David Arioch – Jornalismo Cultural

Jornalismo Cultural

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Um corpo que padece

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Parei de andar tem alguns meses, logo que meu corpo assumiu o controle da minha vida

(Arte: Mindcage, de Rodrigo Aviles)

“Continuo sem me mover e só consigo pensar na última vez em que fiquei em pé” (Arte: Mindcage, de Rodrigo Aviles)

Acordei um dia e percebi que meu corpo já não era meu. Tentei me movimentar na cama e não adiantou. Eu pertencia a ele, mas ele não me pertencia. Então continuei deitado observando o teto em meio à escuridão plangente. Havia traços disformes e oscilantes. Não! Mais do que isso! Uma imundície densa e clara que me lembrou aquelas medonhas bactérias que vi nas aulas de biologia na adolescência.

Eu nunca tinha reparado como o forro podia ser tão sujo. Acho que concentra a medula da nossa podridão. Ou será que era minha imaginação? Talvez eu fosse a própria bactéria, agraciada com uma visão panorâmica de mim mesmo. Vai saber! A verdade é que minha respiração continuava fétida e ruidosa. Como era horrível! Meu nariz simulava um aterro sanitário, espalhando chorume a cada expirada. E o que escorria dele eu nem sentia ou via. Afinal, desse espetáculo repulsivo que usava meu corpo como palco, fui relegado a mero espectador.

Como me esforcei para silenciar minha mente. Claro que não consegui! Fechei os olhos por alguns minutos e a temperatura do ambiente caiu para cinco ou seis graus Celsius. Tremi mais de ódio do que de frio. Eu estava coberto com um edredom branco, velho e encardido, com algumas manchas amareladas – rodelas de mijo que o maldito do gato do vizinho deixou de presente quando invadiu meu guarda-roupas. Que lazarento!

Tudo bem! Logo esqueci do bichano e quis me levantar para dar uma lição na mãe natureza. Como eu queria arrastá-la pelos cabelos. Quem sabe a cada chumaço arrancado ela subisse um grau de temperatura. Com 15 chumaços, eu a deixaria parcialmente careca e teria 20 ou 21 graus. E que vitória! Ainda poderia usar aqueles cabelos para fazer um espanador ou uma pequena cortina para um teatrinho de bonecos.

Rinite, bronquite e sinusite, sinusite, bronquite e rinite, difícil descobrir quem queria me ferrar mais. Bah! Quero enganar a quem? Fumei mesmo! E fumei muito! Chegando a quatro maços por dia! Eu era uma chaminé mais eficaz do que qualquer Maria Fumaça já vista. Sou o maior colecionador de doenças pulmonares que este mundo desconhece. Eu deveria estar no Guinness Book! Segurando o meu maior troféu, o único pulmão que me restou, tão preto que parece sobejo de carvão pós-churrasco.

E daí? Meus dentes eram tão louros, e meu hálito tão fedegoso que eu poderia fazer cosplay do Beetlejuice. Eu adorava jogar fumaça na cara dos outros, principalmente de quem desprezava fumantes. Eu chegava pertinho, como quem não queria nada, concentrava bem a fumaça e a soltava bem na hora que alguém abria a boca para falar alguma coisa. Daí era só falsear expressão de constrangimento – um par de olhos arregalados, uma respirada profunda e uma inclinada de cabeça, pedir desculpas e me afastar. Me diverti muito quando não existia ambiente para não fumantes. Ah! Deixa pra lá…Não quero mais falar disso!

Olhe! Nunca tinha reparado como o forro ganha desenhos tracejados na madrugada. São como lombrigas abjetas que dominam os bastidores da casa. Acho que também sou uma porque já não sinto mais minhas vértebras. Me resumo a uma matéria modorrenta e estiolada. Quem sabe tudo que vejo e desprezo seja em alguma proporção uma representação de mim mesmo.

Fiquei imaginando quantos bichos tétricos e horrendos não habitam este lugar noite após noite. Aposto que se eu derrubasse tudo encontraria centenas de animais sem nome, jamais catalogados. Seres que só existem por poucas horas da madrugada, quando confundimos realidade, sonho e pesadelo. Pode ser que se alimentem de esperanças, devaneios e reflexões prolongadas.

Certo! Continuo sem me mover e só consigo pensar na última vez em que fiquei em pé. Me parecia tão irrelevante, inútil. “Cuidado com a coluna, postura ereta, um passo após o outro”, quanta tolice! Eu só queria sentar e deitar, deitar e sentar. Talvez eu tivesse nascido para ser um tatu-bola. Só que rolar também exige tanto esforço que sinto calafrios só de imaginar. E a pressão abdominal na hora de girar? Triste e dolorosa! Ser uma lesma é igualmente desprezível porque sou impaciente e quero tudo na hora. Bom, não me sinto representado por nenhum animal, racional ou não.

Como gosto de comida! Me alimentei tão mal a minha vida toda e isso me proporcionava o mais insólito dos prazeres. Onde havia alguém se alimentando corretamente, eu me aproximava e sentava ao lado. Queria que a pessoa ficasse incomodada com a minha presença. Eu era um despertador de reações sorumbáticas. Eu queria chocá-la, vê-la siderada pelos meus maus hábitos.

“Isto! Este sou eu! E sou contra tudo aquilo em que você acredita. Estou aqui como a prova cabal de que o mundo não pertence a vocês. A ditadura da saúde não vai prevalecer. Ainda somos maioria e não seremos derrotados. Eu não permitirei! Nunca! Nunca! Veja! Olhe o tamanho dele, quanta gordura! Pedi que a atendente colocasse mais 200 gramas de bacon e 200 gramas de queijo cheddar. Quanto mais industrializado, melhor! Exigi o triplo de gordura trans! Observe! Observe o óleo escorrendo pelas rebarbas do meu lanche. Tem tanto óleo que poderemos fritar batata dentro da minha boca depois que eu comê-lo. Você aceita?”, sugeri, exibindo meus dentes saburrentos e caramelizados pelos churros que comi antes como aperitivo. Chocada, a moça ao meu lado na praça de alimentação levantou-se e foi embora sem dizer palavra.

Atividades físicas? Eu as desprezei desde o primeiro dia que as vi! Em qualquer lugar por onde eu passasse, se alguém me convidasse para me exercitar, eu não pensava duas vezes antes de mandar às favas. Que desaforo! Para os diabos com essa baboseira! Viverei e morrerei como quiser! Para que ficar em pé, caminhar ou correr? Odeio tudo isso com todas as minhas forças! Não acredito nem mesmo que fomos feitos para andar! De quem foi essa ideia? Tomara que o morfético tenha morrido brutalmente!

