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A contradição da realidade e o veganismo – Sobre críticas à alimentação de veganos
A Consumers International publicou uma pesquisa informando que 80% da população brasileira ignora o impacto da alimentação em suas vidas. Mesmo assim, muitas pessoas, que por improvidência levam um estilo de vida censurável do ponto de vista nutricional, julgam como sendo impraticável ser vegano.
Ou seja, não tenho condições de ser vegetariano ou vegano, de consumir alimentos menos industrializados ou mais baratos do que alimentos de origem animal, mas tenho condições de consumir laticínios, carnes e alimentos baseados em calorias vazias.
A partir disso, desenvolvo uma reflexão sobre a contradição da realidade e o veganismo, e porque as críticas à alimentação dos veganos se resume normalmente a um ponto convergente e conflituoso – a primazia do paladar e a relação de conveniência com nossos hábitos históricos e culturais que perpassam gerações.
McDia Feliz 2017 pela cura do câncer infantojuvenil é como a JBS criando uma megacampanha contra o desmatamento
McDia Feliz 2017 pela cura do câncer infantojuvenil é como a JBS criando uma megacampanha contra o desmatamento; a Coca-Cola comercializando refrigerante e prometendo reverter uma parcela dos lucros para o Instituto da Criança com Diabetes. Ou a Nestlé, a Kraft e a Hershey Company fazendo propaganda contra o trabalho escravo.
Pawel Kuczynski, um cartunista que desperta reflexões sobre a exploração animal
“Nossa realidade é triste e, como consequência, meu senso de humor é mórbido”
O artista gráfico e cartunista Pawel Kuczynski vive em Police, uma cidade com pouco mais de 40 mil habitantes, situada na região da Pomerânia Ocidental, no Noroeste da Polônia. Lá, ele produz desenhos que despertam a atenção para temas como exploração animal, ecologia, política, pobreza, fome, ganância, novas tecnologias e vício em internet. Kuczynski une metáforas visuais, a estética do surrealismo, a sátira e o humor mórbido para fazer com o que o espectador reflita sobre questões bem atuais.
Muito popular em mídias sociais como Reddit, Pinterest, Instagram e Facebook, neste último ele tem mais de 528 mil seguidores, o artista polonês já produziu inúmeros desenhos em que propõe discussões sobre a forma como nos relacionamos com os animais. São trabalhos que permitem inúmeras releituras e colocam em evidência a hipocrisia humana no que diz respeito ao fato de considerar alguns animais como companheiros e outros simplesmente como comida. Exemplo disso é “Dinner”, uma de suas obras mais populares, em que um açougueiro acaricia a cabeça de um gato enquanto é assistido por animais não domésticos na entrada de um estábulo.
Alguns cartuns de Kuczynski, que trabalha com técnicas de lápis aquarelável, mostram como as pessoas fingem não ver que estão consumindo um ser que um dia teve vida, e talvez por tal motivo em alguns de seus trabalhos os animais estão vivos. Um exemplo é “Pig”, em que um porco aparece sorrindo inocentemente com uma toalha sobre o dorso, sem reconhecer que ele é a mesa e o prato principal de um banquete. Em “Coffin”, ele apresenta o funeral de um porquinho que tem como caixão um lanche, uma referência às tiras de bacon.
Em “Eggs”, há uma máquina que esmaga galinhas para a produção de ovos. Provavelmente, a intenção de Kuczynski é mostrar que ovos não são apenas ovos. Eles custam a vida das galinhas que são descartadas quando produzem pouco ou quando representam despesas. Outra de suas obras destaca um homem com aspecto morbígero, uma boca enorme e dentes pontiagudos, prestes a engolir a cabeça de um suíno, numa analogia à glutonaria humana.
Pawel Kuczynski também critica quem cria peixes em casa. Além desses animais viverem até sua morte em pequenos espaços para o deleite humano, as pessoas normalmente ignoram o quão paradoxal é criar um peixe ao mesmo tempo em que se come outro. Tal contradição é evocada no cartum em que aparece um peixe enlatado dentro de um pequeno aquário.
