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O mundo de Marinho
A história do jovem que há nove anos passa o dia vagando pelo centro de Paranavaí
Era uma quinta-feira, por volta das 8h30, quando eu e o fotógrafo Amauri Martineli saímos para procurar o famoso Marinho, um jovem sorridente que vive vagando pelo centro de Paranavaí, no Noroeste do Paraná. Em poucos minutos, o vimos próximo da Banca Tanaka, na movimentada Rua Getúlio Vargas. Acenei, o rapaz se aproximou e perguntamos se ele aceitaria nos contar a sua história e o motivo de ter se tornado andarilho.
Empolgado com a ideia de uma reportagem sobre a sua vida, sorriu e disse que nos aguardaria. Assim que Martineli deu a volta para estacionar o carro, Marinho desapareceu. Depois de 15 minutos de procura, o vi a 50 metros do local onde conversamos antes. Já estava com um semblante diferente. O sorriso tinha sumido. Me aproximei, expliquei a ideia da entrevista, mas se mostrou desinteressado. “Ah, vamos deixar pra semana que vem. Hoje eu não tô bem”, justificou. Então perguntei o que ele tinha e expliquei que poderíamos ajudá-lo. O rapaz insistiu: “É a minha cabeça, não tá boa. Depois passa. Isso é normal comigo”, garantiu, de forma evasiva.
Me afastei um pouco, chamei o Amauri e juntos conseguimos convencer o Marinho a bater um papo com a gente. Curiosamente a cefaleia se desvaneceu em pouco tempo. Logo o rapaz ficou à vontade e demonstrou muita satisfação pelo nosso interesse em conhecer a sua história narrada em cerca de uma hora. Com um estilo próprio de ser, Marinho passa a maior parte do dia no centro de Paranavaí, onde gosta de ficar perto das entradas das lojas vendo a movimentação de pessoas e ouvindo música. Admite que tem preferência pelo pagode, gênero da época das festinhas da adolescência.
Muito conhecido pelos comerciantes e comerciários das ruas Getúlio Vargas e Manoel Ribas, o rapaz é elogiado pela quietude. Discreto, não gosta de incomodar ninguém. “Hoje só fumo cigarro e bebo cerveja. Bebo todo dia. Compro cigarro solto numa banca. A mulher gosta de mandar Derby. Pago 50 centavos em cada um. Ah, antes eu nem gostava daquele Free, achava fraco, mas agora é o meu preferido. Só que custa caro”, reclama.
A latinha de cerveja é sagrada para Marinho que tem 30 anos e me chama de tio o tempo todo, embora tenhamos a mesma idade. Comprada na loja de conveniência de um posto de combustíveis, ele informa que costumava pagar R$ 1 na Schin, mas recentemente subiram o preço para R$ 1,50. “Tinha outra que era R$ 1,75 e caiu pra R$ 1,25, então só bebo dessa. De vez em quando tomo umas pingas no [antigo] Terminal Rodoviário e fico doido, mas é mais moderado”, pontua enquanto sorri e coça a cabeça. Às 18h, quando as portas das lojas se fecham, o rapaz caminha até o antigo Jardim Ouro Branco, onde passa a noite sozinho e deitado sobre uma calçada nas imediações do Centro Esportivo do Sesc.
Entre latidos de cães da vizinhança, dorme ao relento até amanhecer, perto da ex-residência dos avós. “Lá é tranquilo. Me deixam ‘de boa’. Quando alguém estranha, faço questão de cumprimentar pra mostrar que sou do bem”, comenta Marinho que dorme na rua há nove anos. Antes de virar sem-teto, vivia com os avós. Ficou sem casa quando os dois faleceram em decorrência de ataques cardíacos. As mortes tiveram diferença de poucas horas. O rapaz recebeu a notícia quando estava preso. Foi flagrado fumando e portando maconha. “Fiquei seis dias na cadeia. Não pude ir nem ao velório. Só vieram me avisar que os dois morreram”, lamenta. De Marinho, as drogas não levaram apenas a oportunidade de se despedir dos avós, mas também a própria identidade e capacidade de sonhar.