Pensando em bípedes e quadrúpedes, como eu adorava carne! Comia mais de 15 quilos por semana, até que contraí aterosclerose. Beleza! O que está feito está feito. Só que não há como negar que foi uma das melhores fases da minha vida. Quando eu andava pelo centro da cidade, as pessoas achavam que estavam próximas de um açougue ou matadouro. Não! Não havia nada do tipo por perto. Era a fragrância natural exalada pelo meu corpo. “Que cheiro de carne crua, de onde vem isso?”, “Nossa! Que fedor de vaca morta!”, “Acho que tem um açougue novo por perto”, ouvia.

As bebedeiras constantes também marcaram a minha vida. Claro! Eu dizia que era um socialzinho. Haha! Bobo de quem acreditasse. O que eu bebia três vezes por semana era o que muitos não consumiam em um mês. Eu precisava ser bom no que fazia. Por isso descobri um método eficaz para ampliar a minha tolerância ao álcool. Claro que não vou dizer qual é! Sim! Fui bem longe, tão longe que meu fígado não teve condições de me acompanhar. Hoje vivemos em lugares separados.

Agora me veio à mente as lembranças da minha transformação. Parei de andar tem alguns meses, logo que meu corpo assumiu o controle da minha vida. Se manifestava sobre onde queria ir e quando. Tão caprichoso, genioso! Caso não gostasse da ideia, ele travava como um brinquedo com pilha gasta. Será que é vingativo? Pois é! Como pode ser tão odioso? Na semana passada, permitiu pela última vez que eu movimentasse a perna direita e o braço esquerdo.

Continuo observando o forro, atento a duas lagartixas que se alimentam de um besouro. Apoiado sobre a janela aberta, o gato endiabrado do vizinho, com as orelhas mirando a lua cheia, lambe as próprias patas e as observa. Me recordo do Escaravelho do Diabo, tão valioso e tão inútil, assim como é a vida para tanta gente. Me sinto cansado, alheio ao meu corpo. Meus olhos se fecham e reconheço que não sou mais humano, somente presa de quem fui predador. “Que o teu corpo não seja a primeira cova do teu esqueleto”, escreveu Jean Giraudoux no livro Notes Et Maximes, Le Sport, de 1928.

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A tempestade de fuligem

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Ela era artista e obra, uma autora travessa que aprendeu a se guiar pelo vento

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Escura e minúscula parecia livre para fazer o que quisesse no seu mundo corrente (Foto: Reprodução)

Foi num dia de clima ameno que cheguei em casa no final da tarde e encontrei a garagem e as roupas no varal cobertas de fuligem da queimada de cana-de-açúcar. A forma como se moviam pelo espaço me dava a impressão de que eu estava diante dos vestígios de uma tempestade caliginosa, flexuosa e suja.

A fuligem serpentava pelo ar de forma zombeteira. Quando eu tentava tocá-la, ela desviava com agilidade e se fixava em alguma coisa que ingênuo eu me esforçava para proteger. Havia sujeira por todos os lados. Sem constrição, a fuligem grafitava tudo que pelo caminho encontrava.

Ela era artista e obra, uma autora travessa que aprendeu a se guiar pelo vento. Podia ser tocada em sua minúcia, mas nunca possuída, porque depois que nascia a mais ninguém ela pertencia. Escura e minúscula parecia livre para fazer o que quisesse no seu mundo corrente.

Meu carro branco e asseado ficou encarvoado quando a conheceu. Sem condições de se mover, testemunhou o vento especioso transportando tanta fuligem que até o sol desapareceu atrás das sombras massificadas de imundície. O brilho da lataria sumiu, embaciado pela soberania malemolente da falsa plumbagina.

Esfreguei o dedo no capô e notei uma mixórdia de cinzas e grafite de baixa qualidade que se desvaneceu sob o meu indicador direito. Para minha surpresa ainda preservava o aroma de cana-de-açúcar crestada. Repousando no seco, ela se arrastava como alguém que engatinhava. E agarrada ao úmido ou molhado, a fuligem se dissolvia, criando desenhos nem sempre incompreensíveis ou vazios em sentido.

No centro de uma camiseta branca que brandia sobre o varal, vi o adunco formato de uma mão diminuta e estriada. Tinha até unhas carcomidas, e algumas eram mais encardidas que as outras. Cheguei a crer que a fuligem possuía sua própria memória, uma lembrança perene do momento em que se desprendeu da cana-de-açúcar para sumir na imensidão do céu e da aragem outonal.

Talvez fosse a mais depreciativa das Fênix, já que ela renascia das cinzas e quase como cinzas, sem o direito de transformar-se em algo belo, bom e frutuoso que as pessoas pudessem gostar de assistir ou aspirar. Rebento do palhiço de cana, nasceu feinha e sem motivação existencial.

Gestada no borralho, a fuligem percorria dezenas de quilômetros até chegar ao seu destino – residências da área urbana, inclusive de pessoas que nem sabiam que ela existia. Aquela era sua sina, a curta vida de quem despontou casmurrada pela queimada. Não a culpo pela indisciplina. Deve ser horrível acordar sentindo algo quente te obrigando a partir.

Mergulhei dentro da minha mente e assisti seu primeiro voo, tímido e lânguido. Soprada para longe, obedeceu sem questionar a ordem natural das coisas. Apesar de tudo, sentiu o frescor remanescente do verde que se extinguia a dezenas de metros de distância do solo. A fuligem se esforçou para chorar, vendo-se tão turva e uniforme quanto insignificante. Se contorceu no ar, mas de nada adiantou. Relegada a uma existência estéril, era mais seca que a mais contumaz das estiagens.

Encolerizada por não ter direito a nada, e ciente de que não duraria mais do que horas e, com muita sorte, alguns dias, se insurgiu contra o seu fado. Fez um acordo com o vento, prometendo reverenciá-lo como um deus se ele a ajudasse a ir o mais longe possível em sua zaragata. Ele concordou.

Depois de se transformar em tempestade, a aragem a arrastou. Com sua força nímia e sobranceira, condensou toda a fuligem do canavial, criando uma pequena e turva réplica da lua. Num percurso de dezenas de quilômetros, a esfera se desfez e seus fragmentos seguiram pelas mais diferentes direções – atravessando pastos, lavouras, vilas, distritos e cidades da região de Paranavaí.