Em outro desenho, um boi tem um grande pasto como guardanapo amarrado ao pescoço, referência ao desmatamento e a superprodução de grãos para alimentar esses animais, o que vai muito além do que é investido na produção alimentícia voltada aos seres humanos.
Por esses e outros trabalhos, o polonês graduado na Academia de Belas Artes de Poznań, e com especialização em artes gráficas, já foi premiado nos Estados Unidos, Brasil, Bélgica, Itália, Espanha, Portugal, Rússia, Japão, China, Coréia do Sul, Colômbia, República Tcheca, Irã, Itália, Eslováquia, Turquia, Síria e Taiwan. Em 2005, ele recebeu o Eryk, prêmio da Associação Polonesa de Artistas, por ter conquistado um número recorde de premiações em competições internacionais. Só em 2010, Kuczynski ganhou 19 prêmios e distinções.
“Não sou o tipo de cartunista que trabalha com humor. Não é o tipo de sátira que as pessoas podem associar com piadas. São assuntos muito sérios. A realidade é tão louca e absurda que é difícil competir com isso. A realidade me inspira. Apenas tento ser honesto sobre as minhas observações em meus desenhos. Coloco uma informação em minha cabeça e espero pelos resultados. Se eu já tiver algo em minha mente, e for uma boa ideia, preciso de dois dias para fazer o desenho”, disse em entrevista à Fluster Magazine, da Itália, publicada em 10 de março de 2012.
Um observador do comportamento humano, Pawel Kuczynski considera surpreendente o fato de que vivemos há tanto tempo neste mundo e ainda assim seguimos cometendo os mesmos erros. ele cita como algumas das maiores incoerências humanas as guerras, a pobreza, a fome, a exploração animal e a destruição do meio ambiente. “Nossa realidade é triste e, como consequência, meu senso de humor é mórbido. Acho que talvez eu seja muito lírico e sentimental”, declarou.
O artista polonês sempre gostou de arte barroca, das obras de Caravaggio [Michelangelo Merisi]. Sua admiração o motivou desde cedo a usar a luz teatral como uma grande aliada, ou seja, aprendeu a manipular sabiamente o contraste entre o claro e o escuro. “É muito útil para organizar a composição narrativa em minhas obras”, justificou.
Membro da Associação Polonesa de Artistas, ele prefere não enaltecer a sua própria história. Quando questionado sobre o motivo de divulgar sempre uma curta biografia, Kuczynski costuma responder que o mais importante não é ele, mas sim o seu trabalho. Sobre sua rotina, ele começa o dia praticando atividades físicas. “É a melhor forma de refrescar meus pensamentos. Ou a melhor forma de não pensar em desenhos”, enfatizou em entrevista veiculada no portal iraniano Tabriz Cartoons em 11 de setembro de 2016.
O cartunista normalmente prepara o projeto um dia antes de executá-lo, e seu período de maior produção costuma ser à tarde. “Trabalho como freelancer. É o que mais me convém, mas posso trabalhar em qualquer lugar onde eu tenha um canto para desenhar e acesso à internet. Tudo que tenho em Police [sua cidade natal] é um ambiente tranquilo, amigos e família. Não preciso de nada mais além disso”, contou a Tabriz Cartoons.
Pawel Kuczynski transparece não ter grandes ambições e ressalta que o mais importante é ter ideias e força para trabalhar. Se suas obras seguirem conquistando as pessoas e permitirem que ele continue vivendo do seu trabalho, isso o deixará satisfeito. “É o suficiente para mim. Como qualquer jovem estudante, eu fazia retratos em festas, imagens para decorar interior de apartamentos. Sou duro comigo e prefiro não admirar meu trabalho. Sempre acho que o próximo será melhor e me forço a ir além. Claro, como qualquer autor, fico feliz quando meu trabalho é notado e recompensado em competições”, ponderou.
