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O legado romanesco de Knut Hamsun
O virtuoso escritor norueguês que morreu na pobreza após declarar sua simpatia pelo nazismo
Knut Hamsun, um dos maiores escritores da Escandinávia, nasceu em 4 de agosto de 1859 em Gudbrandsdalen, na Noruega. Cresceu em meio à pobreza da pequena comuna de Hamarøy, em Nordland. Na infância e adolescência, trabalhou como aprendiz de sapateiro e pedreiro, até que mais tarde conseguiu se tornar professor. Insatisfeito com os rumos de sua vida, Hamsun passou alguns anos viajando pelos Estados Unidos, onde atuou como motorista de bonde e publicou as impressões satíricas daquele país sob o título Fra det Moderne Amerikas Aandsliv (A Vida Intelectual da América Moderna) em 1889.
Mas foram os romances Sult (Fome), de 1890, e Pan, de 1894, que chamaram a atenção para o trabalho do escritor, considerado até hoje o precursor da verdadeira literatura moderna norueguesa. O trabalho de Knut Hamsun, independente de época, é determinado por profunda aversão à civilização. Suas obras reafirmam sua crença de que a realização do homem só é possível por meio da sua basilar relação com a terra.
Sem dúvida, um primitivismo que lançou luz sobre sua desconfiança em relação a tudo que é moderno. A máxima expressão dessa filosofia pode ser percebida na obra Markens Grøde (Crescimento do Solo). Os primeiros trabalhos de Hamsun já traziam à tona características fundamentais que marcariam a sua trajetória como escritor. Exemplos são seus personagens baseados em párias. A figura do vagabundo na obra do norueguês é uma constante fundamental porque à época representava a mais agressiva das oposições à civilização.
Com o amadurecimento literário, o autor experimentou considerável gradação. Substituiu a hostilidade figurativa pela resignação melancólica em relação à perda da juventude. O envelhecimento então começou a ocupar lugar de destaque em peças como Livets Spil (Jogo da Vida), de 1896, e Aftenrøde (Sol), de 1898, assim como nos romances Under Høststjernen (Sob a Estrela do Outono), de 1906, Benoni, de 1908, e En Vandrer Spiller med Sordin (Um Andarilho Toca com Cordas Silenciosas). Antes, em 1904, ele publicou o livro de poemas Det Vilde Kor (O Coro Selvagem).
Na última fase da carreira como escritor, Knut Hamsun, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 1920, já não se preocupava mais com a construção de figuras individuais. Sua atenção se voltou totalmente para os grandes ataques à civilização, um tema que se estende pelos livros Børn av Tiden (A Criança da Era), de 1913; Segelfoss By, de 1915; Landstrykere (Vagabundos), de 1927; August (Agosto), de 1930; Men Livet Lever (A Estrada Leva), de 1933; e Ringen sluttet (O Anel está Fechado), de 1936.
Desde sempre um admirador da Alemanha, principalmente da cultura germânica, quando os nazistas invadiram a Noruega em 1940, Hamsun declarou publicamente sua simpatia por Adolf Hitler, o que surpreendeu muito os noruegueses. Com isso, logo após a guerra, o escritor perdeu a propriedade onde vivia e foi colocado sob observação psiquiátrica. Pouco conhecido no Brasil, mas muito respeitado na Europa e nos Estados Unidos, Knut Hamsun passou os últimos anos de vida na pobreza.
Em 1945, aos 86 anos, escreveu o obituário de Adolf Hitler no jornal norueguês Aftenposten. A publicação em que ele homenageia o líder nazista se tornou a mais infame de suas obras, inclusive ofuscando o seu respeitado trabalho literário. Em um dos trechos, o escritor afirma que Hitler foi um guerreiro da humanidade, um pregador do evangelho da justiça que serviu de exemplo para todas as nações. “Nós, seus seguidores mais próximos, devemos inclinar nossas cabeças em respeito à sua morte”, escreveu.
