão para os migrantes preconceituosos" (Foto: Toshikazu Takahashi)

Sátiro de Melo: “Mineiro era chamado de nortista e nortista aqui era considerado ladrão para os migrantes preconceituosos” (Foto: Toshikazu Takahashi)

Uma transformação social imposta pela pecuária

O pioneiro Ephraim Marques Machado explica que até os anos 1960 era comum um proprietário de terras contratar meeiros para se responsabilizarem pela produção agrícola. “O camarada ia até São Paulo e Minas e falava: ‘Olha, eu tenho 200 alqueires em Paranavaí e vou produzir 100 mil pés de café. Preciso de cinco famílias e dou a ‘meia’ para plantar. Então ele dividia tudo em partes iguais e cada um cuidava de um pedaço”, exemplifica. Com isso, o bom resultado financeiro foi garantido até o surgimento das geadas. A última que castigou a região foi a de 1975.

Nas décadas de 1960 e 1970, Machado viu centenas de meeiros de Paranavaí migrarem para as regiões de Toledo, Marechal Cândido Rondon, Umuarama e Naviraí, no Mato Grosso do Sul. Outros se mudaram para o Norte. Muitas propriedades foram transformadas em pasto depois de 1964 e 1965, quando a colonização caiu bastante. “É aquela: ‘onde entra o boi sai o homem’. O café já não tinha mais tanto valor e o pasto acabou com o que sobrou”, pondera Ephraim. Quem partiu para novas frentes de trabalho trocou a lavoura de café por algodão, amendoim e arroz.

Fazendas que tinham 300 alqueires e garantiam o sustento de pelo menos 15 famílias passaram a ser ocupadas por apenas uma. Em outros casos, nem isso. “A migração modificou a sociedade local. A própria cultura da cidade passou por uma transformação”, enfatiza Ephraim Machado.  A partir da década de 1970, Paranavaí, que até então atraiu tanta mão de obra para as lavouras, chamou muita atenção de empreendedores e pecuaristas de outras cidades e estados. Eram pessoas de alto poder aquisitivo que aqui se fixaram para ocupar posição de grande status econômico e social.

Saiba Mais

Nos anos 1950, já viviam em Paranavaí, além de migrantes de todas as regiões do Brasil, portugueses, italianos, alemães, poloneses, russos, ucranianos, tchecos, iugoslavos, húngaros, espanhóis, neerlandeses, japoneses, franceses, suíços, sírios e libaneses, além de outros povos.

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Cemitério é mais antigo que a cidade

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Necrópole surgiu quando Paranavaí ainda era um distrito

Jazigo da Família Moraes é o mais visitado

Jazigo da Família Moraes é o mais visitado (Foto: David Arioch)

Os primeiros sepultamentos no Cemitério Municipal de Paranavaí, no Noroeste do Paraná, foram realizados em 1947. À época, antes de se tornar cidade, a Colônia Paranavaí, distrito de Mandaguari, ainda era conhecida como Fazenda Brasileira.

Naquele tempo, o portão de entrada do cemitério ficava localizado onde hoje é a área central da necrópole. A atual fachada foi construída somente décadas depois. A demora, segundo pioneiros, se deve a um problema de planejamento. O espaço era pequeno e não contemplava o desenvolvimento da cidade, então precisaram comprar novos lotes e extinguir uma larga rua que atravessava o cemitério.

O administrador do Cemitério Municipal, Amilcar Pereira do Santos, sabe muito bem o que isso significa. Ele viu o espaço ser ampliado três vezes ao longo de 33 anos de trabalho. “Já carpi, construí muro, fui coveiro, auxiliar de médico-legista e hoje estou aqui como administrador”, frisa, acrescentando que durante muito tempo ele e dois colegas de trabalho foram responsáveis pela manutenção da necrópole.

Oito funcionários cuidam dos cinco mil túmulos onde estão enterradas mais de 30 mil pessoas. Segundo Santos, o trabalho se torna mais intenso no final de outubro, quando o fluxo de visitas no Cemitério Municipal aumenta muito por causa do feriado de Dia de Finados. “O horário de expediente passa a ser das 6h às 19h. Posso dizer que o nosso trabalho triplica. Sempre tem alguém pedindo informação ou precisando de alguma ajuda. Mas tudo corre bem porque atendemos um de cada vez”, pondera Amilcar.

Apesar da maioria dos túmulos serem visitados apenas no período que precede o feriado, alguns são recordistas de público. Exemplo é o jazigo da Família Moraes, próximo à entrada do Cemitério Municipal, que apresenta a imagem de um avião sobrevoando o campo e recebe até três visitas por dia. “As pessoas sempre perguntam como foi o acidente”, destaca Amilcar Santos. O belo desenho impresso em azulejo é uma representação simbólica do último momento vivido por Oswaldy Teixeira de Moraes.

