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Quando Tolstói condenou a caça e a exploração de mão de obra animal
O escritor russo Liev Tolstói, um dos maiores nomes da literatura mundial, admitiu ao seu cunhado Stepan Behrs que durante a sua juventude um de seus passatempos preferidos era a caça. Quando serviu ao Exército Russo no Cáucaso, ele perseguiu raposas, lebres, cervos e javalis, até que começou a refletir sobre isso e permitiu que os animais vivessem sem qualquer intervenção de sua parte.
Em 1887, Behrs registrou em uma carta que “por compaixão, ele [Tolstói] desistiu abruptamente da caça, e me contou que não apenas perdeu completamente o seu desejo de caçar, como também se espantara por ter gostado disso anteriormente”, a considerando uma prática bárbara e incompatível com uma vida equilibrada, harmoniosa e respeitosa.
Em correspondência de 1893, Tolstói escreveu que os homens não deveriam causar sofrimento aos animais e fez questão de mencionar a Inglaterra como um país europeu que se destacava por uma “atitude poderosa” em contrariedade a isso – algo que ele atribuiu à força do humanitarismo inglês, que à época era defendido por pensadores e reformadores como Henry Salt, pioneiro dos direitos animais referenciado por Peter Singer na obra “Animal Liberation”, de 1975.
Porém, ao contrário dos muitos vegetarianos ingleses da época, com exceção daqueles que partilhavam da mesma perspectiva do vegetarianismo ético de Salt, Tolstói, que abdicou não apenas do consumo de todos os tipos de carne, mas também de leite, manteiga e ovos, escreveu que era preciso encontrar uma forma de reduzir a dependência humana dos animais como fonte de mão de obra no campo.
Behrs registrou que Tolstói ficou eufórico quando soube que máquinas estavam sendo desenvolvidas com esse propósito. Ele vislumbrou um cenário em que animais não sofreriam em decorrência de um esforço físico em benefício humano que custasse a redução de suas expectativas de vida.
“Pode-se regular os desejos de alguém por meio da moderação, restrição e trabalho árduo. O primeiro passo para reduzir essa dependência é não comer animais e não viajar sobre eles, mas sim a pé. E todos nós deveríamos começar a fazer isso agora”, registrou o escritor russo. Tolstói disse que, embora não tivesse abdicado do consumo de animais visando a sua saúde, ele percebeu inúmeros benefícios quando se limitou a uma alimentação frugal baseada em aveia, kasha, arroz, pão de centeio e sopas de vegetais.
“A confusão e, acima de tudo, a imbecilidade de nossas vidas, surge principalmente do constante estado de intoxicação em que a maioria das pessoas vive”, criticou Tolstói no ensaio “Por que os homens se entorpecem?”, publicado originalmente em 1890. Dois anos depois, Tolstói registrou no ensaio “O Primeiro Passo”, que o ser humano só cumpre o seu verdadeiro papel quando assume o compromisso de seguir uma sequência de realizações morais que são essenciais para o real estabelecimento da ordem no mundo, e isso inclui o respeito à vida independente de espécie, o autocontrole e a libertação de desejos que são nocivos a nós mesmos e aos outros.
Referências
R.F. Summers. Tolstoy and the natural world. The Vegetarian. The Vegetarian Society (Janeiro/fevereiro de 1987).
Troyat, Henri. Tolstoy. Grove Great Lives. First Grove Press Edition. Grove Press (2001).
Como Tolstói influenciou o vegetarianismo na Rússia
“O vegetarianismo, desde que não tenha a saúde como objeto, está sempre associado a um alto ponto de vista moral”
A relação de Lev Tolstói com a abstenção do consumo de carne e mais tarde com o vegetarianismo durou 25 anos, até o seu falecimento aos 82 anos na Estação de Astapovo, no Oblast de Lipetsk, em 20 de novembro de 1910. Porém o seu legado sobrevive. Depois de publicar o seu ensaio “Первая ступень” ou “O Primeiro Passo” em 1892, nem mesmo Tolstói imaginava que o seu prestígio como autor faria dele uma das personalidades mais importantes da história do vegetarianismo russo.