Knut Hamsun faleceu em 19 de fevereiro de 1952, aos 92 anos. Em 1954, seus trabalhos voltaram a ser reeditados e publicados. No mesmo ano, uma edição de 15 volumes resgatou toda a trajetória literária do autor.
Referências
Nobel Lectures, Literature 1901-1967, Editor Horst Frenz, Elsevier Publishing Company, Amsterdam, 1969.
Reputação Póstuma de Knut Hamsun
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Mais diplomacia e menos guerra
Crise na Ucrânia vai muito além do que a grande mídia informa
Penso que a situação na Ucrânia não é menos delicada do que foi a do Kosovo, Tchetchênia, Sérvia e Montenegro. E pra citar dois períodos hoje remotos, o fim do Império Austro-Húngaro em 1918 e a invasão Bolgar muitos séculos antes. Não há nada simplista quando se trata de povos que, embora dividam o mesmo espaço, e estão sujeitos às mesmas conjunturas sociais e econômicas, possuem formações culturais e posições políticas convergentes e divergentes.
Não acho que o problema da crise na Ucrânia seja apenas político e econômico, embora tenha surgido na grande mídia com tal conotação, até porque esse foi o estopim. Vai muito além disso. Infelizmente, a imprensa tem a mania de aproveitar o fato de que não pensamos em plano cartesiano. Então nos bombardeiam com informações que nos confundem demais ou nos permitem julgar algo da maneira mais superficial possível.
Na minha avaliação pessoal, as manifestações na Ucrânia têm a ver com a sua própria trajetória e as muitas transições que surgiram em centenas de anos, começando pelo século 7. É um país com uma história bem complicada de dominância e submissividade. Me recordo que a Ucrânia já sofreu influência russa, búlgara, polaca, lituana, cossaca, mongol, cazar, tártara, viking e bizantina. E acho que tem mais por aí…
Hoje, muitos preferem não pensar muito sobre o assunto, incorrendo no erro de simplesmente amar ou odiar a Rússia, concordar ou discordar das manifestações na Ucrânia. Acho que mais importante do que julgar objetivamente a influência oriental ou ocidental é a necessidade de ponderar sobre uma resolução baseada na diplomacia. Sim, os nacionalistas ucranianos odeiam a Rússia e isso tem muito tempo. Usam símbolos controversos para afrontar os russos.
Não são poucos os jovens que desfilam pelas ruas de Kiev gritando “Heil Hitler”, o popular 88 do movimento nazista, bem como as 14 palavras do slogan “Devemos assegurar a existência de nosso povo e um futuro para as crianças brancas.” São clichês perpetuados há muito tempo. Entretanto, até que ponto e em que proporção isso representa o pensamento do povo ucraniano? Simplesmente não representa. É apenas uma das vozes da Ucrânia moderna, mas está longe de conquistar a simpatia da maioria, como alguns tentam pincelar.
Considero justas algumas reivindicações dos nacionalistas. Embora dentre os defensores do Nacional Socialismo ucraniano tenha muita gente endossando o movimento somente durante as manifestações, há boas justificativas para não simpatizarem com a Rússia. Entre os anos de 1917 e 1921, os soviéticos perseguiram Nestor Makhno, o maior líder da Revolução Ucraniana. Contrário aos bolcheviques, se tornou o principal desafeto de Leon Trotsky.
À época, o intelectual marxista contratou dois homens para assassiná-lo. Não conseguiram porque o ucraniano fugiu para a França, onde viveu até morrer de tuberculose. Nem todos tiveram a mesma sorte. Antes o Exército Vermelho dizimou milhares de ucranianos. Pouco tempo depois, em 1930, foi a vez de Josef Stalin promover dois dos maiores genocídios do povo ucraniano. Com isso, a Ucrânia enterrou parte de sua herança cultural, já que entre os mortos estavam muitos artistas e intelectuais. Isso explica, mas não justifica o ódio generalizado dos nacionalistas ucranianos contra os russos.
