David Arioch – Jornalismo Cultural

Jornalismo Cultural

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“Po, olha esse cara! Bruto demais dos pés até a touca”

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Passei no mercado para buscar pão para a minha mãe (Foto: Reprodução)

Saí da academia e passei no mercado para buscar pão para a minha mãe. Na fila do caixa rápido, um cara ficava me observando. Até que ele se aproximou e disse:

— Caramba, mano! Tenho que te falar! Você tem um visu que dá medo! Olha o físico e a cara desse homem aqui, Renata!

Envergonhada, a moça que o acompanhava apenas sorriu e comentou:

— Não liga não. Meu irmão é assim mesmo.

Com meu típico sorriso enviesado, comentei que estava tudo bem. Então ele continuou:

— Po, olha esse cara! Bruto demais dos pés até a touca. Que barba sinistra, meu velho!

Eu já constrangido, sem saber o que dizer, pensei até em sair da fila do caixa rápido. Então Renata o puxou pelo braço, o levando para o setor de hortifruti. De lá, ele ainda falou:

— Serião, mano! Se você me der um tapa acho que eu não levanto.

Enquanto algumas pessoas riam e sorriam, eu só acenava a cabeça e tentava esconder a vergonha por trás da barba.

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Written by David Arioch

May 6th, 2017 at 1:34 am

Sete pãezinhos e um fujão

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Peço sete pães e aguardo a atendente selecioná-los na sua rotineira cordialidade (Foto: Reprodução)

Na padaria do mercado, peço sete pães e aguardo a atendente selecioná-los na sua rotineira cordialidade. De repente, escuto um som fofo e morredouro na sua sutilidade – do tipo “ploft” suave. O pãozinho agoniza no chão. Gerado há pouco tempo, já não tem mais razão de ser, caído sem chance de se restabelecer. Posso ver nos olhos da atendente que ela discorda. Me observa de soslaio, esperando apenas uma distração e, quem sabe, numa plena desatenção, uma oportunidade de enfiar no saco o “pãozinho sujo”, privado da própria vocação.

Não tiro os olhos dela. Ela reage virando as costas para mim, e manipula o saco de pão com uma astúcia que parece sem fim. Não desiste! E meus olhos continuam mirando-a. Escuta meus passos. Sei disso porque vejo suas orelhas vibrando e seus olhos titubeando. Estamos mais próximos do que antes. E minha sombra desarmoniza suas intenções. Ela disfarça por mais um ou outro segundo, sorri em minha direção, e encosta o pãozinho na parte externa do saco marrom.

Há um ou dois minutos, ele era igual aos outros. Ninguém pode negar, mas foi maculado, e aos seus irmãos já não pode se juntar. Que assim seja feita a justiça do alimento! Juro que por um segundo vi um traço que parecia um sorriso. Um pão sorrindo? Impossível! Ou não? A moça da padaria me entrega o saco de pão quente. Ruborizada, me dá um último sorriso, sem velar o ar de derrota.

Quando abro o saco, e, descuidado, inalo a fumaça que me esbraseia o salão, vejo sete irmãozinhos parifomes repousando. Do outro lado, o pãozinho fujão se esconde de baixo de um segundo balcão, e desaparece em um buraco do tamanho de minha mão.

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Written by David Arioch

April 9th, 2017 at 12:49 am

O fura-fila

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O homem tinha pressa em comprar quatro pães (Foto: Reprodução)

Voltando para casa, entrei em Nova Esperança e passei em um supermercado. Caminhei até o fundo e vi uma fila modesta em frente à padaria. Algumas pessoas conversavam e outras mantinham-se em silêncio. De repente, um senhor ficou ao lado de uma mulher que aguardava alguns pães. Ele furou a fila.

Quando olhou para mim, mantendo o corpo recôndito pela senhora que nos separava, ele sabia que eu sabia o que ele estava fazendo. Então desviou o olhar algumas vezes e sorrateiramente voltou a me observar. “Me vê quatro pães”, pediu à atendente com voz em tom baixo e tapando parcialmente a boca com a mão direita, como se quisesse impedir que eu o ouvisse.

Continuei assistindo aquele senhor. Arreliado e claudicante, ele desviava a cabeça, coçava os parcos cabelos brancos e esfregava o par de sandálias no piso esmerado. Seus olhos iam de caroço de azeitona à caroço de abacate em segundos. Quando a atendente entregou os quatro pães, foi como se ele se sentisse livre do meu olhar que talvez espelhasse uma confissão, revelando mais do que ele gostaria de ponderar – ou talvez não, vai saber.

Written by David Arioch

September 22nd, 2016 at 12:03 am