Sim, embora ele mesmo tivesse sido influenciado por nomes como Howard Williams, William Frey, Andrey Beketov e Vladimir Chertkov, nenhum desses nomes teria mais peso na história do vegetarianismo russo do início do século 20 quanto Tolstói. O motivo? O seu prestígio, popularidade e espiritualidade não religiosa. O escritor russo combinava o que existia de mais atrativo para o resgate de uma consciência de respeito à vida humana e não humana no contexto da cultura russa e eslava.
Além de se tornar popular entre os povos eslavos do início do século 20, “O Primeiro Passo” conquistou espaço na Europa Ocidental, tendo como porta de entrada a Inglaterra, e nos Estados Unidos, onde atraiu a atenção das principais sociedades vegetarianas. Em 1900, o movimento vegetariano russo viu uma oportunidade de um novo tipo de articulação valendo-se da imagem e do prestígio de Tolstói como um meio de divulgação e consolidação de uma propaganda em favor do vegetarianismo, inspirada em princípios semelhantes aos do britânico Henry Salt – embora abarcassem também pessoas que se enquadravam no que seria chamado mais tarde de ovolactovegetarianismo.
À época, os jornais “Vegetarianskiy Obozrenie”, que circulou em Kiev de 1909 a 1915, e o “Vegetarianskiy Vestink”, com quem Tolstói colaborava, se voltaram completamente para a filosofia de vida vegetariana; além de ajudar a fortalecer a construção social do incipiente movimento vegetariano, tendo ainda o suporte de panfletos e livros publicados por importantes intelectuais vegetarianos russos como Beketov. Na realidade, o “Vegetarianskiy Obozrenie” elevou Tolstói à posição de símbolo do jornal e frequentemente incluíam artigos de sua autoria, além de relatos de pessoas que se tornaram vegetarianas e ovolactovegetarianas por influência de Tolstói – que se absteve definitivamente do consumo de carne em 1885 junto com as filhas Tanya e Masha. Mais tarde, rejeitando outros alimentos de origem animal.
Tão logo os jornais vegetarianos se popularizaram com o amparo do escritor russo, o vegetarianismo se tornou cada vez mais bem aceito. Segundo informações do extinto “Vegetarianskiy Obozrenie”, três cafeterias de Moscou serviam refeições para pelo menos 1,3 mil pessoas em um dia comum. Além da pioneira Sociedade Vegetariana de São Petersburgo, fundada em 1901, e composta por mais de 150 membros, surgiram também as sociedades de Kiev em 1908 e de Moscou em 1909 – mudanças diretamente associadas ao crescimento do movimento apoiado por Lev Tolstói até 1910.
E o interesse não se limitou a essas cidades. Vegetarianos de localidades distantes como Saratov, Vologda e Ekaterinoslav (Dnipro), além de Odessa, Carcóvia, Poltava, Minsk e Roston do Don se articularam para criarem sociedades vegetarianas. Em 1915, 12 cidades russas contavam com sociedades vegetarianas de grande representatividade. Inclusive municipalidades que não possuíam movimentos organizados inauguraram cafeterias vegetarianas. Porém a mais antiga surgiu em Moscou em 1894, onde os proprietários se orgulhavam de expor grandes retratos de clientes como Lev Tolstói e do prestigiado pintor realista Ilya Repin, que se tornou vegetariano por influência da escritora e sufragista Natalja Borísovna Nordman-Severova.