Há pessoas que criticam alguns trabalhos de Kuczynski por interpretá-los como críticas intransigentes ao uso de tecnologias. Porém, embora não use smartphones, ele deixa claro que sua intenção nunca foi essa: “Não sou um inimigo das inovações técnicas. Estou ativamente usando e usufruindo delas. Mas, por outro lado, é por isso que tenho o direito de alertar sobre as armadilhas que estão sempre à nossa espreita.” Para o polonês, a melhor forma de manter a qualidade do seu trabalho é jamais negligenciar o próprio cérebro que, por ser um músculo, precisa sempre de bons estímulos.
Saiba Mais
Pawel Kuczynski começou a trabalhar com desenhos satíricos em 2004.
Para comprar algum dos trabalhos do artista polonês, acesse:
http://www.pictorem.com/collectioncat.html?author=Pawel+Kuczynski
Referências
http://pawelkuczynski.com/
https://flustermagazine.wordpress.com/2012/03/10/showcase-pawel-kuczynski/
http://tabrizcartoons.com/en/news/tcan/6196-interview-with-pawel-kuczy%C5%84ski-poland,2016.html
O dilema da Galinha Pintadinha e da Peppa Pig
Há muitos pais que mostram a Galinha Pintadinha para os filhos e depois os condicionam a comerem frango no jantar. Colocam a criançada para assistir a Peppa Pig e mais tarde insistem que comam pernil ou bisteca. São os paradoxos semeados desde sempre. Não é muito coerente fazer as crianças se alimentarem daqueles que despertam nelas a simpatia pelos animais. É como dar uma mão e tirar a outra.
O homem e o carrinho
No mercado, vi um senhor fazendo um esforço hercúleo para empurrar um carrinho abarrotado de carne. Havia tanta carne que por um momento ele parou de empurrá-lo. Em seguida, enxugou o líquido viscoso que escorria de um dos sacos de carne, lambuzando sua mão direita. Seu carrinho não era o único na mesma situação.
Antes que eu me afastasse, um de seus filhos se aproximou e o questionou se não havia carne demais no carrinho. Incomodado, o homem respondeu, num paradoxo ruidoso: “Carne é vida. Melhor sobrar do que faltar.” Por outro lado, ele sentia-se desconfortável porque uma de suas mãos estava grudenta. Sem velar a expressão de repulsa, na tentativa de limpá-la, ele acabou esfregando a mão em uma porção de belas laranjas.
Em menos de minuto, algumas testemunhas se aproximaram e viram as laranjas manchadas pelos glutinosos vestígios de carne. Então reclamaram: “Que sujeito nojento! Eu que não pego essas laranjas!” E partiram empurrando seus carrinhos cheios de peru, tender, pedaços de carne bovina e bandejas de presunto.
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Quando recebi materiais sobre guerrilha
De uns dias para cá e sem que eu peça, alguns camaradas têm me enviado materiais sobre guerrilha e cheguei inclusive a ver pessoas falando em cursos sobre o assunto. Sinceramente, fique à vontade para fazer o que bem entender, mas esteja ciente dos desdobramentos de suas ações. Reflita também o quanto elas pesam sobre suas inclinações ideológicas, principalmente para não cair em contradição.
Não sou a favor de revoluções baseadas na violência e hoje mais do que nunca acho que isso é algo que não deveria ser nem mesmo aventado. Estamos em 2016 e não é difícil perceber que a maior guerra da atualidade é a da informação. Quem pensa o contrário talvez não tenha se dado conta das transformações que o mundo viveu nas últimas décadas.
Outro ponto a se considerar é que enquanto alguns pegam em armas, outros simplesmente as manipulam, e sem precisar empunhá-las. Sim, sou contra a exaltação da violência tanto quanto sou avesso à subtração e desvirtuação das liberdades. E jamais tive como herói pessoas que a exerceram para impor uma ideologia que pode parecer utopia para uns e distopia para outros.
Um mundo justo hoje seria um mundo de pessoas ponderadas, capazes de falar, mas também de ouvir e refletir sobre o que ouviram. Muitas tragédias e ações equivocadas surgem com a intemperança, desconhecimento, desinformação e desinteresse pela comunicação. E nessas circunstâncias abre-se espaço para o discurso impositivo, o mais nocivo de todos porque através dele o ouvinte absorve apenas a forma, não o conteúdo.