O nacionalismo surge como força transformadora em momentos de grande vulnerabilidade. Ele é contraditório em essência porque consegue ser bom e ao mesmo tempo ruim. É bom porque obriga o ser humano a assumir uma posição ativa, olhar para si mesmo, para sua história e a dos seus. Em concomitância, é ruim porque o cega para suas falhas e o faz julgar o que é diferente como uma deformidade, uma degeneração com um viés idiossincrásico bem limitado. Além disso, como defender um Estado e uma cultura homogênea quando a própria arquitetura do país simboliza a diversidade? Uma das sete maravilhas da Ucrânia é o Castelo Kamianets-Podilskyi, um símbolo do multiculturalismo do Leste Europeu.
É importante levar em conta que a Ucrânia é um país com mais de 7,5 milhões de pessoas de origem russa. Sendo assim, o que aconteceria com os ucranianos de origem russa, caso os nacionalistas assumissem o poder? Quando falo em diplomacia, penso que seria justo os ucranianos terem direito a uma maior “ocidentalização”, se for o desejo da maioria, assim como ouvir e avaliar as queixas dos nacionalistas.
Por outro lado, também é certo assegurar os direitos dos russos que vivem na Ucrânia, afinal, eles também estão lá para contribuir, trabalhar e constituir família. Não devem ser responsabilizados por algo que não fizeram. Ser Pró-Rússia na Ucrânia é ainda uma forma de autodefesa para muitos descendentes de russos e outras minorias.
Ouso dizer que a história da Ucrânia faz parte da história da Rússia e vice-versa. O maior exemplo disso é “A Crônica Primária”, um trabalho que ganhou status de documento em 1767. A obra é de autoria de Nestor, considerado um dos maiores estudiosos da cultura eslava de todos os tempos.
David Arioch, apenas um entusiasta da cultura do Leste Europeu.
Um filme sobre o fim da liberdade romani
A história de uma família roma que foi perseguida durante a Segunda Guerra Mundial
Lançado em 2009, Korkoro, palavra romani que significa sozinho, é um filme do cineasta franco-argelino Tony Gatlif que retrata a realidade de uma família roma que perdeu a liberdade enquanto viajava pelo interior da França em 1943, quando o país estava sob o domínio Vichy.
Logo no início, a música, a paisagem bucólica e o lirismo introduzem o espectador a uma cena em que as notas de um piano são representadas pela movimentação de arames farpados em paralelo. A princípio, a única perspectiva real que se tem é de um primeiro plano enuviado pelas incertezas de não sabermos o que há antes e depois daquela divisa. É um prólogo referencial do estilo de vida nômade.
Tony Gatlif apresenta uma família romani composta por pessoas de personalidades bem distintas, mas que carregam na essência algumas afinidades que envolvem companheirismo, abnegação, hospitalidade, amor à música, fé e desapego material. Não é uma obra que se limita a combater estereótipos ou simplesmente construir uma imagem bonita sobre a cultura cigana. É bem mais do que isso. Em alguns casos, Gatlif ironiza os clichês justamente para reforçar uma ideia ou parodiar um pensamento comum obtuso.
Em uma das viagens, o cigano Taloche (James Thiérrée) percebe que estão sendo seguidos por um garoto – Claude (Mathias Laliberté). Sem família, o menino se junta a eles. Durante o percurso, colocam saquinhos de estopa nas patas dos cavalos para não deixarem rastros. Quando chegam a um vilarejo, onde montam acampamento, são informados de que o nomadismo está proibido em todo o território francês, sob pena de prisão.
Então uma professora, Mademoiselle Lundi (Marie-Josée Croze) – partisan, integrante da resistência francesa, sugere que eles parem de viajar até o fim da guerra. Por ora, continuam no local, embora não tenham planos de fixar residência. Na escolinha, um dos estudantes comenta com Claude, a quem Taloche chama ironicamente de Chororo (garoto pobre), que os romani roubam crianças. Admirador dos ciganos, o ignora.