Naquele dia, a fuligem invadiu a Rua John Kennedy, cruzou o céu da minha casa e deixou centenas de vestígios indesejáveis, acompanhados de um som cicioso que imitava o tinir dos facões. O aroma de cana-de-açúcar ainda persistia. E por um descuido, enquanto eu decidia o que fazer, a fuligem entrou no meu nariz e eu a inalei. Mais tarde senti uma queimação no peito. Tive a impressão de que algo insólito estava vivo dentro de mim e se movendo.

Fui ao médico no dia seguinte e na mesma semana fiz alguns exames. Ele me mostrou que havia uma mancha estranha que se distendia sobre um dos meus pulmões. Não nego que senti um misto de preocupação, raiva e tristeza. “Tenho quase certeza de que são vestígios de monóxido de nitrogênio, dióxido de nitrogênio, dióxido de carbono e amônia. Precisamos cuidar disso, porque senão rapidamente pode virar asma, câncer de pulmão ou até peniano”, alertou o pneumologista.

“Senti a morte despedaçar-se de encontro à minha cabeça, como se um bólide houvesse caído do espaço e fosse escolher justamente o meu crânio para campo de pouso”, escreveu Campos de Carvalho em “A Lua vem da Ásia”. Na segunda e na terceira bateria de exames, realizadas no mês seguinte, não havia mais nada em meus pulmões. Então me recordei que 15 dias antes um prolongado espirro me proporcionou uma ímpar sensação de alívio. E o que saiu do meu nariz não era claro como a água, mas turvo como o vácuo da inexistência.

Chegando em casa, deitei na cama e percebi através da janela que do outro lado repousava uma nova mancha de fuligem na parede – parecia uma sarça ardente. Caí no sono, pensando apenas em outra passagem de Campos de Carvalho. “À noite a lua vem da Ásia, mas pode não vir, o que demonstra que nem tudo neste mundo é perfeito.”

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A chuva cativa sobre a colina

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Irritado, desci a colina gelado, numa torrente que se alongava e se dispersava por todo lado

Me vi em um final de tarde em um casarão de madeira no alto de uma colina (Arte: Gino Masini)

Me vi em um final de tarde em um casarão no alto de uma colina (Arte: Gino Masini)

Desde criança, tenho sonhos incomuns, abstratos e talvez absurdos para quem gosta de defini-los como sinais, revelações ou tormentos. Na noite passada, por exemplo, assim que dormi me vi em um final de tarde em um casarão de madeira no alto de uma colina. Perto de mim, uma bruma morna envolvia crianças e animais que celebravam o Dia de Cosme e Damião em um vilarejo livre de adultos.

Empolgadas, elas gritavam e corriam por todos os lados numa balbúrdia incessante que vinha de um ponto mais baixo, onde a grama tornada seca tinha aspecto embusteiro de palha dourada – e se movia como pés e mãos de espantalhos disformes que gargalhavam sem boca sob as formas do sopro do vento.

Praticamente imóvel, eu observava a movimentação em meio a uma miríade de ventarolas de papel que balouçavam presas às cordinhas de varal. As dezenas de crianças sorriam e giravam em grandes círculos. O ato era simulado por cães e gatos enquanto balas, pirulitos e outros tipos de doces caíam do céu como chuva paulatina. Os picolés derretiam antes de tocarem a grama, se desfazendo como suco embrulhado. Pincelavam os corpos e as cabeças dos pequenos que tentavam em vão agarrar os palitos nus. Era como creolina em roupa. Grudava, se fixava, temendo o próprio fim.

Eu não interagia. Continuava no mesmo lugar, na minha inércia, observando tudo, sóbrio, mas alheio à consciência do tempo e da minha própria condição existencial. Eu era como um nada que antes fluía inidentificável. Na realidade, eu era a chuva que presa e reduzida a um compartimento do telhado acabou privada de tocar o chão, substituída por uma infinidade de doces.

Era injusto comigo que nasci para sentir a terra, umedecê-la e vivificá-la. Ela sempre corava em minha presença. Amolecia, me abraçava e me deixava penetrar em suas entranhas, onde eu poderia desaparecer ou me enredar pelo lençol freático, correndo junto de águas caudalosas. Uma aventura em tanto! Ela me aquecia e eu a esfriava, e aquilo fazia de nossa relação a mais poética das simbioses.

Deixei de ser onipresente naquele Dia de Cosme e Damião, não sei se por unção ou punição a pagão. E isso também pouco importava para quem numa condição limitada somente ansiava, titubeava diante da torrente cálida do sol que o mundo das crianças inebriava. Havia aroma dulcificado por todos os lados, anestesiando até meus sentidos inominados.

De repente, um silêncio solene se instaurou. Todos se calaram para ouvir o som da terra que se intensificou. “O que será que vem agora?”, refleti em confinamento. Depois vi doces brotando do chão. Alguns eram expelidos enquanto outros se descolavam de galhos minúsculos e retraídos sobre caules diminutos.

A cena que se repetiu muitas vezes em vários pontos do vilarejo deixou as crianças ensandecidas. Corriam tresloucadas, atropelando as esculturas de Cosme e Damião que ficavam pelo caminho. Já não representavam a elas mais do que obstáculos. Enquanto digladiavam pelos doces, saltando e golpeando, arrancando com violência as plantinhas que se encolhiam e tremiam curvadas sobre o solo, os cacos de gesso dos irmãos gêmeos voavam pelo chão, formando um caminho encascalhado de profanação.

As brincadeiras findaram, e como selvagens as crianças no chão se debruçaram. Comiam, comiam e comiam sem pestanejar, até que passando mal começaram a soluçar. Mesmo os mais escanifrados ganharam barrigas esféricas como enormes balões. Não conseguiam caminhar, e rolavam e choravam sobre a terra cada vez mais calcinada que o dorso queimava. Alguns resistiam e tentavam correr sobre as pontas dos pés nus, sem direção ou propósito – fuga pela fuga ou échapper par la fuite, como dizem os franceses.

Infindáveis, doces continuavam brotando do chão. Logo centenas de abelhas se aproximaram para polinizar as pequenas plantas que cresciam vertiginosamente. O calor seguiu aumentando. Em estado líquido, eu nada sentia. As crianças sedentas, vencidas pela hiperglicemia, berravam e praguejavam porque não havia água em nenhum lugar de fácil acesso. Encolerizadas com a gritaria, as abelhas abandonaram a polinização para perseguir e atacar os pequenos.