A falsa ilusão de ser admirado pelos amigos fez com que experimentasse maconha com 15 anos. “Queria me alugar um pouco. Acabou que saí tremendo com medo de morrer. Só ficou ‘massa’ quando parei de ter as ‘piras’. Eu ‘desligava’ mesmo, nem pensava em nada”, revela. A primeira tragada aconteceu no Parque Ouro Branco, no Ribeirão Xaxim, onde se reuniu com 13 garotos, principalmente vizinhos. No local, encontraram alguns jovens fumando maconha em um bong caseiro, feito a partir de garrafa pet. “Ofereceram pra gente e o bagulho fez efeito rápido. Tinha um trilho no córrego e até hoje eu não sei como cheguei do outro lado. Devo ter caído até na água. Sei lá”, declara às gargalhadas.
Quando a larica, a fome em decorrência do uso de maconha, surgia, a garotada descia até o Laticínio Iva, onde um guarda fornecia a eles algumas caixinhas de leite. Marinho tomava até três de uma vez. Com o tempo, quis se afastar da maconha, mas não resistiu. O ápice do vício foi aos 16 anos, incentivado por “amigos” que moravam perto da casa dos seus avós. “Eles vendiam pra mim. Então quando minha mãe me dava um, dois reais, eu ia lá comprar. Tinha uns ‘caras quentes’ que vendiam 50 gramas, peso de balança, por 30 reais, o suficiente para quatro dias. Era da boa, pura mesmo. Bem diferente do baseado de um real que eu fumava pelo menos quatro por dia”, confidencia.
À época, Marinho não conseguia dormir sem antes tragar o “cigarro branco”. Ficava muito agitado e ansioso. Entre os vizinhos, pelo menos nove fumavam juntos. Quando tinha dinheiro para comprar só um baseado, o rapaz se irritava fácil. “Ficava bravo porque sempre aparecia gente pedindo pra dividir. Não dava nem tempo de ficar doido”, justifica. O fornecedor era sempre o mesmo, só que quando surgia algum imprevisto o jeito era procurar outra “boca de fumo”.
Por causa do vício, Marinho ficou 26 dias internado no Hospital Psiquiátrico Nosso Lar, em Loanda. O rapaz se queixa que teve de conviver com loucos. “Eu era o único normal lá. Aplicaram um bagulho em mim que minha língua até enrolou e não consegui falar”, lembra. O tratamento não deu certo e o rapaz retornou a Paranavaí. Em casa, o avô tentou curá-lo do vício com o preparo caseiro de “garrafadas de erva-de-são-joão”. Marinho tomava pelo menos dois litros por dia para tentar controlar a abstinência de canabinoide.
Quando estava se afastando definitivamente da maconha, foi morar na rua e conheceu o crack. A primeira pedra foi experimentada por curiosidade, nas imediações do antigo Terminal Rodoviário Urbano. Pedia dinheiro no centro de Paranavaí e corria até lá para comprar. “Entrei na pedra com 23 anos. Achei o crack muito mais gostoso do que a maconha. Teve uma vez que conheci um cara ‘massa’ que vendia pedra de cinco e de dez reais”, confessa Marinho que fumava até 12 pedras de R$ 5, ou seja, o equivalente a R$ 60 por dia.
Normalmente começava a consumir crack pela manhã e parava por volta das 22h. Só prolongava o uso nos finais de semana, quando estendia o consumo até as 4h. Sexta e sábado o vício era financiado com as doações generosas dos frequentadores de bares e lanchonetes da Avenida Paraná que raramente falavam não para Marinho. “‘Chapava’ pedindo dinheiro. Daí gastava mais de R$ 60. Fumava e ficava ‘ruinzão’. Tinha uma mulher que me deixava dormir na casa dela. Eu aparecia lá de madrugada e ficava olhando pro teto me perguntando porque não amanhecia logo pra eu sair pedindo dinheiro pra comprar mais pedra”, enfatiza.
Marinho não se esquece do dia em que estava perto de uma “biqueira”, como ele chama as “bocas de fumo”, no Jardim Ipê, e foi surpreendido pela aproximação de uma viatura da Polícia Militar. Assustado, tentou arremessar o cachimbo em um terreno baldio, mas o objeto bateu no portão e voltou. A segunda tentativa deu certo. Só que era tarde demais e foi obrigado a se explicar para a polícia.