As reuniões das sociedades e dos grupos vegetarianos, que também eram formados por reformadores sociais, geralmente eram realizadas em restaurantes e cafeterias. A Rússia nesse aspecto fazia oposição à Alemanha que naquele tempo reprovava a efervescência do vegetarianismo russo por considerá-lo “insalubre”. Em resposta a essas críticas, os russos exaltavam seus atletas vegetarianos que se destacavam pela força física e pelas habilidades esportivas.
Mesmo após a morte de Lev Tolstói em 1910, o jornal “Vegetarianskiy Obozrenie” continuou recebendo correspondências de leitores explicando como Tolstói mudou suas vidas e fez com que abandonassem o consumo de carne, se tornassem vegetarianos e passassem a respeitar mais os animais e as pessoas – considerando que Tolstói não apenas incitava o respeito aos não humanos, mas também a todos os seres humanos independente de hierarquia social. Na realidade, o autor russo passou a nutrir um grande respeito pelos camponeses nos seus últimos 30 anos, depois que rejeitou publicamente os princípios e valores aristocráticos.
Em 1913, durante o Primeiro Congresso Vegetariano Russo, o vegetarianismo foi considerado uma “filosofia de vida com um alto valor moral que só pode ser alcançado quando se busca a realização de um reino de harmonia e justiça na Terra”. Essa afirmação foi ao encontro do que foi dito por Tolstói anos antes do seu falecimento: “O vegetarianismo, desde que não tenha a saúde como objeto, está sempre associado a um alto ponto de vista moral.” Em 1913, nesse clima, Olga Konstantinovna Zelenkova publicou aquele que é considerado o primeiro livro de culinária vegetariana da história da Rússia. Intitulado “Я никого не ем” ou “Eu Não Como Ninguém”, que tem um total de 1,5 mil receitas. Proibido com a implantação do regime soviético, o livro foi relançado em 1991. Na segunda versão, além das receitas, há artigos publicados em jornais e assinados por Lev Tolstói.
Alexandra Tolstoy escreveu em “Tolstoy and the Russian Peasant”, publicado no “The Russian Review” em abril de 1960, que seu pai foi o vegetariano mais famoso e bem reconhecido da Rússia: “Embora ele não tenha escrito extensivamente sobre o tema do vegetarianismo em si, seja em sua ficção, ensaios ou correspondências, o seu nome se tornou sinônimo de vegetarianismo no século 20, tanto na Rússia como no mundo todo. Colônias agrícolas tolstoianas surgiram no início do século 20, não só na Rússia, como na Inglaterra, Holanda, Bulgária, África do Sul e Estados Unidos.” Com a morte de Tolstói, Vladimir Chertkov e Johannes van der Veer passaram a ser os principais divulgadores do seu trabalho.
Referências
Tolstoy, Alexandra. Tolstoy and the Russian Peasant. The Russian Review. Volume 19. No. 2. Páginas 150-156 (1960).
Barkas, Janet. The Vegetable Passion: A History of the Vegetarian State of Mind. Scribner; First Edition (1975).
LeBlanc, Ronald D. Vegetarianism in Russia: The Tolstoy(an) Legacy. The Carl Beck Papers in Russian and East European Studies. No. 1507 (2001).
Gregory, James. Of Victorians and Vegetarians: The Vegetarian Movement in Nineteenth-century. I.B.Tauris (2007).
Alston, Charlotte. Tolstoy and Vegetarianism (junho de 2014).
“Se ele busca uma vida boa, de forma séria e sincera, a primeira coisa de que o homem se absterá será sempre o consumo de alimentos de origem animal”
“Se ele busca uma vida boa, de forma séria e sincera, a primeira coisa de que o homem se absterá será sempre o consumo de alimentos de origem animal, porque, sem falar no estímulo às paixões provocado por esse tipo de alimento, seu consumo é verdadeiramente imoral, já que exige um ato contrário ao nosso senso moral; o assassinato, provocado apenas pela avareza e pelo desejo de gulodices.”
Tolstói em “O Primeiro Passo”, publicado em 1892.