Uma garotinha cercada pelo enxame ficou dourada como a grama queimada, parando de correr e até de se mover. Estática, não tinha ferida, mas parecia sem vida, e seus olhos lembravam bolinhas recheadas de mel que traziam na íris o talhe de um anel. Ouvi alguém batendo na porta do casarão que me abrigava, enquanto o chão, rendido pela mais severa estiagem, rachava.

“Por favor, deixa a gente entrar! Por favor!”, gritavam dezenas de crianças em uníssono. Sem mãos e pernas, o que eu poderia fazer? Não havia ninguém além de mim no casarão. Uma a uma, elas caíram no chão, vitimadas por calor, sede e torpor. Resfolegavam com dificuldade, até que consumido por agitação sobrenatural tentei me desprender da calha entupida. Não consegui e chorei, multiplicando minhas águas e arrastando comigo tudo que me segurava.

Irritado, desci a colina gelado, numa torrente que se alongava e se dispersava por todo lado. Assim que me lancei sobre as crianças, lavando o corpo e a face, elas despertaram e se levantaram. Observaram o céu desanuviado e reconheceram que o mormaço tinha se dissipado. Abriram a boca e beberam a água límpida e fresca que caía em forma de chuva comunesca. Sim, as abelhas também sumiram, e com elas o chão eivado e os doces. O que restava era a vida que resistia consorte e gentia.

O chamado dos animais

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Se transformaram em uma porquinha eufórica que grunhia e girava em torno do próprio rabo

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Era um porquinho landrace que percorria meu rosto com a língua (Arte: Cari Humphry)

Ainda tenho fresca na minha memória a lembrança da última vez em que comi carne. Me ofereceram um lanche, o que eu passava até meses sem comer, e aceitei. Afinal, era uma sexta-feira à noite. “Tudo bem, é só hoje”, pensei. Mordi sem pressa e sem o prazer de outrora o alimento que trazia uma variedade de carnes – filé de frango, hambúrguer e pedacinhos de bacon. Era enorme e mal cabia nas minhas mãos, embora elas não sejam pequenas.

Depois de comer, observei o papel branco que envolvia o lanche. O enrolei e o joguei na lixeira. Há muito tempo me acostumei a não comer demais porque não vejo sentido em ir além das minhas necessidades. Sentado, perdi o interesse em continuar lendo um livro que até então invadia meus pensamentos e divagações. Me senti inchado, não pela quantidade de alimento que ingeri, mas por algum motivador que acredito ser biologicamente inexplicável. De súbito, minha boca ficou azeda como se tivesse recebido uma dose de fel. Fui até o meu quarto, me olhei no espelho e não me reconheci. Meus olhos estavam translúcidos e dentro deles vi algo se movendo repentinamente, como que motivado por um descomedido desconforto.

Levei as mãos ao meu abdômen e notei que minha barriga chapada tinha se tornado irreconhecível, disforme e malemolente. Involuntariamente, se distendia numa ocultação criteriosa. Era incompreensível porque não comi tanto. Quando voltei a atenção ao meu rosto no espelho, havia alguns riscos carminados nas escleróticas. Fechei os olhos por um momento e quando os abri tinham se desvanecido. O mesmo aconteceu com as marcas que surgiram na minha barriga, lembrando toques de uma pata. “Que coisa mais estranha! O que está acontecendo comigo?”, me questionei assustado.

Desliguei o computador, apaguei a luz e deitei na cama. Eu estava cansado e o sono prosseguia distante do meu desejo. Fiquei observando o teto e notei que ele se movia aos poucos. Não poderia ser tontura porque minha noção espacial persistia precisa. Ao meu lado, eu enxergava tudo com exímia clareza. Assim que o teto se abriu, como se fosse deslocado de lugar, sem causar qualquer tipo de barulho, desordem ou sujeira, a chuva fresca se lançou diligente sobre mim. Me movimentei sobre a cama com a ligeireza de quem está sofrendo de espasmo hípnico. Em pé e hipnotizado pelo céu enluarado que iluminava meu quarto com uma luz cerúlea, continuei calado, inerte.

A beleza da madrugada outonal que ofertava um aroma variegado de folhas e flores foi ofuscada pelo miasma trazido por uma vaquinha voadora com focinho de porco e pés de galinha. Apesar de tudo, era um animal lindo na sua singularidade desarmônica. Me recordei das pinturas de Corine Perier e Chris Buzelli. A diferença era que elas não tinham cheiro de morte. Quando a vaquinha pousou ao meu lado, a pestilência se intensificou. “Nem bebo! Que bizarrice é essa? Será que estou pirando?”, refleti. Ela ficou me observando sem emitir som. Seus olhos se agigantavam e em seguida diminuíam. Parecia um coração pulsando. E o fedor só aumentando. De repente, deu um mugido misturado com cacarejo e grunhido. Então se inclinou para que eu massageasse sua cabeça.

Um deles pulou no meu travesseiro e começou a piar, como se quisesse alguma coisa (Arte: Dan Kosmayer)

Um deles pulou no meu travesseiro e começou a piar como se quisesse alguma coisa (Arte: Dan Kosmayer)

Antes que eu a tocasse, a vaquinha partiu da mesma forma que chegou – voando e lançando de suas mamas alguns jatos de leite encorpado misturado com sangue. Uma porção impactou sobre minha cabeça. Passei a mão e notei meus cabelos engordurados, com fedentina de coalhada e ferrugem. Respirei profundamente com olhos fechados, tentando restabelecer a serenidade, e quando os abri tudo tinha sumido, com exceção do cheiro de morte que na realidade era emanado do meu corpo, não da vaquinha.

Voltei para a cama sofrendo de indisposição estomacal – dava a impressão de que o lanche estava revirando meu estômago. Dormi menos de uma hora porque ouvi um barulho insólito que se repetia a cada cinco ou dez segundos. Incomodado, inclinei a cabeça por baixo da cama e percebi um bichinho úmido e morno acariciando a minha tez. Era um porquinho landrace que percorria meu rosto com a língua. No escuro, seus olhos cintilavam como se tivessem luz própria. Ele sorria e aquilo era intrigante.

Prestando muita atenção em mim, recuou sorrateiramente, como que arrependido. Tropeçou sobre as próprias patas e chorou. Suas lágrimas escorriam pelo focinho. Acuado num canto ao lado da porta, o medo destacava ainda mais a sua pele rosácea. Fiquei mais confuso e sobressaltado quando o porquinho me fez uma pergunta com voz titubeante: “Por que você comeu minha mãe?”

