David Arioch – Jornalismo Cultural

Jornalismo Cultural

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Um grande artista nem sempre é um bom exemplo de ser humano

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Há inclusive aqueles que foram considerados artistas de caráter duvidoso

Picasso sempre chamou a atenção pelos seus relacionamentos conturbados (Foto: Arnold Newman/Getty Images)

Picasso sempre chamou a atenção pelos seus relacionamentos conturbados
(Foto: Arnold Newman/Getty Images)

 

É comum alguém acreditar que um grande artista é um bom exemplo de ser humano, até mesmo uma pessoa perfeita, mas é importante ter em mente que isso não condiz com a realidade. Exemplos nunca faltam. Há inclusive aqueles que foram considerados por alguns como seres humanos de caráter duvidoso e que entraram para a história da arte como verdadeiros gênios, como é o caso do compositor alemão Richard Wagner, cujo antissemitismo dizem que chegou a ponto dele declarar que judeus são incapazes de produzir arte. Apesar disso, alguns estudiosos de sua obra dizem que ele tinha alguns amigos judeus.

O maestro judeu Daniel Barenboim, o maior intérprete da música de Wagner, chegou a fazer releituras das obras do compositor alemão em Israel e justificou que o germânico poderia ser repreendido, mas não sua música. “Ele não compôs uma única nota antissemita”, declarou quando questionado sobre o assunto. A explicação se sustenta até mesmo na ponderação de que bondade e maldade enquanto características pessoais são qualidades morais que não se aplicam à arte, principalmente do ponto de vista estético.

O editor do New York Times e crítico literário Charles McGrath defende que uma pessoa, independente de moralidade ou caráter, pode não apenas escrever um bom romance ou pintar uma bela tela como suavizar ou externalizar um grande infortúnio. “Pense em Guernica, de Picasso, ou Lolita, de Nabokov. É um romance excepcional sobre o abuso sexual de uma menor e descrito de uma maneira que faz com que o protagonista pareça quase simpático”, argumenta.

Pound era assumidamente antissemita e protofacista (Foto: Reprodução)

Pound era assumidamente antissemita e protofacista (Foto: Reprodução)

Degas, até hoje cultuado pelo seu perfil fervorosamente humanista, era antissemita e um defensor do tribunal francês que condenou o capitão Alfred Dreyfus, do exército francês, falsamente acusado de traição. Ezra Pound, expoente do modernismo, também era antissemita e protofascista, posições que ele assumia sem receio, embora a maioria não levasse a sério suas declarações sobre o assunto por considerá-lo excêntrico e até mesmo louco.

E na mesma esteira seguia seu amigo T.S. Eliot, da Igreja Anglicana, poeta que se orgulhava de uma posição ideológica muito próxima a de Pound. Já Picasso, sempre chamou a atenção pelos seus relacionamentos conturbados. Das sete mulheres com quem se envolveu amorosamente, duas cometeram suicídio e outras duas enlouqueceram.

Outro pintor com uma história de vida intrigante é o alemão Walter Sickert, referência da pintura avant-garde britânica. A escritora norte-americana Patricia Cornwell publicou um livro em que acusa Sickert de ser o famoso Jack O Estripador. Norman Mailer, duas vezes vencedor do Prêmio Pulitzer, tentou assassinar a esposa.

Filho escreveu carta a Hemingway dizendo como ele destruiu sua vida (Foto: Reprodução)

Filho escreveu carta a Hemingway dizendo como ele destruiu sua vida (Foto: Reprodução)

O pintor Caravaggio e o poeta e dramaturgo Ben Jonson participaram de duelos em que mataram seus adversários sem o menor remorso. E a lista segue extensa. Genet era ladrão, Rimbaud foi traficante de armas e Byron praticou incesto. Flaubert também se envolveu em um escândalo por pagar por sexo com garotos, sim, menores. “A base de toda grande obra de arte é uma pilha de barbárie”, escreveu uma vez o crítico literário alemão Walter Benjamin.

