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Robert Louis Stevenson: “Consumimos as carcaças de criaturas de apetites, paixões e órgãos como nós mesmos”

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“Cortar a carne de um homem depois de morto é menos odiável do que oprimi-lo enquanto ele vive”

Stevenson: “No entanto, temos [por consumir carne] a mesma aparência [dos canibais] aos olhos do budista e do vegetariano”

O escritor escocês Robert Louis Stevenson é mais conhecido como autor de clássicos como “Strange Case of Dr Jekyll and Mr Hyde”, ou “O Estranho Caso do Doutor Jekyll e do Senhor Hyde”, lançado em 1886, e “The Treasure Island”, ou “A Ilha do Tesouro”, de 1883, obras que se tornaram mundialmente populares, ganhando inclusive adaptações para a TV e para o cinema.

No entanto, há um livro de Stevenson, “In The South Seas” ou “Nos Mares do Sul”, publicado em 1896, quase dois anos após sua morte, que merece atenção especial, embora não esteja entre os seus escritos mais famosos. Isto porque a obra reúne uma coleção de ensaios com registros reveladores sobre as viagens do escritor pelo Oceano Pacífico.

Entre os quais, é destacável “Long-Pig – A Cannibal High Place”, que integra o capítulo 9. No ensaio, que ganhou fama de maldito em alguns círculos sociais por desnudar a hipocrisia da sociedade europeia, o escritor narra, com certa ironia, e levando em conta o contexto cultural ocidental, que nada desperta tão fortemente o nosso desgosto quanto o canibalismo, que transparece como a desfiguração da própria sociedade.

“Nada, poderíamos argumentar plausivelmente, irá degradar tão duramente as mentes daqueles que o praticam [quanto o canibalismo]. No entanto, temos [por consumir carne] a mesma aparência [dos canibais] aos olhos do budista e do vegetariano. Consumimos as carcaças de criaturas de apetites, paixões e órgãos como nós mesmos. Nos alimentamos de bebês, embora não os nossos; e o matadouro ressoa diariamente gritos de horror e medo”, registrou na página 99.

Em referência ao especismo, Stevenson diz que a recusa de muitas nações em se alimentar de um cão, um animal com quem se tem uma relação de intimidade, mostra como essa distinção entre animais que devem ou não ser reduzidos a pedaços de carne é precariamente fundamentada; deixando subentendido que relegamos a morte todos aqueles que não vemos como amigos ou companheiros de conveniência.

O escritor escocês revelou em “In The South Seas”, que a realidade partilhada com os insulares do Pacífico, entre eles os povos canibais, fez com que tivesse um novo senso de percepção da realidade, da vida e do mundo; e tudo isso a partir da observação de seus personagens e eventualmente da forma como morriam.

“Muitos insulares vivem com seus porcos como fazemos com nossos cães. Ambos se aglomeram ao redor da lareira com igual liberdade; e o porco da ilha é um companheiro de atividades, iniciativas e sentidos”, informa. Acrescenta ainda que os porcos das Ilhas Marquesas eram tão espertos que empurravam os cocos em direção ao sol para que estourassem e eles pudessem comê-los.

Por outro lado, Robert Louis Stevenson cita o tratamento que os “civilizados” já davam aos porcos nos matadouros. E satiricamente comenta que, apesar de tudo, os europeus ainda são considerados um dos povos menos cruéis, deixando patente a sua discordância. Em relação ao abate do gado e de outros animais consumidos pelos seres humanos, ele declara que a parafernália do assassinato, as brutalidades preparatórias de sua prática, estão todas escondidas. Nessa passagem, há uma referência à dissimulação da crueldade por parte de quem explora os animais, e ao mesmo tempo a conivência de quem os consome como se fossem produtos. “Uma extrema sensibilidade reina sobre a superfície”, diz o autor, possivelmente debochando.

Stevenson critica e satiriza as damas que provavelmente ficarão chocadas ao lerem seu relato. Na obra, ele prevê desmaios diante da franca descrição de uma crueldade que nada mais é do que aquilo que elas esperam diariamente de seus açougueiros. “Alguns vão se queixar de mim, do fundo de seus corações, pela grosseria desse parágrafo”, prevê ironicamente.

No ensaio, o escritor também faz a defesa dos canibais do Pacífico ao argumentar que eles não eram cruéis, como os europeus gostavam de descrevê-los em uma pretensa autoafirmação de falsa superioridade. “Eles [os canibais] não eram cruéis. Para além desse costume, são uma raça das mais gentis; corretamente falando, cortar a carne de um homem depois de morto é menos odiável do que oprimi-lo enquanto ele vive”, justificou, fazendo menção aos animais criados para servirem como comida aos seres humanos.

Saiba Mais

Robert Louis Stevenson nasceu em Edimburgo, na Escócia, em 13 de novembro de 1850. Ele faleceu em 3 de dezembro de 1894 em Vailima, nas Ilhas Samoa, em decorrência de hemorragia cerebral.

Alguns pesquisadores acreditam que a sensibilidade de Robert Louis Stevenson em relação aos animais foi estimulada pela sua esposa Frances (Fanny) Matilda Van de Grift Osbourne Stevenson, que era uma amante dos animais.

Referências

Stevenson, Robert Louis. Páginas 99-101. In The South Seas. Arc Manor. (2006).

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