O questionamento não se repetiu e imaginei que eu estivesse delirando. Não respondi. Preservei o silêncio até a chegada repentina da ânsia de vômito. Pálido, vi minhas mãos tornadas diáfanas. Algo subia dentro de mim enquanto meu corpo esquentava e esfriava. Quando abri a boca, os pedacinhos de bacon se lançaram ao chão inteiriços. Se juntaram como se fossem magnetizados.

Em poucos segundos se transformaram em uma porquinha eufórica que grunhia e girava em torno do próprio rabo. Extasiado, o filhote se jogou sobre ela e, sôfrego, a lambeu. Os dois ficaram ali, juntos, tão próximos que tive a impressão de que dividiam a mesma respiração. Quando desviei os olhos rapidamente, eles desapareceram. Deitei na cama outra vez. Dormi por duas ou três horas até perceber um animal tocando as minhas costas. Era leve e tinha cheiro de quirera de milho e farelo de soja. Havia três pintinhos andando em cima de mim.

Um deles pulou no meu travesseiro e começou a piar como se quisesse alguma coisa. Ciscava tentando transmitir uma mensagem. Levantei e o observei subir pelo meu braço como se fosse uma ponte. Sobre o meu ombro, ele piava com ternura, se comunicando com os outros dois que repetiam o trajeto. Num rompante, a ânsia de vômito veio com tudo. De minha boca saíram alguns pedaços pequenos e inteiros de filé de frango que antes de caírem no chão ganharam a forma de um frango que voou por curta distância batendo as asas e fazendo uma balbúrdia gangosa.

 Somente um boi que se apresentou como Pastiche falou comigo (Arte: OuShiMei)

Somente um boi que se apresentou como Pastiche falou comigo (Arte: OuShiMei)

Os pintinhos saltaram sobre ele e os quatro correram porta afora, na escuridão amena da madrugada. Não fui atrás. Com os braços apoiados sobre a cama, assisti tudo sentado, com olhos combalidos e semicerrados. Extenuado, caí na cama e adormeci. Em sono profundo, me vi comendo o lanche da noite passada. A cada mordida, eu sentia a dor da finitude, o aroma ininterrupto da morte. Toda a tristeza diante do passamento era absorvida pelo meu organismo e corpo, fazendo-me experimentar pontuais calafrios.

Medo, ansiedade, estresse, impotência e agonia. Os animais mortos concentravam tudo isso em suas carnes que recheavam meu lanche, fazendo vibrar dentro de mim a aglutinação de uma energia negativa intempestiva e solene emanada pela certeza do definhamento. A dor atravessava a minha essência e me fazia assistir os instantes finais de bovinos, suínos, caprinos e aves. Muitos choravam antes da execução porque reconheciam que suas vitalidades foram inibidas precocemente.

A morte perfazia um caminho tortuoso que subsistia dentro de mim. “Veja a minha dor, sinta a minha dor. Um mundo com animais demais e vidas de menos. Um dia, os humanos vão sofrer como nós. A carne há de sobrar, mas não haverá a quem dar de comer. E assim o mundo vai apodrecer rendido aos excessos desenfreados da produção”, ecoava na minha mente uma voz que embora bem articulada simulava um sincretismo de sons de animais de várias espécies.

“Nasci por esses dias. Veja só o meu tamanho, como cresci. E amanhã já vou morrer porque assim quis o meu criador”, comentou um frango resignado dentro de uma gaiola plástica, antes de ter os pés decepados por um facão. Os mais ingênuos, que não sabiam de seu destino, batiam as asas em vão. Se feriam gravemente, mas lutavam pela liberdade com inocência e inaptidão, já que desconheciam outra realidade que não a do confinamento.

Em uma fazenda enorme a perder de vista, os porcos comentavam entre si que haveria um grande abate no dia seguinte. Um deles conseguiu escapar e revelar a trama aos outros animais encarcerados a 50 e até 100 metros de distância. “Fomos criados pra morrer! Pra morrer! Só isso! Nada mais!”, berrava um jovem porco desajeitado. Durante a madrugada os animais se reuniram e cavaram uma vala mastodôntica. Em sequência saltaram no cabouco e pediram que dezenas de cavalos da coudelaria os cobrissem com terra.

“Pelo menos vamos morrer com dignidade”, argumentou um dos porcos mais bem cotados da propriedade. Optaram por se matar porque acreditavam que perdiam a alma quando serviam de alimento aos humanos. No dia seguinte, todos estavam mortos – filhotes, jovens adultos e animais velhos, abraçados independente de espécie. Em frente ao enorme sepulcro improvisado havia uma frase riscada sobre a terra – “O antiespecismo é como uma vela resfolegando sob a chuva.”

Acordei mais uma vez quando ouvi um grito. Me vi entre grades sendo transportado sobre um caminhão. Procurei minhas mãos e não as encontrei. Olhei para baixo e percebi que eu não era mais um ser humano, a não ser pela minha própria consciência, condição psicológica e emocional. Fisicamente eu era um robusto boi preto ladeado por outros bois. A maioria mantinha-se em silêncio. Somente um boi que se apresentou como Pastiche falou comigo.

“Tá chegando a hora, amigo. Nossa jornada chegou ao fim. Pasto, confinamento e abate. É a nossa sina”, lamentou, projetando um mugido fúnebre e prolongado. De repente, todos ficaram em silêncio, com suas cabeças vultosas mirando as próprias patas. Ouvi um som estranho e uníssono. Era como um ritual que eu não entendia porque eu não era um boi de verdade.

Reconheci o peso da morte quando o motorista do caminhão perdeu o controle e caímos de uma ribanceira. Lá embaixo, onde o capim penetrava minhas narinas e invadia minha boca a contragosto, vi a carroceria quebrada e aberta. Ao meu redor, meus companheiros de viagem estavam mortos, inclusive Pastiche que trazia uma expressão de satisfação em meio à penúria. Havia um cheiro estupefaciente de sangue, estrume e ração à base de milho.

Com poucos ferimentos e escoriações, me levantei e corri pelo prado verdejante. Minhas orelhas altaneiras captaram o som oxítono de uma revoada de andorinhas. Continuei correndo sem parar, por uma terra infinita onde o ser humano jamais poderia me alcançar. Recém-despertado de mais um sonho, fiquei sobressaltado, com o coração disparado, sentindo em meus lábios sabor que parecia ser da minha própria carne. Enleado, vi que ainda repousava ao meu lado o papel branco do lanche, lembrança inolvidável de uma avalanche.