Como somos seres pensantes é difícil entender como o embrutecimento pode se sobrepor a tudo isso. Em menor ou maior proporção, penso que muitas das mazelas do mundo atual têm a ver com o infindável e megalomaníaco anseio de querer ser mais dono dos outros do que de si próprio. A ilusão da posse é danosa e inconsequente, mas, embora sejamos paradoxais por natureza, acredito que o ser humano sempre tem condições de aprender a viver dentro de si mesmo para então aprender a viver fora.
A recompensa e o medo da danação
“E se as pessoas soubessem que não ganhariam nada por serem boas?”
Ao longo da minha vida, tive contato com diversas religiões e algumas antagônicas em certos aspectos. Fiz catequese e participei de escolas dominicais na minha infância e nos primeiros anos da adolescência. Até para minha surpresa, eu costumava estar entre os melhores alunos, embora minhas dúvidas soassem acéticas ou dignas de um infiel para alguns ou muitos. Ainda assim, eu não hesitava em refletir profundamente sobre o que lia e ouvia. Mesmo pequeno, não tinha facilidade em absorver qualquer coisa como verdade inquestionável.
O comportamento humano já me intrigava naquele tempo porque para além das cortinas de fé eu percebia algo nas pessoas que me parecia estranho e paradoxal. “Seja um bom menino que mais cedo ou mais tarde a recompensa aparece”, me diziam muitos quando eu ainda era criança. E esse discurso se repetiu muitas outras vezes e das mais variadas formas. As palavras mudavam, mas não deixavam de transmitir a mesma mensagem. Até que um dia eu comecei a me questionar.
“E se as pessoas soubessem que não ganhariam nada por serem boas? Se descobrissem que se trata de um dever como ser humano e simplesmente isso? E se após a morte lhe fosse reservado um lugar ao lado daqueles que você considera descrentes, ruins e degenerados? Você ainda faria tudo que fez? Seria realmente a mesma pessoa? E se não houver recompensa, não há motivo para ser bom ou justo?”
Me deparo todos os dias com pessoas que sustentam a própria fé e a ideia de fazer o bem como uma moeda de troca para ser beneficiado no futuro ou no pós-morte, como se Deus tivesse assinado algum termo de responsabilidade ou de indenização pela vida terrena que muitos depreciam na ânsia pelo paraíso. Como não encarar isso como uma forma de mercantilização da bondade? Por que não ser bom porque é sensato e condiz com a natureza humana quando ela não é subtraída da própria essência?
Acredito de fato que o ser humano é naturalmente benevolente, quando não o é significa que em algum momento suas características naturais foram corrompidas. Também penso que o justo nem sempre é verdadeiramente justo por um senso moral, por um senso altruísta. Muitas vezes a bondade nasce do medo da punição, da danação, de ser relegado à escuridão eterna. “Foi tarde. Tá ardendo no inferno, no colo do capeta”, já ouvi copiosamente. E que autoridade tem alguém em afirmar isso? Ou até mesmo desejar o mal a alguém? Quem somos nós para definir o que as pessoas merecem?
Diversas religiões falam que o fiel, o bom, ganhará os céus. Mas ser devoto de uma religião não significa ser bom e vice-versa. A bondade, como a caridade, independe de religião. Ela precisa fluir sempre de dentro do ser humano para fora, e mesmo distante de uma igreja há quem faça ela prevalecer até mais do que a de um suposto fiel. Crer que é melhor por ter uma religião reafirma apenas uma posição de devoto de ocasião.
Muitas vezes também li e ouvi pessoas afirmando que Deus há de punir seus desafetos porque ninguém “mexe com um servo ou serva de Deus”. Aí então surge uma curiosa distorção de crenças em que o religioso se coloca numa posição de deidade enquanto a Deus é delegada a função de subserviência, como um servo que deve atender aos caprichos de alguém com uma visão distorcida e particularista de justiça. Assim há seres humanos que não apenas se veem como merecedores de recompensa, mas vão muito além – eles a exigem em retribuição à fé que afirmam possuir incondicionalmente.