Apesar disso, a arte consegue perseverar como enobrecedora porque ela inspira e transporta o leitor ou espectador. “Ela refina nossas discriminações, amplia a nossa compreensão e simpatia. Se ela faz isso conosco, imagine o que ela não é capaz de fazer com seus autores? Nos apegamos a essas noções porque cremos que a arte nos leva à evolução moral”, enfatiza McGrath.

Questionado se bons exemplos também fazem boa arte, o editor do New York Times responde que há muitos bons artistas que são decentes ou moralmente íntegros. Ou seja, que não são racistas, não batem em suas esposas, não ignoram suas famílias, não praticam injúrias nem mesmo sonegam impostos. “O artista é alguém vinculado à sua própria lei. Ele acaba por ser até mesmo egoísta, mas em muitas situações porque precisa. Grandes artistas tendem a viver para sua arte mais do que para os outros”, declara.

Dickens expulsou a esposa de casa e mandou o filho para a Austrália (Foto: Reprodução)

Dickens expulsou a esposa de casa e mandou o filho para a Austrália (Foto: Reprodução)

A afirmação de McGrath pode ser facilmente comprovada se avaliarmos as biografias de artistas como Fitzgerald, Faulkner, Bellow, Yates e Agee, homens que tiveram casamentos desfeitos, filhos negligenciados e pouco amados. E será que a arte vale a infelicidade dos mais próximos? Hemingway se casou quatro vezes e teve dois filhos problemáticos.

Quando Gregory completou 21 anos, ele escreveu uma carta ao pai dizendo como ele destruiu sua vida e a de outros quatro familiares. Depois de se tornar uma transexual alcoólatra em Miami, Gregory morreu em uma penitenciária feminina. Outros agravantes eram o perfil mulherengo de Hemingway e suas constantes bebedeiras. Além disso, sempre se importou mais em escrever do que em cuidar da família.

Assim que se casou com Catherine Hogarth, Charles Dickens, um dos mais famosos romancistas ingleses, prometeu que seria um pai e marido exemplar, levando em conta a própria infância miserável, acentuada pela ausência da figura paterna. No entanto, fez tudo diferente. Foi um pai desleixado e péssimo marido. Irritado ao ver que a cada gravidez a sua esposa ficava mais gorda e doente, Dickens se tornou um sujeito amargo.

“Ele expulsou a própria esposa de casa e anunciou em sua revista que fez isso porque ela era uma mãe tão irresponsável que nem os filhos a suportavam. Mais tarde, despachou o filho Edward, de 16 anos, para a Austrália e nunca mais o viu novamente. Dickens morreu sob o domínio completo da arte, uma arte cruel que exige de seus praticantes uma desumana servidão”, avalia Charles McGrath.

Referência

McGrath, Charles. Good Art, Bad People, The New York Times, The Opinion Pages, Global Agenda, Genius At Work. 22/06/2012.

The Bang Bang Club, barbárie na África do Sul pós-Apartheid

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Livro e filme contam as experiências de quatro jovens em meio ao caos da Guerra Civil Africana

Filme se passa na África do Sul de 1990 a 1994 (Foto: Reprodução)

O filme The Bang Bang Club, do canadense Steven Silver e lançado em 2010, conta a trajetória de quatro jovens caucasianos: Greg Marinovich, João Silva, Ken Oosterbroek e Kevin Carter, fotógrafos criados nos bairros de classe média de Joanesburgo, na África do Sul, que trabalhavam para o jornal The Star. Entre os anos de 1990 e 1994, registraram muitos momentos profundos e simbólicos da guerra civil que custou a vida de milhares de membros do Congresso Nacional Africano (CNA), de Nelson Mandela, e do grupo separatista de origem zulu Inkatha, formado por moradores da área rural. A história se desenrola em paralelo a um dos momentos mais importantes da política sul-africana, quando um referendo nacional estabelece o fim do Apartheid e oferece a toda a população a oportunidade de votar.