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O menino Valdir

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Zombava ao ver uma barreira invisível me impedindo de ultrapassar a soleira da padaria

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Panificadora Pão de Açúcar, onde vovô presentava seu neto postiço (Foto: David Arioch)

Eu tinha cinco anos quando meu avô João chegou em casa falando do menino Valdir. Tranquilo e compenetrado, continuei no sofá assistindo desenho animado. Ele sentou ao meu lado e disse que Valdir era tão dedicado que gostava dele como se fosse seu próprio neto.

Naturalmente comecei a sorrir, mostrando os dentes com bisonhice e observando a expressão serena em seu rosto esfíngico e ainda pouco crispado. De repente, questionei: “Quem é menino Valdir?” – crente de que se tratava de nome e sobrenome. Ele coçou o queixo liso, recém-barbeado, hesitou e falou que era um menino muito esperto e da minha idade. Segundo vovô, Valdir gostava de ajudá-lo em qualquer circunstância.

Fiquei intrigado e imaginei quem seria esse garoto. “Eu conheço o menino Valdir?”, perguntei à minha mãe na cozinha enquanto ela amaciava a longa massa de pão girando um rolo à manivela. Respondeu que não, voltei para a sala e continuei encucado. “Menino Valdir, menino Valdir, menino Valdir, menino Valdir, menino Valdir…”, pensei antes de dormir, como uma dessas crianças que contam carneirinhos, observando o forro amadeirado e envernizado do quarto.

De madrugada, vovô invadiu meus sonhos passeando de mãos dadas com Valdir. Sorridentes, os dois caminhavam até a Panificadora Pão de Açúcar, onde ele presenteava seu neto postiço com os doces mais caros e mais bonitos da vitrine. “Como você é bonzinho, Valdir. Seus pais devem ter muito orgulho de você. Saiba que és a melhor criança do mundo”, comentava.

Valdir, que só balançava a cabeça em concordância, gargalhava e apontava o dedo para mim. Zombava ao ver uma barreira invisível me impedindo de ultrapassar a soleira da padaria. Fui obrigado a assisti-los do lado de fora, ouvindo o ronco do meu estômago. Sentia que havia um cabouco dentro de mim, uma fome tão avassaladora que deixava meu corpo minúsculo tiritante.

Escorado no batente, minha visão enturvecia conforme eu reconhecia a olência edulcorada de alguns doces que em meu mundo diminuto e inaudito eram os mais deliciosos do mundo. Performático, Valdir mastigava com ledice. Repartiu um pãozinho em dois pedaços, apontou o recheio cremoso e frutado em minha direção, lambeu os beiços e simulou que me daria um pedaço.

Levantou do banquinho, veio em minha direção e, faltando dois passos para chegar até a soleira, esticou o braço e recuou. Macarrônico, retornou fazendo o clássico moonwalk, de Michael Jackson, acompanhado de uma fosquinha. Sentou, fechou os olhos rapidamente, suspirou e abocanhou o pão que em poucos segundos desapareceu dentro de sua boca de rapa-tachos. “Por que, vovô? Por que, Valdir? Por que tão fazendo isso?”, retumbavam inúmeros fraseados ribombados que singravam intrincados dentro da minha mente.

Langoroso e atento a tudo que acontecia no interior da padaria, nem me dei conta de que eu estava completamente nu, com exceção dos pés envolvidos por um par de chinelinhos do Zé Colmeia. Só percebi o supra-realismo da situação quando ouvi gritos ensandecidos de uma multidão que me observava do outro lado da Avenida Distrito Federal. Tentei tapar minhas partes íntimas com as mãos, mas não adiantou. Pelado, corri ruborizado até o cruzamento com a Rua Getúlio Vargas, indo em direção ao Jardim São Cristóvão.

Ao meu redor, os motoristas reduziam a velocidade, colocavam suas cabeças titânicas como melancias janela à fora e gritavam com embocadura de hipopótamo: “Pelado, sem vô e faminto, isso que é um azar do quinto!” As vozes continuavam ecoando por todos os lados. Eu corria e não chegava a lugar algum, como se estivesse sobre uma esteira. De repente, o dia virou noite e o céu azul como um oceano prepóstero desvaneceu.

No firmamento, eu via somente escuridão, um vazio abissal. “Cadê a lua e as estrelas?”, refleti, até que centenas de olhos de coió surgiram entre as fendas que se abriram na abóbada celeste. Eram pretos, castanhos, azuis, verdes, cinzas, fulvos, rosáceos, enfim, de todas as cores possíveis e impossíveis. Eles me vigiavam e me acompanhavam com a destreza indefectível de um mecanismo automatizado, e com precisão de lentes telescópicas.

Para todos os olhos havia apenas uma boca. Não! Uma bocarra tétrica que parecia prestes a engolir meu mundo e me deixar vagando pelo sempiterno da inexistência terrena. “O que você quer? Fala logo, baixote!”, projetou o vozeirão macambuzio com um hálito vigoroso e vicejante como das hortas caseiras de hortelã. A cada palavra, ela me lançava uma aragem que esvoaçava meus cabelos com ferocidade e arrancava as folhas dos galhos de uma sibipiruna que me protegia, evitando que eu fosse arrastado.

Tive dificuldade em manter os olhos abertos – esbraseavam por causa da violência lancinante da ventania que sibilava e chiava, me motivando a abraçar o tronco da árvore com minhas mãos miúdas que afundavam em seu dorso, enchendo as unhas de vestígios moscados de coscorão. Num impulso, gritei que só queria voltar para casa. “Por favor! Nunca mais vou seguir o vovô e o Valdir!”, prometi com olhos marejados.

As lágrimas escorriam pelo meu rosto rubicundo, desciam pelo corpo e afrouxavam o elástico do par de chinelinhos tornado escorregadio como pele de sapo. Cabisbaixo, silenciei e quase desmaiei, com a visão ligeiramente embaçada. Só despertei com a chuva morna e torrencial tocando meus cabelos e ombros com a graciosidade de um cafuné e um abraço. Era colorida e tinha cheiro e sabor de sodinha.

Observei novamente o céu e vi centenas de olhos encharcados. O choro se transformou na chuva que aquecia meu corpo, afastando a friagem. Depois, todas as fendas findaram no céu e a água prosseguiu sua jornada solitária, se intensificando e formando uma pequena corrente caudalosa que me arrastou até a Rua Pernambuco. Quando abri o portãozinho de casa, um forame sem fundo surgiu logo abaixo dos meus pés. Não consegui me afastar – era tarde demais. Enquanto eu caía, tudo ao meu redor se desfazia. Subitamente tive um espasmo hipnico e acordei. Três anos depois, o mesmo pesadelo retornou, só que pela última vez.

