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O Circo dos Irmãos Cervantes
De sua boca, saíram fumaças coloridas que serpenteavam e se fundiam, ganhando formas
Na minha infância, quando o circo chegou a Paranavaí, pedi à minha mãe que me levasse para assistir um espetáculo. Tradicionalmente, o picadeiro foi instalado ao lado da delegacia, na Avenida Heitor Alencar Furtado. Pelas ruas do centro da cidade, eu ouvia carros de som circulando e anunciando atrações quiméricas que na minha imaginação pareciam saídas de alguma série como Amazing Stories ou filme como Freaks. “Alô, alô, criançada, o circo chegou!”, repetia o refrão glutinoso que me lembrava a musiquinha de abertura do programa do Bozo.
Traziam adesivos enormes de personagens histriônicos na lataria. Às vezes, alguns artistas atravessavam a região central e alguns bairros na carroceria de uma caminhonete. Acenavam para as crianças, arremessavam balas, pirulitos e os convidavam para a estreia. Muitos pais se animavam com a ideia dos filhos conhecerem o circo, já outros assumiam um aspecto sorumbático e arreliado que não escondia o fato de que o circo tinha chegado na pior hora, quando lhes faltava dinheiro para gastar com qualquer tipo de diversão. “Porcaria de circo! Melhor seria se não viessem a Paranavaí. Tenho raiva e nojo dessa gente que vem pra cá com esses showzinhos ridículos só pra buscar nosso dinheiro. Lazarentos mercenários!”, esbravejou um senhor dentro de uma F-1000 na primavera de 1993 ao ver o carro de som passar em frente à Escola São Vicente de Paulo, onde ele buscava diariamente um dos filhos que estudava comigo.
Ao perceber a ofensa, o palhaço sorriu, fez uma micagem escalafobética e arremessou algumas balas sobre o chapéu de abas largas do homem. Os doces de cores sortidas deram ao sujeito trombudo uma expressão tão sarapintada e cômica que muita gente gargalhou. Confuso, só depois que a caminhonete do circo se afastou que o homem percebeu o que aconteceu. O episódio levou dezenas de crianças para o centro da Rua Getúlio Vargas. Dois guardas tiveram de interditar a rua para que as crianças da escola vissem de perto o rastro de cores formando inúmeros arco-íris de dimensões irregulares no meio do asfalto. Me aproximei, ajoelhei e senti um perfume floral que me sopitou mais do que o chá de camomila preparado pela minha mãe.
“Como aquele carro criou esse caminho de arco-íris? Como isso é possível?”, perguntavam e se entreolhavam as crianças mais abelhudas. Algumas garotinhas tentavam em vão raspar os arco-íris do asfalto com pedaços de graveto. Parecia feito de tinta sem ser tinta. Continuava impérvio e etéreo, como se entranhado em um chão do qual curiosamente não fazia parte. Para mim, na minha completude meninil, aquilo era mágica, um encantamento para ser visto e sentido sem ser tocado ou compreendido.
Tinha textura vaporosa e astuciosa de um nada revestido de um todo e vice-versa. Se estendia por mais de 50 metros, resplandecendo beleza tão portentosa que fazia os motoristas desviarem com receio dos pneus deixarem marcas de borracha sobre a curta estrada de arco-íris. Insigne era o fato de que um pequeno caminho colorido pacificou tanta gente. Fez muitos sorrirem e se tornarem complacentes, inclusive pais javardos, com fama de serem os mais aterrorizantes e bocudos da escola. Naquele final de setembro, por volta das 17h, o sol incidiu sobre a rua com tanto viço que o caminho de arco-íris ficou parecido com a estrada dos tijolos amarelos do conto “O Maravilhoso Mágico de Oz”, de Frank Baum.
Continuei no centro até escurecer, mas ao retornar com minha mãe pela Getúlio Vargas vi os arco-íris se desvanecendo após os primeiros toques suaves da garoa fleumática. Ainda assim as cores já inexistentes irradiaram uma mescla de cheiros que atravessou o centro da cidade quando a garoa se espessou, transformando-se em chuva delgada. Sem parcimônia, a olência deslizava com graça e paciência pelo asfalto, pelas beiradas dos meios-fios, espalhando fragrâncias que reafirmavam a mais pura das sinestesias. Funcionários em fim de expediente e donos de lojas olhavam de um lado para o outro, procurando a incompreensível origem do bálsamo matizado. Invisível era o vermelho resumido a um aroma de rosa. Havia também olores inebriantes de hibisco, ipê-de-jardim, trevo-de-cheiro, hortênsia, lótus e violeta.
No início da noite recortei do jornal o cupom de desconto de 50% do valor do ingresso e pedi para meus pais levarem eu e meu irmão ao Circo Espanhol dos Irmãos Cervantes. Afinal era sexta-feira e não precisaríamos acordar tão cedo no sábado. Chegando lá, por volta das 19h30, havia uma fila enorme como uma centopeia humana. Para entrar no picadeiro era preciso atravessar uma rampa de tábuas, onde um casal de anões recolhia os bilhetes enquanto um homenzarrão de mais de dois metros, com bigode trançado nas pontas e trajando collant, observava a movimentação.