O filme é pautado por muita música do início ao fim, corroborando a ideia de que não há vida sem música no mundo roma. Bem comunicativos, os ciganos vão até o centro comercial do vilarejo vender produtos e oferecer serviços. Na tentativa de ganhar algum dinheiro consertando panelas, Taloche diz em tom bem humorado: “Todos têm utensílios com buracos em casa, o que acontece é que às vezes os buracos estão escondidos.”
Em uma cena, o médico veterinário e prefeito do vilarejo, Théodore Rosier (Marc Lavoine), socorre um dos cavalos do acampamento na ausência dos ciganos. Por azar, Rosier é mordido pelo animal e cai com o braço ensanguentado. Pouco tempo depois, chegam para socorrê-lo. Enquanto uns cuidam de seu ferimento, outros prestam atendimento ao equino. Movidos pela fé, tradição e superstição, tratam do braço do veterinário com uma pasta de estrume. Ao mesmo tempo, oram pelo cavalo caído que em um rompante se levanta como se jamais tivesse adoecido.
Mais tarde, Rosier, o prefeito que deu abrigo a petit Claude, evitando que os ciganos tivessem problemas por terem entre os seus um jovem de origem desconhecida, pede ao garoto para perguntar qual foi o remédio usado em seu tratamento. “Foi estrume de cavalo. Mas diga a ele que até uma vassoura pode lançar fogo se for o desejo de Deus”, enfatiza um dos roma.
É profunda a relação dos ciganos com outras formas de vida não humanas. Em outra situação, a família toca uma canção festiva para elevar o ânimo de dezenas de galinhas. No filme, a música ajuda a superar muitos problemas – um recurso que manifesta uma liberdade frugal.
Em contraste ao paisagismo rústico, Gatlif parte de uma condição coletiva para a individual quando aborda o lirismo de Taloche, personagem cuja inocência, aparente dislexia e hiperatividade, parece experimentar um incessante conflito existencial. Há uma exaltação da hipersensibilidade do cigano que destoa da idade e, por vezes, remete ao humor pastelão dos tempos do cinema mudo.
Mas não há nada mais bem representado em Korkoro do que a necessidade de liberdade, até nas cenas mais simples. Outro momento inesquecível surge quando Taloche vai até a casa de Rosier. No banheiro, ele se inebria com a água que sai da torneira. Enche a pia e a faz deslizar por todo o cômodo, como se a conduzisse à emancipação. Quando a água desce em abundância, Taloche se lança escada abaixo, sem o menor temor de se ferir.
O filme assume um caráter documental em algumas cenas-chave. Traídos pelo amigo Pierre Pentecôte (Carlo Brandt), um simpatizante dos nazistas, a família é levada para um campo de concentração, onde há centenas de romani. Lá, Darko (Arben Bajraktaraj) pergunta a Pentecôte por que estavam trancando eles como cachorros. O traidor então responde: “Para livrar a França de seus vermes.”
Ao saberem o que houve, Rosier e Mademoiselle Lundi decidem intervir. O prefeito transfere a escritura de uma propriedade familiar para o patriarca roma. Em seguida, os dois vão até o campo de concentração e apresentam o documento, obrigando que a família seja libertada. Quando retornam ao vilarejo, os ciganos se surpreendem com a nova morada. Alguns concordam em viver provisoriamente no local, já outros preferem partir. No fim, prevalece a decisão do patriarca que considera mais prudente continuar no povoado.
Taloche é o último a entrar na casa. Para ele, a ideia de viver entre paredes é uma forma de privação, embora não manifeste isso com palavras. Dias depois, Rosier os visita e encontra a propriedade abandonada. Novamente na estrada, rumam para a Bélgica, acompanhados mais uma vez por Claude. Não chegam tão longe. São surpreendidos pelos homens do Governo Vichy, a serviço dos nazistas.