Naquela madrugada, sentado na cama, me recordei de todos os episódios que vovô viveu com Valdir, tantas experiências e histórias partilhadas. Então tomei uma decisão. Caminhei até a varanda, onde vovô repousava em uma cadeira – ouvindo rádio e vendo a frugal movimentação de passantes na rua, e pedi que me levasse para conhecer o menino Valdir. Ele me observou atentamente em silêncio, sorriu e revelou: “Valdir nunca existiu, a não ser dentro da minha e da sua mente, onde a criatividade floresce sem um pedaço de semente.”

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Água dos Esquecidos

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“Imaginava um ambiente digno do realismo mágico, onde as pessoas pareciam dispersas no tempo”

"Lugar onde frondosas árvores carregadas de lichia se inclinam sobre as grandes e velhas moradas"

“Lugar onde frondosas árvores carregadas de lichia se inclinam sobre as grandes e velhas moradas”

Há muito tempo, existiu uma colônia rural entre Alto Paraná e Paranavaí que ficou conhecida como Água dos Esquecidos. Ainda na infância me perguntei a origem desse nome que mais tarde se perdeu na minha memória, assim como estradas, rotas e trilhas de um passado que conheci através de relatos das gerações anteriores.

Quando criança até sonhava com a Água dos Esquecidos; a idealizava. Já adulto, imaginava um ambiente digno do realismo mágico, onde as pessoas pareciam dispersas no tempo e no espaço, alheias ao mundo civilizado e ao progresso, reféns da ingenuidade e do desconhecimento benevolente. Após muitos anos a curiosidade voltou à tona com a chegada de duas tias-avós e a narração de histórias sobre a vida campesina nos anos 1950. Fiquei tão instigado que quis procurar o tão falado lugar onde frondosas árvores carregadas de lichia se inclinam sobre as grandes e velhas moradas de madeira, ornamentando fachadas e janelas com tons e matizes de amarelo, laranja e vermelho, além de um bálsamo castiço e mélico.

Então saí de casa em um domingo depois do almoço. No incerto caminho para a Água dos Esquecidos havia muita lama, poças d’água com mais de meio metro de altura e árvores tombadas pela intempérie da semana anterior. “Sei não, sinhô, mas pra gente isso é sortilégio. Óia a marca no tronco d’árve, é serviço pra num deixa ninguém passa”, disse um lavrador das imediações, justificando a queda de uma árvore aparentemente saudável com algumas grandes inscrições no tronco. O rapaz de fala frugal, que talvez por costume, ansiedade ou timidez tenha o hábito de suprimir sílabas, trajava uma velha camiseta de flanela, uma calça de estopa e um par de sandálias feitas de vegetais. O agradeci, me despedi e fiz o contorno pelo carreador de uma propriedade onde o caseiro, um senhor idoso, acenou e consentiu que eu continuasse o trajeto até a próxima saída.

Mais adiante, percorri 15 quilômetros de estrada estreita e irregular, quando fui surpreendido por duas garotinhas de oito ou nove anos que passaram correndo na minha frente. Usavam uniforme escolar típico de um passado longínquo, com listras em preto e branco e avental com peitoril bege. Aproveitei para descer do carro e pedir informações. Me olharam, sorriram com brevidade e atravessaram uma cerca de arame farpado. Corri alguns metros, mas logo desapareceram entre os laranjais. Continuei dirigindo até chegar a uma fazenda que vi em uma foto familiar de 13 de junho de 1957. Como saía muita fumaça da chaminé, concluí que havia pessoas morando no local. Me aproximei, bati palmas e fui recepcionado por um homem branco de estatura baixa, olhos azuis, cabelos ralos, poucos dentes, pele enrugada e rosto bastante manchado pela irrestrita exposição ao sol. “Vamo cheganu, Jão! Tô passanu o café!”, falou o anfitrião antes de dizer o próprio nome ou me interpelar.

Andei por um trilho enlameado e atravessei uma porteira. Assisti galinhas correndo em círculo em torno de um pastor alemão que raleava a grama com o focinho. A poucos metros dali, uma porquinha circulava livremente carregando no dorso um sabiá-laranjeira bastante confortável lhe amaciando o couro com os pés. Deixando as distrações de lado, entrei na casa e, enquanto eu o esperava retornar do quarto, observei pela janela alguns cômodos. Estava tudo exatamente como vi nas inúmeras fotos de 1957 a 1963, parte de um acervo familiar. Os móveis coloniais, a decoração, nada mudou; nem a posição do sofá. Até o peso da porta da sala que dava acesso ao restante da casa era o mesmo – um lírio almofadado e descorado. Aquilo me intrigou sobremaneira e não resisti em perguntar como conseguiu a proeza de conservar um cenário tão histórico. Ele não entendeu e riu, levando as mãos finas e enrugadas ao rosto. “Que cê tá falanu aí, Jão? A gente conversou inda ontionti”, comentou num tom de voz afável e fragilizado. Aceitei a xícara de café amargo e notei um pequeno moedor de café colonial e azul, com a pintura já opaca e parcialmente descascada.

O café aromatizava a sala com tanto esplendor que tive a impressão de estar próximo de uma torrefadora. Nas primeiras bebericadas senti um sutil gosto de ferrugem e tentei disfarçar. O anfitrião percebeu e argumentou: “Num tá muito bão, né? É que esse inda é dos último pé de café e olha que só sobreviveu pela amargura de existi. Num sobrô mai nada.” Aproveitando a quietude, voltei minha atenção ao fogão à lenha, onde as chamas do braseiro fulguravam inadvertidamente. Em suas formas sinuosas, o fogo resplandecia numa força sempiterna – ora sutil, ora insipiente. Talvez se considerasse autossuficiente, não reconhecendo que sua existência dependia da lenha. Então me recordei da história de amor vivida por Joazino. Ecoava na minha mente com a intensidade do cheiro da panelinha com um pouco de arroz carijó que contrastava com o bule de café e o doce de abóbora e gengibre recém-embalado em folhas de bananeira – todos bem dispostos sobre o fogão à lenha. Só me dispersei por um momento, quando comentou como era difícil acreditar que eu ainda estava vivo depois do que fiz.