“Em 1976, ele e mais três pessoas foram para o Mato Grosso do Sul. Viajaram a trabalho para negociar a venda de terras. Durante o voo, começou a chover e eles tentaram descer e, sem sucesso, o avião se chocou contra uma peroba. Isso aconteceu perto de Naviraí”, conta o administrador do cemitério. No acidente morreram duas pessoas de Paranavaí e duas de Londrina.

Outro túmulo que recebe um bom número de visitas é o de Armando Trindade Fonseca que ficou conhecido como um grande radialista. “Pelo menos três pessoas, inclusive de outras cidades, visitam o túmulo dele toda semana. Não é pra menos. Ele era muito conhecido na região e foi pioneiro do rádio. Infelizmente, problemas de saúde o levaram à morte”, comenta Amilcar Pereira.

Curiosidades

Em 1950, a Prefeitura de Mandaguari enviou um livro oficial de inumações que passou a ser administrado pelos próprios moradores.

No Cemitério Municipal, 400 pessoas estão sepultadas na ala de “gavetas”, onde são depositados os restos mortais de indigentes e pessoas sem condições financeiras para comprar um túmulo.

O Cruzeiro das Almas é bastante frequentado. No local, os visitantes deixam garrafas com água, velas, flores e pedidos para se curar de alguma enfermidade ou conseguir emprego.

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Balsas em extinção

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A balsa já foi um importante meio de ligação entre a região Sul e o Centro-Oeste 

A balsa, solitária, ainda percorre as águas do Rio Paraná (Foto: Reprodução)

A balsa, solitária, ainda percorre as águas do Rio Paraná (Foto: Reprodução)

No extremo Noroeste do Paraná, na divisa com o Mato Grosso do Sul, balsas que atravessam o Rio Paraná já tiveram fluxo diário de centenas de veículos. Nos últimos dez anos, isso mudou em função das pontes interestaduais. Hoje é comum ver no horizonte o solitário balseiro transportando apenas um automóvel, tendo como companhia o sol escaldante – referência do início e fim da jornada de trabalho.

Em meados de 1960, o grande número de pessoas que precisavam ir para o Mato Grosso do Sul ou vir ao Paraná estimulou a construção de dezenas de balsas. Um emblemático exemplo é a de Porto Caiuá/Felício, localizada a 33 km de Querência do Norte, inaugurada em 1963.  “Foi uma necessidade da época. O fluxo até Naviraí, no Mato Grosso do Sul, era muito grande”, conta o empresário Veigui Bérgamo.

Os ribeirinhos foram os primeiros a se engajar na atividade. Viajavam até Guaíra, no Oeste do Paraná, onde recebiam, por parte da Marinha, qualificação profissional. Todas as despesas eram custeadas pelos donos de balsas. “Sempre demos oportunidade para gente daqui, nunca alguém de fora. É desse jeito há mais de 40 anos”, destaca o empresário.

Na década de 1960, a balsa já garantia o intercâmbio entre o Sul e o Centro-Oeste (Foto: Reprodução)

Na década de 1960, a balsa já garantia o intercâmbio entre o Sul e o Centro-Oeste (Foto: Reprodução)

No princípio, investia-se muito no transporte fluvial, e tudo era proporcional aos lucros, tanto que durante décadas os donos de balsas foram responsáveis pela manutenção das principais vias de acesso aos portos. “Se a estrada estivesse ruim, a pessoa desistiria, então mantê-la em bom estado era o único meio de garantirmos a freguesia”, revela Bérgamo.

Há 10 anos, havia duas balsas em funcionamento no Porto Caiuá/Felício, tempo em que pelo menos 200 veículos por dia usavam o transporte fluvial. “Quando tinha uma no Mato Grosso do Sul, a outra estava deste lado, aqui no Paraná”, lembra Bérgamo, se referindo a um período em que os funcionários da balsa se revezavam ao longo de 24 horas. O serviço nunca parava, em respeito à demanda.

Hoje em dia, o trabalho começa às 6h e termina às 22h. “Quem chega aqui de madrugada encontra a balsa desativada”, conta o marinheiro de convés Robson Mendes Barbosa. A justificativa é que muitos motoristas preferem usar a Ponte Ayrton Senna, em Guaíra, e as cinco pontes do complexo de Porto Camargo.