Enquanto são obrigados a formarem uma fila e apresentarem registros de identificação, Taloche se esconde. O arrastam, mas ele estapeia o líder da operação – uma versão de Adolf Hitler, em uma cena caricata digna de Charlie Chaplin. Foge em direção à floresta e sobe em uma árvore enorme. É alvejado a tiros, até que numa queda poética e acrobática cai sobre um córrego. Deitado, mas ainda vivo, é vítima de um tiro certeiro na testa.
A morte de Taloche simboliza o fim da liberdade romani e a iminência do Porajmos, o genocídio cigano perpetrado na Segunda Guerra Mundial. O desespero da família é geral, mas, apesar dos prantos, nada pode ser feito diante de tantos homens armados. O corpo é abandonado, assim como os animais e os pertences. Dali, não levam nada. Um longo tempo passa em questão de segundos. Aquela família não retorna mais. Em uma cena estática, tudo se esvai: o som, o fogo, a fumaça, a luz e a vida.
É muito interessante o cuidado que Tony Gatlif teve aos detalhes das expressões e particularidades de alguns personagens, embora talvez fosse mais impactante tornar outros romani da obra igualmente menos anônimos. De qualquer modo, fica clara a intenção de não deixar o individual, por mais peculiar que seja, se sobressair ao coletivo. O cineasta não tem intenção de se aprofundar na guerra. O foco é outro. É um filme sobre pessoas tentando exercer o direito de existir, não apenas habitar o mundo. Há uma bela construção do espaço em profundidade.
Korkoro se divide em dois ritmos. Onde existe alegria, há movimento e velocidade. Onde há tristeza, prevalece a lentidão de retratos quase estáticos das agruras de um tempo nefasto. Outro diferencial é a trilha sonora sempre pontual, um belíssimo trabalho capitaneado por Gatlif e a compositora Delphine Mantoulet.
Tony Gatlif é um dos poucos cineastas que se dedica a produzir obras que evidenciam ou flertam com a cultura romani. Como autor de filmes de longa-metragem, o primeiro grande destaque surgiu com Latcho Drom, de 1993; seguido por Mondo (1995), Gadjo Dillo (1997), Je Suis Né D’une Cigogne (1998), Vengo (2000), Swing (2001), Exils (2004), Transylvania (2006), Korkoro (2009) e Indignados (2012). Vale a pena se aprofundar um pouco mais na filmografia desse autor de origem roma.
Saiba Mais
Não há dados precisos, mas acredita-se que de 250 a 500 mil ciganos foram assassinados pelos nazistas até o fim da Segunda Guerra Mundial.
Curiosidades
Korkoro é baseado em uma história real. A professora Lundi é inspirada na combatente da resistência Yvette Lundi.
James Thiérrée que interpreta Taloche é filho de Victoria Chaplin e neto de Charlie Chaplin.
Um manifesto sobre a fragilidade
Ivanovo Detstvo e o sonho da infância espoliada
Lançado em 1962, Ivanovo Detstvo, que chegou ao Brasil com o título A Infância de Ivan, é um filme do cineasta humanista russo Andrei Tarkovsky e aborda o estado de introspecção de uma criança órfã dividida entre o pesadelo da Segunda Guerra Mundial e o sonho da infância espoliada.
Ivanovo Detstvo conta a história de Ivan (Nikolai Burlyayev) que teve a inocência dilacerada quando soldados nazistas assassinaram seus familiares. Ignorando a própria condição existencial como criança, o garoto ingressa no exército soviético em busca de retaliação. Sob a perspectiva de Tarkovsky, a guerra assume um caráter individualista a partir das ações de Ivan.
A animosidade da contenda e a ausência de relações familiares levam o protagonista a um endurecimento e negação da juventude. Mesmo quando outros combatentes soviéticos tentam protegê-lo e o lembram de sua idade, o garoto age como se não estivessem se referindo a ele. Uma das cenas mais intensas da obra surge quando Ivan se torna refém de uma tormenta psicológica.