Me deu um tapa vaporoso nas costas e virou o rosto para enxugar com a manga da camisa cinza e surrada as lágrimas que escorriam pelas maçãs delgadas do rosto. “Tô feliz q cê tá qui! Inda onti cê tava caído sem vida com os zóio virado do avesso. Agora me fala por que tomô quele veneno?”, indagou Joazino Tibicuá. Constrangido, sem saber como reagir, dei um sorriso pejoso e pedi para mudar de assunto. A conversa seguiu por várias direções, se estendeu por horas, e pouco falei diante de um anfitrião ansioso por exteriorizar tantas emoções, sentimentos e ideias. Evocando a relatos ouvidos na adolescência, lembrei que Joazino teve só uma namorada, de nome Margarida. O relacionamento dos dois era baseado em olhares e frases curtas, sempre assistido por algum parente. O primeiro toque de mão levou semanas. Meses depois veio o primeiro abraço. Durou alguns segundos, o suficiente para o jovem Tibicuá jamais esquecer o aroma adocicado de Cashmere Bouquet que Margarida trazia no corpo.

A relação não foi longe por pressão da mãe de Joazino que não aceitava dividir o filho com outra mulher. A possibilidade dele deixá-la a irritava a ponto dela simular enfermidades e se automutilar. Depois do abraço, nunca mais teve notícias da primeira namorada. Ainda assim prometeu a si mesmo que não desistiria da companheira. Aguardaria o falecimento da mãe para não contrariá-la. Embora tenha dado à luz a Joazino em idade avançada, a mulher viveu até os 113 anos, tempo o suficiente para esvair a mocidade do último dos Tibicuá; agora um homem de corpo miúdo, fustigado pela vida, pelo tempo e por uma credulidade encontrada somente em crianças. A tão sonhada liberdade amorosa foi transformada numa eterna lembrança. Joazino se apegou a ela com tanto paroxismo que se condicionou a encarar o passado como realidade presente, ignorando anos, décadas e as transformações do mundo.

Quando pedi licença para pegar água em um filtro de barro escuro, percorri todo o interior da residência, inclusive o banheiro, e percebi que não havia espelho nem energia elétrica. Mais tarde, Joazino pareceu aliviado e satisfeito com a prosa. Nos despedimos sem que eu lhe revelasse que me confundiu com o seu melhor amigo João, meu tio-avô falecido em 1962. Também omiti que a moça com quem um dia pretendia se casar faleceu há mais de 25 anos, vitimada por pneumonia. Comovido pela situação daquele homem de quase 80 anos, não vi senso de justiça em tirar-lhe o brilho e a jovialidade dos olhos, o privando dos prazeres, mesmo que umbráticos, de sonhar acordado. O amor tornado platônico talvez tenha evitado que seus olhos assumissem um aspecto cristalino opaco, típico dos que já não aspiram nada da vida e aguardam apenas o último suspiro.

Curiosidade

O último pé de café ao qual Joazino Tibicuá se refere foi cortado no final dos anos 1970.

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Um manifesto sobre a fragilidade

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Ivanovo Detstvo e o sonho da infância espoliada

Filme mostra um garoto dividido entre o pesadelo da guerra e o sonho da infância (Foto: Reprodução)

Filme apresenta um garoto dividido entre o pesadelo da guerra e o sonho da infância (Foto: Reprodução)

Lançado em 1962, Ivanovo Detstvo, que chegou ao Brasil com o título A Infância de Ivan, é um filme do cineasta humanista russo Andrei Tarkovsky e aborda o estado de introspecção de uma criança órfã dividida entre o pesadelo da Segunda Guerra Mundial e o sonho da infância espoliada.

Ivanovo Detstvo conta a história de Ivan (Nikolai Burlyayev) que teve a inocência dilacerada quando soldados nazistas assassinaram seus familiares. Ignorando a própria condição existencial como criança, o garoto ingressa no exército soviético em busca de retaliação. Sob a perspectiva de Tarkovsky, a guerra assume um caráter individualista a partir das ações de Ivan.

A animosidade da contenda e a ausência de relações familiares levam o protagonista a um endurecimento e negação da juventude. Mesmo quando outros combatentes soviéticos tentam protegê-lo e o lembram de sua idade, o garoto age como se não estivessem se referindo a ele. Uma das cenas mais intensas da obra surge quando Ivan se torna refém de uma tormenta psicológica.

Sem a mãe, Ivan perde o seu elo com o mundo (Foto: Reprodução)

Sem a mãe, Ivan perde o elo com o mundo (Foto: Reprodução)

Consumido por desespero e delírio, o jovem armado com uma faca circula pela escura, gélida e sombria base militar a procura de nazistas. Mas não encontra nada, pois naquele ambiente a sua única companhia é a solidão. Incapaz de aceitar e lidar com a realidade, Ivan luta para velar a fragilidade e a sensibilidade com um manto de frieza. No entanto, ao dormir, é vencido por sentimentos e lembranças que retornam para reafirmar a sua condição infantil e conflitante.

O jovem soviético tenta ultrapassar a etapa da vida que deveria ser marcada pela ingenuidade justamente porque simboliza o momento mais doloroso de sua existência. Rejeitar a infância na fase de transição para a adolescência é uma forma de Ivan se desvincular do passado – uma tentativa sem sucesso. Ainda assim, não são poucos os momentos em que o garoto é transportado a um universo de nostalgia, onde se sente plenamente livre, estimulado por imagens de beleza e candura protagonizadas pela mãe, até pouco tempo seu maior elo com o mundo.

Tarkovsky projeta humanismo na figura do Capitão Kholin (Foto: Reprodução)

Tarkovsky projeta humanismo na figura do Capitão Kholin (Foto: Reprodução)

Ivan sofre sempre que acorda. Apesar disso, conta com o humanismo projetado na figura do capitão Kholin (Valentin Zubkov), um homem com quem estabelece uma difícil, mas alentadora relação. Kholin se torna a ponte entre o velho e o novo mundo do garoto, tentando mantê-lo em uma linha de equilíbrio, onde a sobriedade precisa ser nutrida com sonhos e expectativas.

Sobre a estética e os planos de filmagem da obra de Tarkovsky, o tempo todo a câmera assume papel de personagem, transmitindo sentimentos e emoções em meio a uma contumaz escuridão desértica. No chão, a consternação é marcada pelo solo improdutivo. No céu, onde há muito tempo as estrelas não brilham, as nuvens são substituídas por cortinas de fumaça cor de chumbo. A natureza parece sepultada, assim como tantas vidas representadas por escombros e ruínas. Em suma, Ivanovo Detstvo é um manifesto sobre a fragilidade humana.