Tolstói e Gandhi
Pouco tempo antes de falecer, Tolstói disse que preferia mais ser celebrado por suas obras voltadas à sua filosofia de vida e filosofia moral, o que incluía a sua defesa do vegetarianismo, do que pelos seus romances. Claro que o alcance de seu trabalho como romancista o levou muito mais longe em popularidade, mas de alguma forma a sua filosofia teve um impacto muito significativo. Exemplos?
“O Primeiro Passo”, de 1892, que deu origem às bases do vegetarianismo ético russo e a sua obra “O Reino de Deus está em vós”, de 1894, que traz uma abordagem espiritual não dogmática e que teve grande influência sobre a juventude de Gandhi, tanto que depois ele fundou nas imediações de Joanesburgo, na África do Sul, a Fazenda Tolstói. Gandhi, que foi influenciado pelos ensaios de não violência de Tolstói, que incluía animais humanos e não humanos, se considerava um tolstoiano. Esse é um dos assuntos que faz parte do meu longo artigo sobre a história de Tolstói com o vegetarianismo.
Liev Tolstói e o primeiro passo para o vegetarianismo
No ensaio “Первая ступень” ou “O primeiro Passo“, publicado em 1892, o escritor russo Liev Tolstói, autor de clássicos como “Guerra e Paz” e “Anna Karenina”, aborda a sua simpatia pelo vegetarianismo enquanto uma filosofia de vida de viés moral. Inclusive narra algumas histórias que o motivaram a tornar-se vegetariano. Ele também discute as implicações do consumo de carne e explica por que considera a exploração animal uma prática que endossa a violência. Usa como referência exemplos de visitas que realizou a matadouros em Tula, ao sul de Moscou. À época, o que o motivou a entender como funciona a indústria da exploração animal foi o livro “Ethics of Diet“, do britânico Howard Williams, publicado em 1883.
Para ler uma versão traduzida do ensaio, clique neste link.
Tolstói: “Não ouçam os médicos antigos que preconizam o uso da carne, porque o fazem unicamente por teimosia”
Quando Liev Tolstói foi questionado sobre o motivo pelo qual ele acreditava que a privação da carne é a primeira etapa para a vida moral, o escritor russo disse que a resposta poderia ser encontrada no livro “The Ethics of Diet”, de autoria do inglês Howard Williams, lançado em 1883.
Segundo Tolstói, a obra representa não apenas a voz de um homem, mas da humanidade, na pessoa de seus melhores representantes desde que chegamos ao que ele chama de idade da razão. Em seu ensaio “O Primeiro Passo”, publicado em 1892, o escritor russo justificou que embora a imoralidade da alimentação de origem animal seja conhecida, a verdade é que ela continua sendo ignorada porque a maioria prefere não confrontar a sua própria consciência moral.
“O movimento moralizador que constitui a base de todo progresso se cumpre sempre lentamente. […] Tal é o movimento vegetariano; este movimento está expresso tão bem por todos os escritos que se incluem no livro citado [The Ethics of Diet], como pela existência da própria humanidade, a qual tende mais e mais, sem que sequer o perceba, a passar da alimentação animal ao regime vegetal, e este movimento se manifesta com uma força particular e consciente no vegetarianismo, que adquire cada vez maior extensão”, escreveu Liev Tolstói.
O escritor fez essa otimista observação depois de ver a evolução do movimento vegetariano, principalmente na Inglaterra, Alemanha e Estados Unidos, onde, no início do século 20, já crescia o número de pousadas e hotéis vegetarianos. Para Tolstói, o vegetarianismo é um sinal da aspiração séria e sincera da humanidade em direção à perfeição moral. Poetizando os desígnios do vegetarianismo, comparou a alegria em ver a evolução do movimento com o exemplo de um homem disposto a alcançar gradualmente o andar mais alto de um edifício.