Em 2004, li o livro The Bang Bang Club que desperta questionamentos e reflexões existenciais sobre a banalização da vida, crueldade e barbárie com as quais o ser humano é capaz de conviver como se fosse algo tão natural quanto tomar um copo d’água. O filme homônimo também é pesado, agressivo e carregado de uma carga psicológica tão extenuante que reflete a própria condição da realidade sul-africana da época, transmitida com esmero estético por uma direção de fotografia que privilegia a perspectiva panorâmica dos fotógrafos em ação. A obra levanta questões que até hoje são discutidas em todo o mundo, quando se trata de fotografia de guerra ou testemunhal.

O verdadeiro Clube do Bangue Bangue (Foto: Reprodução)

Até que ponto um fotógrafo deve ou não interferir no cenário? Tanto no livro quanto no filme, Kevin Carter, um dos vencedores do Prêmio Pulitzer, um dos mais importantes do jornalismo mundial, é questionado muitas vezes. Perguntam-lhe por que não salvou a garotinha que estava sendo espreitada por um abutre na área rural do Sudão. Carter não sabia o que dizer, ficava confuso, e tantos questionamentos o afetaram de tal maneira que em 1994 cometeu suicídio dentro do próprio carro. Inalou através de uma mangueira a fumaça que saía do escapamento, chegando ao interior de automóvel com os vidros fechados. O homem que teve sua foto estampada na capa do New York Times morreu pobre e endividado.

Imagem que garantiu a Kevin Carter o Prêmio Pulitzer

Já Ken Oosterbroek foi morto a tiros pelo próprio exército sul-africano durante um conflito armado em que a turma do Clube do Bangue Bangue saiu para registrar uma incursão. Marinovich foi alvejado no mesmo episódio, mas sobreviveu. Greg também ganhou o Prêmio Pulitzer pela autoria de uma foto em que um suposto Inkatha é espancado, depois o banham em álcool e ateiam fogo com um palito de fósforo.

Enquanto o homem corre desesperadamente em chamas, e com o sol ao fundo, tornando a cena mais vívida, um membro do CNA vai até ele e desfere-lhe um golpe de facão. Greg Marinovich registrou o momento preciso, como diria o mestre Henri Cartier-Bresson. Porém, antes disso, o fotógrafo interpelou um dos agressores: “Como você sabe que ele é um Inkatha?” O homem respondeu: “Não sabemos, mas aqui fica uma lição aos outros.” Tal frase é mais que uma simbologia do caos vivido na África do Sul até 1994. Era mais importante surpreender o inimigo mostrando-lhe do que era capaz, mesmo que isso custasse a vida de um não-membro.

Foto premiada de Greg Marinovich

O filme é bom e fiel ao livro, mas a profundidade do original impresso é ainda mais reflexiva. Alguns momentos não foram para as telas, até porque a riqueza de detalhes de João Silva e Greg Marinovich demandaria uma série, não apenas um filme. Uma prática muito comum citada no livro é o necklace que não aparece na adaptação para cinema. O agressor selecionava a vitima, colocava em seu pescoço um pneu com as bordas embebidas em álcool e ateava fogo. Ainda me recordo também que a guerra entre os Inkatha e a CNA custou a vida até mesmo de bebês, mortos de forma extremamente violenta.

Em suma, fica claro que os maiores “vitoriosos” da guerra civil sul-africana foram os africâneres, principalmente os bôeres, que colocaram os nativos africanos para matarem uns aos outros, o que era bem quisto pelos segregacionistas, racistas brancos e dominantes que sempre representaram a minoria continental. The Bang Bang Club  e War Photographer – que conta com exímio realismo a história de um dos maiores fotógrafos de guerra do mundo, James Nachtwey (que inclusive tem uma curta participação no livro e no filme The Bang Bang Club), são duas recomendações para quem gosta do tema fotografia de guerra.

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