Apesar da vida de riscos, Marinho jura que jamais foi perseguido ou ameaçado por traficantes. “Nunca enganei ninguém. Só ficava em débito com os ‘mais chegados’. Mas era coisa de dois a quatro reais. Às vezes se irritavam comigo e me davam o produto até de graça. Cheguei a ganhar pedra de R$ 5”, diz rindo. O seu ponto preferido era o entorno do velho Terminal Rodoviário Urbano, de onde se afastou há quatro anos, quando parou de usar crack. “Até hoje tem gente vendendo lá. Não me interesso porque não vejo mais graça”, explica.
Antes de se livrar do vício, por iniciativa do irmão, ficou internado em uma clínica de reabilitação por quatro meses em Curitiba. “Eu não queria nada com nada e saí de lá”, reconhece. Outra tentativa sem sucesso foi em uma chácara para dependentes químicos no Sumaré. Com a abstinência, o rapaz perdia o controle de si mesmo e agia como outra pessoa. “Fugia de lá alucinado e bravo. Andava uns 19 quilômetros até chegar no centro de Paranavaí. Hoje tô livre disso. Não quero saber dessas drogas. Prefiro continuar vivo”, pondera Marinho que ao final da entrevista conta que se chama Mariosvaldo de Freitas Mazanares Souza Moura.
“Minha infância, vou falar pra você, tio”
“Minha infância, vou falar pra você, tio. No meu aniversário de seis anos a minha mãe fez um bolo delicioso e colocou uns bonequinhos ‘desenhadinhos’ do Corinthians, porque eu era corinthiano, e do Palmeiras, né? Foi muito legal! Melhor dia! Chamei um amigo que morava no [Jardim] São Jorge e outro que vivia um pouco pra cima da minha casa. O resto era família”, conta o jovem andarilho Marinho. A primeira experiência do rapaz em um escola foi na mesma época, quando ingressou no Colégio Estadual Newton Guimarães. “Até a quarta série ainda era ‘da hora’. Depois que chegou a quinta, passei a odiar por causa das matérias. Tudo muito difícil e eu não entendia nada”, reclama.
A maior lembrança da quinta série remete ao dia em que o pai chamou ele e um dos irmãos para passear de Ford Belina. “Eu tinha uns 12, 13 anos. Corremos Paranavaí. Visitamos minha irmã e voltamos pra casa só lá pelas dez da noite. Parecia até que ele sabia o que iria acontecer depois. Quando deu duas horas da manhã, meu pai morreu de ataque cardíaco”, lamenta Marinho com olhos marejados.
Com a morte do pai, Marinho perdeu mais ainda o interesse em estudar. Quando chegou à sétima série do ensino fundamental teve de fazer supletivo à noite para tentar recuperar o tempo perdido. “Nem passava de ano mais. Fui pro [Colégio Estadual] Leonel Franca e só chegava atrasado, lá pelas 8h20, 8h40, até na hora do recreio. Daí falaram que seria melhor eu estudar perto de casa. Então me deram a transferência e mudei pro [Colégio Estadual] Marins [Alves de Camargo]”, relata.
Marinho reprovou novamente e só conseguiu a aprovação no ano seguinte. “Cada negócio mais difícil, bicho!”, reclama. Quando não estava na escola, corria para uma pracinha perto de casa, onde se reunia com os amigos para jogar bola num ‘areião’. Sonhavam em fazer traves de madeira. Sem experiência com marcenaria, apelavam para chinelos e lajotas.
Marinho faz questão de destacar que no mesmo período arrumou muitas confusões por causa de pipa. O agravante era o uso indiscriminado de cerol. “Na adolescência, quando chegava dezembro eu acordava cedo pra ir ver se tinha passado ou reprovado na escola. Olhava, ficava triste e falava: “É doido! Nunca que fico sem tirar nota vermelha!”