Uma Cuba menos marxista
Guantanamera mostra como o capitalismo desponta na Cuba socialista
Lançado em 1995, Guantanamera é um filme singular de Tomás Gutiérrez Alea e Juan Carlos Tabío que mostra uma Cuba ambivalente, arcaica e jovial, onde o socialismo perde espaço para o capitalismo do trabalho informal. A obra, uma fusão de comédia, crítica social e road movie, apresenta Tia Yoyita (Conchita Brando), uma mulher já idosa que está em Guantánamo, sua cidade natal, para rever parentes e amigos.
Durante a visita, Yoyita morre, mas não pode ser enterrada em Guantánamo. Uma nova lei determina que cada cubano deve ser sepultado na cidade onde viveu os últimos anos. Então surge um problema logístico, o de transportar a falecida até o outro lado da ilha. O caricato funcionário público Adolfo (Carlos Cruz), autor do projeto e marido de Georgina (Mirta Ibarra) – sobrinha da falecida, é designado para o trabalho.
Durante o percurso, surge uma série de contratempos que destacam alguns problemas da revolucionária Cuba. São inesquecíveis as cenas das paradas do cortejo fúnebre; os viajantes sendo abordados por ambulantes vendendo bananas. A maioria rejeita o peso, a moeda oficial, e exige o pagamento em dólares. Os principais personagens, de ideologia marxista-leninista, tentam confrontar o capitalismo que desponta de modo informal em Cuba.
Há muitos momentos de ironia que ressaltam um cotidiano paradoxal. Em Guantanamera, as críticas surgem sutis, bem humoradas e até belas. Outro exemplo emblemático é a cena do caminhoneiro Mariano (Jorge Perugorría), apaixonado por Georgina, que se recorda de quando estudava comunismo científico, disciplina transformada em socialismo científico. “No futuro, será capitalismo científico”, debocha o personagem Ramón (Pedro Fernández). Os muitos questionamentos políticos feitos por Alea e Tabío permitem ao espectador levantar dúvidas sobre o meio em que vive.
Considerado o menos superficial de todos os filmes de Tomás Gutiérrez, Guantanamera é contundente como uma crítica que se conjetura em autocrítica. Os autores deixam implícito que se Cuba se desvanece em vários aspectos, como o cadáver dentro do caixão rumo a Havana, é porque cada cubano tem parcela de culpa. É possível até fazer uma interpretação mais íntima da morte de Yoyita, já que Alea estava se tratando de um câncer quando decidiu rodar o filme.
Curiosidade
Embora guantanamera seja um gentílico para as mulheres nascidas em Guantánamo, no sudeste cubano, no filme também é uma referência à canção folclórica de José Martí e Joseíto Fernández.
Uma garota de programa em paradoxo
Godard e a perspectiva humanista sobre uma personagem marginalizada
Vivre Sa Vie, Lançado no Brasil como Viver a Vida, é um clássico da Nouvelle Vague de 1962, do controverso cineasta francês Jean-Luc Godard. O filme conta a história de Nana, uma garota de programa que sonha em ser atriz e vive o paradoxo de preservar a própria integridade.
Viver a vida é protagonizado por Anna Karina que empresta beleza a personagem Nana. Por si só, o rosto angelical e expressivo da atriz propõe um paradoxo ao encarnar uma meretriz. Sem cenas tórridas de lascívia, exibicionismo, exaltação da sexualidade ou até mesmo beijos quentes, o filme é uma perspectiva humanista sobre uma personagem marginalizada. Na obra, a garota de programa assume uma notoriedade idiossincrásica em que citações literárias e filosóficas determinam o cotidiano.
Embora depreciada pela sociedade, Nana é uma caricatura expressionista vivendo sob um prisma de valores criados por ela mesma, totalmente desvinculada do caráter maternal imposto às mulheres. O contexto, quando imaterial, se resume a um universo reflexivo, onde a objetividade e o concreto só existem em razão da subjetividade. Tudo é transmitido no filme por etapas, já que Viver a Vida se divide em doze atos.