Grande fluxo de veículos no final da década de 1990 (Foto: Reprodução)

Grande fluxo de veículos no final da década de 1990 (Foto: Reprodução)

“É difícil acreditar que já passou tanta gente por aqui. Como balseiro, conheci viajantes de Paranavaí, Umuarama, Maringá, Campo Mourão, Londrina, Cascavel, Curitiba, Presidente Prudente, Araçatuba, São Paulo, Campo Grande, Cuiabá e muitas outras cidades”, reitera o contra-mestre Cirço Sedano Silva.

Na atualidade, o transporte fluvial normalmente é usado apenas por pessoas da região noroeste. Entretanto, o contra-mestre percebe uma pequena mudança durante os feriados. “No mais, é normal atravessar apenas um veículo. Ainda estamos aqui por causa da fé. Restam poucas balsas na ativa. Acho que é o fim da profissão”, avalia.

Entre os poucos que ainda preferem a balsa, a justificativa é uma só – a praticidade do serviço. De acordo com Veigui Bérgamo, há proprietários de terras na região que se não fosse pelo transporte fluvial teriam de dirigir por mais de 200 quilômetros. “Com a balsa, percorremos 2,5 quilômetros em 15 minutos e o problema está resolvido”, finaliza.

Empresário ainda tem esperanças

As despesas com o transporte fluvial, que não são poucas, segundo o empresário Veigui Bérgamo, deveriam ser subsidiadas com a rentabilidade obtida nas travessias da balsa. “Na prática, isso não acontece. Se não fosse pelas minhas outras atividades econômicas, teria parado faz tempo. Gastamos aproximadamente dois mil litros de óleo diesel por mês. Além disso, temos despesas com funcionários e manutenção”, destaca.

Entretanto, Bérgamo diz ter esperança de que no futuro a situação melhore e o transporte fluvial não precise ser desativado. Faz um apelo para que o governo do Paraná contribua, se responsabilizando pela manutenção de uma rodovia. “A Jorge Baggio é a única estrada paranaense que liga Querência do Norte ao porto. Se for bem cuidada, acredito que poderemos atrair mais viajantes”, pondera.

Origem ribeirinha é trunfo na profissão de balseiro

Na infância, Cirço Sedano Silva brincava sobre um bote, fazendo de conta que era piloto de balsa. A criatividade era estimulada pelas experiências relatadas por três tios balseiros. Aos 19 anos, conseguiu o primeiro emprego com transporte fluvial, um cargo de cobrador na balsa do Porto Caiuá/Felício.

“A gente se divertia muito. Havia pelo menos quinze pessoas trabalhando em cada balsa”, relembra o contra-mestre sorrindo. Com o passar do tempo, o número de empregados caiu para 12 e depois para nove. “Hoje, são cinco, mas nos dividimos em três turnos. Agora é normal trabalhar sozinho”, afirma.

O fato de Cirço ser um ribeirinho é um trunfo na profissão de contra-mestre. Ninguém conhece melhor o Rio Paraná do que alguém criado diante de sua imensidão. “Sei onde estão todos os bancos de areia. Sendo assim, tenho o compromisso de desviar deles. Já o marinheiro de convés tem que ficar esperto e controlar o peso da balsa, distribuindo bem os veículos”, revela. Sedano sente falta de quanto trabalhava à noite. Antes de completar a travessia, via do outro lado um sem número de faróis piscando – um sinal de que o aguardavam.

Saiba Mais

Em caso de acidente, o contra-mestre entra em contato com o rebocador que chega ao local em 15 minutos.

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Nostalgia de uma ex-ribeirinha

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Ex-ribeirinha se emociona ao relembrar época em que vivia distante da realidade urbana

Descendentes de ex-ribeirinhos brincando às margens do Rio Paraná (Foto: David Arioch)

Descendentes de ex-ribeirinhos brincando às margens do Rio Paraná (Foto: David Arioch)

A dona de casa Luciene Franco, 35, e mais dez irmãos foram criados em uma comunidade ribeirinha na Ilha Portal do Trigo, na divisa do Paraná com o Mato Grosso do Sul, onde garantiam a subsistência por meio da pesca e do cultivo de pequenas culturas. Sem contato frequente com o mundo moderno, conheceram a realidade urbana somente ao atingir a maioridade. Foram obrigados a se mudar para a área urbana de Querência do Norte em função de rigorosas leis ambientais e também grande oscilação do volume de água do Rio Paraná.

Quando nasceu, o primeiro contato de Luciene com o mundo não aconteceu em um hospital, muito menos diante da presença de um obstetra. Foi sob a supervisão da natureza e os olhares atentos de uma capivara doméstica. “Nasci ali no berço da natureza com a assistência de uma parteira. Quando minha mãe deu à luz, estava deitada em uma cama de bambu forrada com folhas de bananeira. Havia vários animais próximos dali”, relata a dona de casa, apontando o dedo para a Ilha Portal do Trigo.