Eufóricas, muitas crianças batiam os pés sobre a rampa. Se aquietavam ao notarem o olhar fixo e enviesado do galerão bigodudo. Para aliviar a tensão pré-espetáculo, o anão chamado Flecha explicou na entrada, num portunhol caricato: “Boa noche, mis amigos. Tengo certeza que verás cosas ahí que nunca olvidará. Quando saírem de qui, no verão o mundo de la misma manera. Diviértete! Boa suerte!” Em seguida, arremessou algumas bolinhas de fogo atiradas com o dedão da mão esquerda, as engoliu, abriu a boca, mostrou a língua, sorriu e exibiu os dentes de ouro. Depois tirou a cartola da cabeça, se curvou e girou os braços em direção ao picadeiro, convidando o público a se sentar nas ásperas, rangentes e modestas arquibancadas de madeira.
Mesmo com a chuva repentina, o ambiente estava quase completamente seco. Havia apenas orvalho nas rebarbas da lona. Assim que nos acomodamos, luzes vermelhas, laranjas, amarelas, verdes, anis e violetas percorreram aleatoriamente o cenário por alguns minutos, até se alinharem e formarem um arco-íris. Logo um homem de meia-idade, vestindo uma curta calça preta, camisa branca com botões pretos, gravata borboleta preta e um colete aveludado vermelho, caminhou até o centro do picadeiro e se apresentou como Ramón Cervantes, El Animal. “Respetable público. Estoy muy feliz de verlos aquí. Es genial estar en Paranavaí. Para los que vieram ver los animales, una advertência: neste circo somos los únicos animales. Y no somos pocos. Somos decenas, muchos. Só peço-te que fecha los ojos. No tengas miedo!”, disse Ramón. O apresentador bateu cinco palmas, as luzes se apagaram e a contragosto de alguns o silêncio tomou conta do ambiente.
Um cheiro de selva rapidamente se alastrou pelo picadeiro. Ouvi passos pesados e um barrir que fez meus cabelos esvoaçarem. Tive a impressão de que um elefante estava próximo de mim, encostando sua pata em meu joelho miúdo, até que desapareceu antes que eu pudesse enxergar alguma coisa. Então escutei o rugido de um tigre acompanhado de um mau hálito ferino que me causou arrepios. Era como se os animais estivessem circulando pelas arquibancadas, nos observando, analisando nossas reações e sentindo a energia emanada de nossos corpos. “No tengas miedo! No tengas miedo! Sinta la belleza de la vida y los sentidos”, repetia Ramón no microfone a cada 20 ou 30 segundos.
Também notei algo voando em minha direção. Senti um par de garras sobre o ombro direito e um bico tocando-me a cabeça. De repente ouvi o crocitar de um falcão que parecia bater as asas e voar para fora do picadeiro. Antes das luzes voltarem, uma mão aparentemente humana sem ser tocou a minha. Escutei um barulho ressonante e indecifrável. Com o retorno da iluminação, Ramón observou atentamente as expressões em nossos rostos. Apesar de não ter ouvido gritos, vi que parte do público tinha deixado o picadeiro sem entender a proposta do apresentador. Ramón não lamentou nem comentou nada sobre a evasão. Apenas agradeceu a compreensão dos que ficaram e convidou seu irmão Juanito Cervantes, El Boticario para comandar a segunda parte do espetáculo.
“Que hermoso! Quantas personas para ver nuestro show. Gracias, muchas gracias, mis amigos!”, elogiou Juanito num sorriso largo evidenciando dentes com as cores do arco-íris. O rapaz de pouco mais de 30 anos, e traje igual ao de Ramón, fechou os olhos, inspirou profundamente e expirou. De sua boca saíram fumaças coloridas que serpenteavam e se fundiam, ganhando formas de animais transformados em pessoas e pessoas transformadas em animais. As cores tinham aromas florais muito mais vigorosos do que aqueles deixados na Rua Getúlio Vargas.
Da plateia, Juanito convidou uma garotinha de sete ou oito anos para acompanhá-lo até o centro do picadeiro. “No tengas miedo. Será muy divertido”, prometeu. El Boticário se afastou aproximadamente um metro e meio e assoprou suavemente. O rosto da criança se coloriu, ganhando aspecto místico e refulgente reforçado pela imagem de um lírio amarelo que tinha o nariz miúdo e afilado da menininha como núcleo. Juanito mostrou o resultado em um espelho e perguntou se ela queria que ele lhe tirasse a pintura do rosto. Como a resposta foi negativa, o artista mostrou o desenho de um mosqueado Olho de Hórus em seu antebraço direito e assoprou. Em poucos segundos o olho se fechou e se apagou.
A plateia naturalmente se levantou e aplaudiu com palmas tão fortes e cadenciadas que El Boticário se ajoelhou e reverenciou o público. Antes de encerrar o espetáculo, Juanito fez um comentário em portunhol que reproduzo num português mais claro. “Se vê, sente ou ouve cores, cheiros e sons sem bolores, onde eles pouco existem ou até inexistem, é porque a liberdade te cativa com a tenra intensidade da sensibilidade.” Lá fora, andei em torno da lona antes de ir embora e percebi que não havia animais ou jaulas, somente uma caminhonete, um caminhão e um velho trailer variegado onde viviam os irmãos Cervantes, Flecha e sua esposa, e o gigante circunspecto.
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