Do início ao fim, é permitido invadir a intimidade de Nana, representante de um ideal de liberdade que tenta ignorar tudo a sua volta. Mas nem sempre consegue. A protagonista se mostra frágil ao entregar o corpo por exigência do ofício. Sente que algum tipo de emoção e sentimento nasce ou morre antes de cada relação sexual.
O espectador, que assume os olhos de Godard, presencia muitas das cenas como testemunha; alguém o tempo todo ao alcance de Nana. A primeira cena em que a câmera, de uma posição privilegiada, destaca as costas e os ombros da personagem, mantendo o rosto oculto enquanto conversa em um café, é o exemplo primordial.
A natureza de Nana ratifica a ideia de que o humanismo está em crise há muito tempo. Como sobrevivente do submundo parisiense, ela assiste ao enlace entre a modernidade e a decadência. Na capital francesa, surgem cinemas, cafés e máquinas de fliperama enquanto morrem pessoas, sonhos e ideais.
Capitão Telmo: herói ou vilão?
Telmo Ribeiro é um paradoxo na história de Paranavaí, o herói que se transformava em vilão
Capitão Telmo Ribeiro é um dos personagens mais controversos da história de Paranavaí, no Noroeste do Paraná, onde viveu entre os anos de 1936 e 1964. Durante esse período, conquistou amigos, inimigos e apatia.
O tenente
Em 1932, o tenente gaúcho Telmo Ribeiro deixou o Rio Grande do Sul e foi para Porto Murtinho, no Mato Grosso (atual Mato Grosso do Sul), lutar na Revolução Constitucionalista. Com o fim dos conflitos, Ribeiro comandou o regimento de cavalaria de uma brigada militar em Ponta Porã. A missão era defender a fronteira brasileira. “Eu era tenente no esquadrão do Telmo. Naquele tempo, quem comandava a brigada era o coronel Mário Garcia”, relatou o pioneiro mato-grossense Alcides Loureiro de Almeida em entrevista à Prefeitura de Paranavaí décadas atrás.
Enquanto trabalhou em Ponta Porã, Telmo Ribeiro morou em Bela Vista, na Fazenda Casualidade, de João Loureiro de Almeida, pai de Alcides Loureiro. “Depois de um tempo, a brigada foi extinta e surgiu o convite para trabalhar na Fazenda Caaporã. Contratamos alguns homens e começamos o plantio e transporte de erva-mate para exportação”, lembrou Loureiro. Mais tarde, Telmo e Alcides retornaram a Ponta Porã. Loureiro continuou trabalhando na cidade e Ribeiro fechou um contrato com a Companhia Mate-Laranjeira para transportar erva-mate através do rio em um barco a vapor.
Em uma das viagens pelo estado, Telmo Ribeiro conheceu o engenheiro Francisco Natel de Camargo que atuava como boiadeiro, levando gado vacum do Mato Grosso para a Fazenda Brasileira, futura Paranavaí. A carne bovina alimentaria os migrantes que viviam no povoado. “O Natel levou o Telmo até Londrina para conversar com o representante do governo, o delegado Achilles Pimpão, intermediário do interventor Manoel Ribas”, revelou o pioneiro Alcides Loureiro.
Ao conquistar a simpatia do delegado e do interventor, Telmo Ribeiro foi contratado para abrir estradas ligando a Brasileira ao restante do Paraná. “Lembro quando ele foi encarregado por Natel de Camargo para abrir uma estrada para a movimentação de gado da Brasileira até a Gleba Roland [atual Rolândia]”, pontuou o pioneiro pernambucano Frutuoso Joaquim de Salles, ex-empregado e amigo do tenente Telmo.
Salles contou que Ribeiro fixou residência onde é atualmente o Jardim São Jorge. Lá, havia uma colônia abandonada, com casas boas e móveis coloniais de finíssima qualidade. “As árvores já tinham varado o teto das residências. Telmo aproveitou o que deu pra aproveitar”, assegurou o pernambucano.