Para o escritor russo, o melhor caminho é o mais simples, ou seja, é preciso começar subindo o primeiro degrau da escada. “Aqueles que duvidam disso, leiam os numerosos livros escritos por médicos e sábios. Eles provam que a carne não é necessária como alimento. Não ouçam os médicos antigos que preconizam o uso da carne, porque a preconizaram seus antecessores; e o fazem unicamente por teimosia […]”, criticou.
Referência
Tolstói, Liev. O Primeiro Passo (1892).
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Tolstói: “Às vezes, o açougueiro não acertava direito o golpe e o boi resistia e mugia enquanto jorrava sangue”
“Ninguém se importava se era uma boa ou má ação matar aqueles bois”
Em um dia quente de julho, uma sexta-feira, o escritor Liev Tolstói visitou mais um matadouro em Tula, ao sul de Moscou. Sentiu um odor de sangue ainda mais intenso do que da última vez. O trabalho dos açougueiros prosseguia, e ele observava o pátio cheio de gado. Também havia animais nos galpões adjacentes ao prédio central. Carretas e mais carretas carregadas de bois, vacas e bezerros chegavam ao matadouro.
Em alguns carros puxados por cavalos, ele viu bezerros vivos empilhados com as patas para cima. Os veículos se aproximavam do matadouro e descarregavam. “Havia ainda outros carros com bois mortos, cujas patas se moviam conforme as sacudidas do veículo. Mostravam suas cabeças inertes, seus pulmões vermelhos e o fígado marrom. Todos saíam do matadouro. Junto à cerca, havia cavalos montados, que pertenciam aos fazendeiros. Estes, com suas longas blusas e de chicote à mão, iam e vinham pelo pátio, ou marcavam com alcatrão o gado que lhes pertencia”, escreveu Tolstói.
Depois de negociar o preço, os fazendeiros vigiavam o transporte do gado do pátio até o galpão, e de lá até o prédio. Todos pareciam preocupados por causa das negociações. Ninguém se importava se era uma boa ou má ação matar aqueles bois. Se importavam tanto com isso quanto com a composição química do sangue que escorria pelo chão”, lamentou o escritor russo.
Não havia nenhum açougueiro no pátio. Todos trabalhavam. Ao final do dia, tinham matado pelo menos cem bois. Tolstói entrou no prédio central e ficou junto à porta. Ele não poderia entrar porque não havia espaço. Enquanto o gado se amontoava, o sangue gotejava do teto, espirrando nos açougueiros. “Se eu tivesse entrado, também mancharia minha roupa”, enfatizou.
O escritor russo testemunhou um dos homens derrubando um boi enquanto outro animal deslizava por uma das pistas. No mesmo local, um boi com as patas brancas já não agonizava. Morto, era esfolado por um açougueiro. Pela porta oposta, passava um boi vermelho e gordo. Ele resistia enquanto o arrastavam. Mal chegou à entrada, e um açougueiro o golpeou no pescoço com um machado.
Caiu pesadamente no chão, voltou-se de lado e moveu convulsivamente as patas e o rabo. Logo outro açougueiro se lançou sobre ele, pegou-lhe pelos chifres, e fez com que sua cabeça ficasse rente ao chão para que outro açougueiro o degolasse. Pela ferida aberta, o sangue vermelho escuro brotava como de uma fonte, e um menino sujo de sangue o recolhia com uma bacia de metal. Apesar de tudo, o boi se esforçava para não morrer. Não parava de se mover, sacudindo a cabeça e agitando involuntariamente as patas.
“A bacia enchia rapidamente, mas o boi estava vivo e continuava golpeando o ar com os cascos, o que obrigava os açougueiros a afastarem-se. Tão logo a bacia encheu, o rapaz a colocou na cabeça e a levou para a fábrica de albumina, enquanto outro menino trouxe outra bacia”, registrou Tolstói.