Consumido por desespero e delírio, o jovem armado com uma faca circula pela escura, gélida e sombria base militar a procura de nazistas. Mas não encontra nada, pois naquele ambiente a sua única companhia é a solidão. Incapaz de aceitar e lidar com a realidade, Ivan luta para velar a fragilidade e a sensibilidade com um manto de frieza. No entanto, ao dormir, é vencido por sentimentos e lembranças que retornam para reafirmar a sua condição infantil e conflitante.
O jovem soviético tenta ultrapassar a etapa da vida que deveria ser marcada pela ingenuidade justamente porque simboliza o momento mais doloroso de sua existência. Rejeitar a infância na fase de transição para a adolescência é uma forma de Ivan se desvincular do passado – uma tentativa sem sucesso. Ainda assim, não são poucos os momentos em que o garoto é transportado a um universo de nostalgia, onde se sente plenamente livre, estimulado por imagens de beleza e candura protagonizadas pela mãe, até pouco tempo seu maior elo com o mundo.
Ivan sofre sempre que acorda. Apesar disso, conta com o humanismo projetado na figura do capitão Kholin (Valentin Zubkov), um homem com quem estabelece uma difícil, mas alentadora relação. Kholin se torna a ponte entre o velho e o novo mundo do garoto, tentando mantê-lo em uma linha de equilíbrio, onde a sobriedade precisa ser nutrida com sonhos e expectativas.
Sobre a estética e os planos de filmagem da obra de Tarkovsky, o tempo todo a câmera assume papel de personagem, transmitindo sentimentos e emoções em meio a uma contumaz escuridão desértica. No chão, a consternação é marcada pelo solo improdutivo. No céu, onde há muito tempo as estrelas não brilham, as nuvens são substituídas por cortinas de fumaça cor de chumbo. A natureza parece sepultada, assim como tantas vidas representadas por escombros e ruínas. Em suma, Ivanovo Detstvo é um manifesto sobre a fragilidade humana.
O último judeu de Vinnytsia
Erwin Bingel: “Parecia uma convocação inofensiva”
Em setembro de 1941, o tenente Erwin Bingel, oficial da Wehrmacht, chegou a Vinnytsia, no Sul da Ucrânia, para ajudar o comandante do Distrito de Uman. Líder da Einsatzgruppen D., Bingel sabia que estavam cavando uma quantidade absurda de valas por quase toda a área do aeródromo.
Então no dia 22, o alto comando ordenou que todos os judeus fossem reunidos para o recenseamento demográfico. Obviamente, todos compareceram. No início, houve um diálogo normal entre os prisioneiros e os nazistas, principalmente os homens da SS, responsáveis pelo trabalho direto. “Parecia uma convocação inofensiva, tanto que até mesmo eu me surpreendi e fiquei horrorizado com o que aconteceu nas horas seguintes”, admitiu o tenente da Wehrmacht.
Os nazistas ordenaram que os judeus entregassem todos os pertences, se despissem e avançassem alguns passos. A qualidade das joias mostrava que muitos eram ricos. Nus, os semitas foram obrigados a ficarem em frente as valas, independente de sexo. Em seguida, um grupo da Einsatzgruppen D se afastou até uma linha traçada ao chão e com pistolas automáticas atiraram com destreza e naturalidade.
Muitos caíram nas covas enquanto pás de cal eram arremessadas sobre os corpos ainda se debatendo. A estratégia visava evitar o contato físico direto com as vítimas. O processo de se despir e ficar em frente as valas se repetiu por um sem número de vezes. Alguns eram obrigados a assistir o extermínio dos familiares enquanto aguardavam a vez.
A foto que acompanha o texto mostra um soldado da famigerada Einsatzgruppen D prestes a assassinar o último judeu de Vinnytsia, a vítima número 28 mil. A fotografia foi encontrada décadas depois junto aos pertences de um soldado alemão que participou dos fuzilamentos dos dias 16 e 22 de setembro de 1941. Atualmente a história integra os registros do projeto Holocaust Research, fundado na Polônia.
Referência: Holocaust Research