O herói
Em 1936, nas palavras do pioneiro paulista Natal Francisco, o tenente e uma turma de paraguaios acabaram com a onda de assassinatos praticados por grileiros na Fazenda Brasileira. Nessa época, o tenente já se destacava entre a população humilde do povoado. Tinha boa postura e passo firme, mas o que mais chamava atenção era o carisma, o requinte e a elegância. Ribeiro usava paletó de alta qualidade combinando com botas feitas sob medida, além de um cinturão que tinha como fivela a letra T.
Fumava apenas charutos importados da Holanda e só usava perfume francês. “Ele tinha um anel madrepérola feito por um famoso joalheiro carioca. No pescoço, sempre trazia um lenço de cetim preso por um broche de ouro”, detalhou Alcides Loureiro, acrescentando que apesar da fama de violento, Telmo Ribeiro era um homem delicado.
O título de capitão, o tenente gaúcho recebeu por serviços prestados ao Estado do Paraná na Brasileira, segundo o pioneiro paulista Valdomiro Carvalho. Contudo, o pioneiro curitibano Aldo Silva deu outra versão sobre o assunto: “Ele foi promovido a capitão pelo próprio povo da região, então ficou conhecido assim.” Telmo Ribeiro se tornou uma figura tão influente na cidade que a jardineira da Viação Garcia que fazia a linha Paranavaí-Londrina adotou como ponto de parada a casa do capitão.
Ao longo da vida, o pioneiro paulista Salatiel Loureiro nunca se esqueceu de um favor feito por Telmo na década de 1940. “Uma vez, ele foi até Curitiba requerer meu título de terras. Fez isso e não cobrou nada.” Carlos Faber, José Alves de Oliveira, José Ferreira de Araújo (Palhacinho), Severino Colombelli, José Francisco Siqueira (Zé Peão) e Izabel Andreo Machado são alguns pioneiros que sempre tiveram bom relacionamento com o capitão Telmo Ribeiro.
“O meu amigo sempre foi um líder, homem com fibra de pioneiro, com o qual partilhei bons e maus momentos”, destacou Alcides Loureiro. Outro pioneiro que defendia a idoneidade e o caráter de Ribeiro era o paulista João da Silva Franco. “Muita gente falava que ele era ruim e ganancioso. Mas eu acredito que ele nunca matou ninguém. O problema era a cabroeira dele, usavam o nome do Telmo pra fazer coisas erradas aqui”, salientou.
O vilão
Se por um lado, o capitão Telmo Ribeiro foi admirado e fez valiosas amizades nos 28 anos dedicados a Fazenda Brasileira, depois Paranavaí, por outro, também conviveu com pessoas que não aprovavam suas atitudes, não gostavam dele ou lhe eram indiferentes. “Lembro que ele andava com dois revólveres, uns dez capangas e insultava muita gente na rua. Telmo achava que só ele tinha razão”, desabafou o pioneiro cearense Raimundo Leite.
Leite costumava relembrar o episódio em que entrou em conflito com o capitão. “Certo dia, o Raimundo Arruda e o Zé Andrade insultaram ele no Bar do Zé e depois foram pra minha casa. O Telmo apareceu lá e o pau quebrou. Teve gente que apanhou e correu. Eu não tinha nada com o peixe, mas quase sobrou pra mim. A minha sorte foi que chegou um pessoal e pediu pra ele não fazer nada comigo”, enfatizou.
Com o tempo, Ribeiro conquistou muitas inimizades em Paranavaí. “Aqui tinha os capa-preta e me recordo que eles queriam matar o capitão Telmo Ribeiro”, revelou o pioneiro espanhol Thomaz Estrada. Para a pioneira fluminense Palmira Gonçalves Egger, o capitão Telmo perseguiu muita gente e fez muitas coisas que não deveria ter feito.