O boi esperneava desesperadamente. Quando cessou de correr o sangue, o açougueiro levantou a cabeça do boi e começou a esfolá-lo. O animal não tinha morrido. “Tinha a cabeça já esfolada e vermelha, com veias brancas. Sua pele pendia dos dois lados, e o boi não cessava de mover-se. Outro açougueiro pegou o boi por uma pata, a quebrou e a cortou: o ventre e as outras pernas continuavam estremecendo convulsivamente”, testemunhou o escritor russo.
Sem demora, alguns homens lhe cortaram os membros restantes e os lançaram em um monte, onde já havia muitos membros de animais. Depois arrastaram o boi, já sem vida, até a polia e o penduraram. Da mesma forma, morreram outros três bois. Todos passaram pelo mesmo processo; cortaram suas cabeças, cujas línguas pendiam entre os dentes. Às vezes, o açougueiro não acertava direito o golpe e o boi resistia e mugia enquanto jorrava sangue. Se esforçava para escapar de suas mãos. Sem chance, o arrastavam ao centro do prédio e o golpeavam até cair.
“De perto, vi repetir a mesma operação, e de que maneira se obrigava os animais a entrar. Cada vez que pegavam um boi do galpão e o arrastavam por meio de uma corda amarrada aos chifres, o animal, farejando sangue, resistia, mugia e retrocedia. Dois homens não conseguiram arrastá-lo à força. Então um dos açougueiros se aproximou, pegou o boi pelo rabo, o torceu e rompeu-lhe uma vértebra. O animal avançou temeroso. Quando terminaram de matar os bois de um pecuarista, deram início ao abate dos animais de outro”, confidenciou o escritor russo Liev Tolstói.
Referência
Tolstói, Liev. O Primeiro Passo (1892).
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Tolstói: “Já que se come carne, é preciso ver como se matam os bois”
Em uma sexta-feira, o escritor russo Liev Tolstói foi a Tula, ao sul de Moscou, encontrar um amigo que ele considerava bondoso e sensível. Durante a conversa, pediu que o acompanhasse até um matadouro. O homem concordou em conhecer as instalações, inclusive admitindo curiosidade, porém deixou claro que não entraria no local se os animais estivessem sendo abatidos. “E por que não? Precisamente, é isso que quero ver. Já que se come carne, é preciso ver como se matam os bois”, argumentou Tolstói.
O amigo, que também era caçador, logo um matador, declinou a proposta, mas acabou concordando. Quando chegaram ao matadouro, notaram um odor intenso e repugnante de putrefação. O mau cheiro aumentava conforme eles se aproximavam do edifício de tijolos vermelhos com cúpulas e longas chaminés.
“Entramos pela porta da garagem. À direita, há um grande pátio cercado, que tem uma área de um quarto de hectare. Ali é onde duas vezes por semana amontoam o gado vendido. A portaria fica na extremidade desse pátio. À esquerda, há dois prédios com portas ogivais. O pavimento é de asfalto, forma um duplo declive; e contém aparatos para pendurar os bois mortos”, informou o escritor russo.
Diante da portaria, eles viram seis açougueiros sentados. Estavam com os aventais ensanguentados e as mangas arregaçadas, exibindo braços musculosos. Como o expediente terminara há 30 minutos, eles descansavam. As portas abertas do matadouro ajudavam a amplificar o odor nauseante de sangue quente. Lá, viram um pavimento turvo e brilhante. Em suas valas, havia sangue coagulado.
“Um dos açougueiros nos explicou de que modo se mata, e nos mostrou o lugar em que acontece tal operação. Não a compreendi de todo, mas ao contrário do que eu pensava, a realidade teve mais impacto sobre mim do que a minha imaginação”, admitiu Liev Tolstói.
Referência
Tolstói, Liev. O Primeiro Passo (1892).