“De lembrança, eu tô devagar, tio”
“De lembrança, eu tô devagar, tio. Lembro mais das mortes. Foi triste porque acordei e vi meu pai caído e morto”, narra. Mais tarde, perdeu o contato com a mãe, com quem morou pouco tempo após a perda do pai. Também residiu no Hotel Floresta, perto da rodoviária velha, com uma das irmãs. Apesar de hoje não ter muito contato com a família, Marinho tem boas lembranças. Se recorda de quando tinha seis anos e o irmão o levou para participar da Escola de Futsal São Lucas. “Foi doido, hein? Fiz gol no primeiro dia. Eu era ala esquerda, canhoto. Fiquei até os 13 anos, quando quis jogar campo”, explica e acrescenta que gostava de perturbar o técnico Gildo Tomé para deixá-lo jogar como titular quando viajavam para disputar campeonatos.
Segundo Marinho, seus dribles eram dos mais “bobos”. Gostava de “dar chapéu”. “Só que ainda preferia o campo pra bater de ‘bicicleta’”, comenta enquanto gesticula. Na adolescência, ingressou no Paranavaí Atlético Clube (PAC) e jogou várias vezes no Estádio Municipal Waldemiro Wagner. Começou a se destacar na posição de meia-esquerda. Logo o bom desempenho garantiu escalação para os Jogos da Juventude. Em uma das edições, ajudou o time a chegar à semifinal. Com 19 anos, surgiu uma grande oportunidade. “Fui convidado a participar de um ‘peneirão’ para ir pro Santos, tio. Por azar, acabei eliminado”, lamenta.
Marinho lembra com satisfação da época em que se apresentou no palco do Teatro Municipal Dr. Altino Afonso Costa. “Eu era ‘arteiro’ no colégio, então eles me chamaram pra fazer teatro. Topei e fui lá assistir alguns ensaios. Foram loucas as peças. Gostei mesmo!”, garante Marinho que participava dos ensaios no Colégio Marins. Os encontros geralmente ocorriam à noite ou quando os alunos tinham aulas vagas. “Fizemos uma peça dirigida pela Lígia Oliveira que chamava ‘Que país é esse?’ Foi ‘massa!’”, enfatiza. De repente, Marinho não quis mais saber de teatro e abandonou as aulas.
“Agora não penso em trabalhar. Quem sabe, depois”
“Agora não penso em trabalhar. Quem sabe, depois. Já trabalhei como servente de pedreiro quando morava com meus avós. Só que parei. Tentei ser ajudante de pintor, mas o homem falou que eu não ia pra frente não. Cheguei a ir pra roça também. Daí odiei minha vida!”, diz o andarilho Mariosvaldo de Freitas Mazanares Souza Moura, o Marinho.
Quando atuava como servente, o rapaz gostava de transportar areia e lajota. Segundo ele, bater massa também era “da hora”. O que mais o animava era o fato de que podia pegar dinheiro todo dia. Convencido pelo irmão, Marinho tentou morar em Curitiba algumas vezes. A primeira tentativa foi aos 16 anos. “Quando eu chegava lá, ele sempre falava que eu precisava arrumar emprego. Eu respondia: ‘Mas pra que emprego, rapaz? Não quero trabalhar!’”, revela.
Um dia o irmão o convidou para ir a um restaurante. Chegando ao local, convenceu a proprietária a contratar Marinho como ajudante. Após 15 dias de trabalho, o rapaz pegou um vale e abandonou o serviço. Voltou para a casa do irmão, preparou a mala e foi direto para a rodoviária sem avisar ninguém. “Antes do ônibus partir, meu irmão entrou pra falar comigo. Expliquei que não iria ficar lá perdendo tempo. Queria voltar pra Paranavaí. Então ele só se despediu”, relata.
Quando encontram Marinho casualmente, os amigos dos tempos de infância e adolescência ainda tentam convencê-lo a sair da rua e procurar um emprego para mudar de vida. “Ah, tio! Já trabalhei, mas não entendo de nada. O negócio era estudar, mas perdi minha chance. Então sobrou só isso aqui pra mim”, declara. Nas ruas, Marinho está sempre correndo riscos, obrigado a lidar com os percalços de um estilo de vida subumano.
Já foi perseguido várias vezes, inclusive espancado. Quem mora nas ruas de Paranavaí precisa ter muito cuidado. Não há garantias de um novo amanhecer. “Há pouco tempo um cara que nem conheço gritou que bati na mãe dele. Eu disse que ele tava doido e corri pra dentro de um mercado. Chegando lá, falei: ‘Liga pra polícia pra nós aí, rapaz! Não sei qual é a daquele cara ali não, doido!”