Na infância, Luciene e os irmãos aprenderam a conviver pacificamente com animais que a maioria só vê em revistas, TV ou jaulas de zoológico. “A gente tinha acesso a muitos bichos. Todo dia encontrava sucuri, capivara, jacaré, veado campeiro, anta e onça”, destaca.  O contato diário contribuía para que os ribeirinhos tivessem uma boa relação familiar ou pelo menos de respeito e tolerância com os membros da fauna local.

De uma capivara e um tatu de estimação, Luciene guarda lembranças inesquecíveis. São até incompreensíveis para quem sempre viveu em um “paraíso de concreto”, como a dona de casa denomina o universo urbano. “Os dois sempre entravam em casa, mas quando a gente mandava sair, eles obedeciam. Era como um gato ou cachorro”, compara.

Porém, nem todos os animais despertavam alegria quando eram vistos cruzando a entrada da casa construída com recursos encontrados na própria ilha. “A gente não se acostumava com as onças. Mesmo assim, não fazíamos nenhum mal pra elas”, assegura a dona de casa.

Quando levava os filhos pequenos para pescar ou preparar a terra para o cultivo de arroz e feijão, o pai de Luciene sempre os mantinha por perto, já que tinham pouca ou nenhuma experiência com os perigos da natureza. “Era mais por cautela. Só que depois de um tempo, todo mundo ficava esperto e ia até pescar à noite, mesmo quando, não muito longe dali, tinha alguma onça bebendo água na beira do rio”, conta.

Ribeirinhos observam a cheia do Paranazão (Foto: José Francisco Barbosa Ortiz)

Ribeirinhos observam a cheia do Paranazão (Foto: José Francisco Barbosa Ortiz)

Há 17 anos, pelo menos 30 famílias ainda viviam na Ilha Portal do Trigo. O intenso aumento das cheias, agravado por proprietários de terras que depredavam a mata ciliar, e o surgimento de leis ambientais mais rigorosas, sob fiscalização do Instituto Ambiental do Paraná (IAP), tornou inviável a vida na ilha. “Isso aqui deu muito orgulho pra gente. É uma pena que tudo tenha acabado dessa maneira”, lamenta Luciene, sem esconder os olhos marejados.

A dona de casa deixou a ilha há 13 anos, rompendo assim, uma corrente de gerações, iniciada com seus avós. Apesar disso, até hoje, acompanhada dos filhos, viaja de Santa Cruz do Monte Castelo até Querência do Norte, de onde observa, ao longe, um sentimento de nostalgia se materializando. “Independente de qualquer mudança, sei que ela sempre vai estar ali”, comenta.

“A gente não precisava de muito dinheiro”

O maior benefício de se viver em uma ilha, segundo a dona de casa Luciene Franco, é a economia. “Era muito bom porque a gente não precisava de muito dinheiro. Só tivemos de mandar trazer um gerador de energia da cidade. Isso foi bem depois”, lembra.

Antes de adquirir o gerador, a única luz que iluminava a pequena casa, onde viviam mais de dez pessoas, era a de um lampião. À época, Luciene e os irmãos, ainda pequenos, costumavam deitar no chão e olhar para o teto. A surpresa, que depois se tornou fato constante, era a presença de cobras. “Sempre tinha alguma pendurada. Como a gente era criança, levava tudo no divertimento”, declara sorrindo.

Até 1990, toda a família de Luciene estava envolvida na produção de arroz e feijão. Havia muita união, principalmente na hora de trabalhar. O respeito entre os membros da família era consequência do forte vínculo semeado no dia a dia, quando a força coletiva determinava a diferença. “Ninguém passava o dia desocupado. Meu pai e irmãos revezavam pra atravessar o rio com um bote de carga. Eles iam para Querência do Norte vender a maior parte do arroz para uma secadora”, reitera a dona-de-casa.

O desempenho da produção, em molde tão arcaico que beira o processo artesanal, dependia mais da natureza do que das técnicas de manejo. De acordo com Luciene, quando chovia, o jeito era aguardar o mau tempo passar. “A chuva estragava tudo e a gente tinha que esperar secar pra começar de novo”, revela.

Durante o dia, a família se dedicava a agricultura, e à noite, a pescaria. “O trabalho era puxado, mas sempre valeu a pena. A gente tinha muita fartura. Nunca faltava nada”, defende a dona de casa.

Curiosidade

Se pudesse, Luciene Franco voltaria a viver na ilha, onde o custo de vida é mais barato.