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Tolstói: “Sentia desejos de visitar os matadouros, para assegurar-me por mim mesmo da essência do problema de que se fala quando se trata do vegetarianismo”
No ensaio “O primeiro Passo“, o escritor russo Liev Tolstói, autor de clássicos como “Guerra e Paz” e “Anna Karenina”, fala de sua simpatia pelo vegetarianismo enquanto uma filosofia de vida de viés moral. Inclusive narra algumas histórias que o motivaram a tornar-se vegetariano.
Na obra, ele conta que decidiu visitar Tula, ao sul de Moscou, quando falaram-lhe que os matadouros da localidade, seguindo o exemplo das grandes cidades, colocaram em prática um novo sistema, em que os animais sofriam o mínimo possível antes de serem mortos.
À época, o que o motivou a entender como funciona a indústria da exploração animal foi o livro “Ethics of Diet“, do britânico Howard Williams, publicado em 1883.
“Sentia desejos de visitar os matadouros, para assegurar-me por mim mesmo da essência do problema de que se fala quando se trata do vegetarianismo; mas me ocorria algo parecido a o que se nota quando se sabe que se vai experimentar um sofrimento agudo que ninguém pode impedir. Adiava sempre minha visita.
Mas recentemente encontrei no caminho um abatedor que ia a Tula. Era um trabalhador pouco hábil e sua tarefa consistia em amarrar os animais. Perguntei-lhe se não lhe davam pena os bovinos.
— O que obteria com isso? De qualquer forma, tenho que matá-los.
Mas quando lhe disse que não é necessário comer carne, a qual constitui um alimento de luxo, concordou comigo que verdadeiramente era de sentir.
— Mas o que fazer? É preciso ganhar a vida. Antes, temia matar: meu pai não matou jamais nem uma galinha.
De fato, à maioria dos russos lhes repugna matar, sentem piedade, e expressam tal sentimento pela palavra “temor”. Ele também temia, mas deixou de temer, e me explicou que a sexta-feira era o dia de mais trabalho.
Tive recentemente uma conversa com um soldado, açougueiro, que também se admirou ao dizer-lhe eu que era uma lástima matar. Contestou-me que é um costume necessário; mas finalmente, concordou que dá pena, e acrescentou:
— Sobretudo quando o boi se encontra resignado e manso, quando vai ao abate com toda confiança. Sim, inspira muita piedade.
É horrível! Horríveis são, de fato, não os sofrimentos e a morte dos bovinos, mas o fato de que o homem, sem nenhuma necessidade, cale seu sentimento elevado de simpatia por seres vivos como ele, e seja cruel vencendo sua repugnância. Quão profunda é no coração do homem a proibição de matar a um ser vivo!”
“O primeiro Passo” foi escrito originalmente em 1892.
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Tolstói: “O porco gritava de um modo desesperado, com gritos que pareciam humanos”
Entramos numa aldeia, e vimos, com perdão seja dito, um porco engordado, branco rosado, que pegaram em uma casa para matá-lo. O porco gritava de um modo desesperado, com gritos que pareciam humanos. No momento preciso que passávamos por ali, começaram a degolá-lo.
Um homem cravou-lhe a faca na garganta. Os grunhidos do porco foram mais fortes e agudos; o animal escapou, mas o seu sangue escorria. Sou míope, e não vi todos os detalhes da cena: vi unicamente um corpo rosado como o de um homem e ouvi os grunhidos desesperados. O carroceiro observava tudo aquilo sem afastar a vista. Pegaram de volta o porco, o derrubaram e o submeteram.
Quando cessaram seus gritos, o carroceiro lançou um profundo suspiro:
— Como pode Deus permitir isso?
Tal exclamação demonstra o profundo asco que inspira ao homem a matança. Mas o exemplo, o costume da voracidade, a afirmação de que Deus admite tais coisas, fazem com que os homens percam por completa esse sentimento natural.
Liev Tolstói, O Primeiro Passo, página 20, publicado originalmente em 1883, como prefácio de A Ética da Dieta, de Howard Williams.
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