De acordo com o pioneiro gaúcho Otávio Marques de Siqueira, Telmo ajudou muito Paranavaí, mas nunca permitiu que alguém se lançasse contra ele na política. “No fundo, era boa pessoa, mas também sabia ser violento quando eram com ele”, avaliou. O pioneiro mineiro Enéias Tirapeli pertencia a um grupo que não simpatizava e nem desgostava de Telmo Ribeiro, apenas era indiferente ao capitão.
“Nunca me relacionei com ele, mas achei errado ele ter matado aquele rapaz na cadeia”, ressaltou, referindo-se ao assassinato do jovem Alcides de Sordi, de quem o capitão assumiu a autoria do crime. Fato sobre o qual houve divergências de opiniões. O pioneiro João Franco dizia que Telmo Ribeiro nunca atirou no rapaz. Para ele, o capitão tinha as “costas quentes” e chamou a responsabilidade para si na tentativa de livrar os amigos da prisão.
A decadência do capitão
Nas décadas de 1940 e 1950, Ribeiro conseguiu status e fortuna em Paranavaí. Entre as suas propriedades estava uma fazenda que compreende todo o Jardim São Jorge. Também tinha fama de perdulário. Ostentava um padrão de vida elevadíssimo, gastava muito dinheiro com a própria vaidade, amigos e mulheres em ambientes como a Boate da Cigana.
“Tal extravagância o levou a decadência. Depois de um tempo, começou a vender suas terras”, salientou Alcides Loureiro. Em 1964, às raias da falência, Telmo Ribeiro fixou residência em Maringá. Três anos mais tarde, viajou até Cornélio Procópio, no Norte Pioneiro, para cobrar um devedor e levou um tiro no peito.
O capitão influente e de muitos amigos, conhecido como rápido no gatilho, e que um dia participou da Guerra Paulista, enfrentou grileiros e jagunços, foi surpreendido e morreu no próprio local, longe de casa e sozinho, sem tempo de ao menos tirar a arma do coldre.
Curiosidade
Pioneiros contam que na época da colonização diziam que Telmo Ribeiro ameaçou roubar uma das filhas do pioneiro Arthur de Melo. Para evitar o pior foi enviado reforço policial de Arapongas.
Frases dos pioneiros sobre o capitão Telmo Ribeiro
Carlos Faber
“Nunca vi ele bravo, estava sempre alegre. Embora falassem certas coisas dele, nunca vi nada. O Telmo sempre me oferecia ajuda, mas nunca precisei.”
Raimundo Leite
“Ele me desacatou dentro da minha casa. E eu não morri porque não corri.”
Severino Colombelli
“O capitão Telmo era uma pessoa muito boa e de coração mole.”
Cincinato Cassiano Silva
“A parada era dura com o Capitão Telmo. Ele que expulsou os jagunços daqui. Para alguns ele era bom, mas pra outros não.”
Izabel Andreo Machado
“O capitão era pra nós uma pessoa muito boa.”
José Antonio Gonçalves
“Ele usava um chapéu grande e um lenço no pescoço. Era educadíssimo, mas a coisa com ele era meio brava.”
Valdomiro Carvalho
“Ele era realmente grande aqui. Eu ia com ele buscar boi no Mato Grosso, pra ganhar um dinheiro. Levava um mês. A gente ia pelo Porto São José, pegava um vaporzinho e atravessava a boiada de pouco em pouco.”
Paulo Tereziano de Barros
“O Capitão Telmo trouxe muita gente que ele achava que podia trabalhar no mato.”
José Francisco Siqueira (Zé Peão)
“Meu primeiro negócio com ele foi 30 sacas de arroz e 10 capados. Tudo fiado. Falavam que ele não pagava ninguém, tudo mentira. Depois de três dias, ele acertou comigo.”
Oscar Geronimo Leite
“Telmo Ribeiro era um dos mandões da época.”
José Ferreira de Araújo (Palhacinho)
“O telmo jogava snooker com a gente, andava com nós.”
José Alves de Oliveira
“Ele foi um dos grandes fregueses do meu bar. Nunca me deu um único prejuízo. Ia lá, comprava e pagava direitinho.”