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Dias Fernandes: “Fazer mal aos animais é indício de mau-caráter”
O poeta e jornalista paraibano que lutou pelo vegetarianismo nas primeiras décadas do século 20
Teria uns 45 anos. Frugal e vegetariano, nem fumava, nem bebia. Apresentava um aspecto juvenil de atleta, mantendo a forma através da ginástica sueca. Era alvo e corado, o cabelo esvoaçante, castanho claro. Algumas vezes ostentava petulante monóculo nos olhos azuis. Foi quem inaugurou andar sem gravata e sem chapéu. Com essas palavras, o intelectual Osias Gomes narra a chegada do jornalista, escritor e ativista vegetariano Carlos Dias Fernandes à redação do jornal A União, de Parahyba do Norte, atual João Pessoa, em 1919. Gomes dizia que Fernandes era o maior poeta da Paraíba, inclusive considerava seu trabalho superior ao de Augusto dos Anjos.
E para além das preferências pessoais, de acordo com o jornalista paraibano Gonzaga Rodrigues, Fernandes fez do Jornal A União uma escola de jornalismo por onde passou quase toda a juventude intelectual das primeiras décadas do século 20. Era muito admirado e respeitado, e justamente porque destoava da maioria. Não se importava com casamento formal, tinha uma dieta avessa à das pessoas com quem convivia, gostava de atividades físicas, se vestia sem atender as normas sociais e possuía imensa bagagem cultural.
“Aos 15 anos, segundo testemunho de Castro Pinto, amigo de infância, Carlos Dias Fernandes confundia os professores na análise gramatical dos mais difíceis trechos de Os Lusíadas. Foi influenciado por Cruz e Sousa [de quem era muito amigo] e esteve ao lado de outras diversas personalidades jornalísticas e poéticas do cenário brasileiro. Atuou na imprensa de Pernambuco, do Rio de Janeiro, do Pará e da Paraíba. Sua obra é extensa e variada, abarcando romances, discursos, poesias, monografia e livro didático”, informa a pesquisadora Fabiana Sena.
Embora hoje não seja muito conhecido fora do meio literário paraibano, o satírico e prosaico Fernandes lançou importantes obras, como Solaus, de 1901; Palma de Acantos, de 1907; A Renegada, de 1908; O Cangaceiro, também de 1908; Mirian, de 1920 e A Vindicta, de 1931. No entanto, se suas qualidades literárias não fizeram dele um autor famoso, as suas perspectivas sobre o ideal civilizatório fizeram menos ainda.
Um homem à frente do seu tempo, ao longo de anos realizou conferências e palestras sobre vegetarianismo, defendendo que a abstenção do consumo de alimentos de origem animal era o único meio de assegurar o respeito aos animais em um contexto moral e ético. E para reafirmar sua posição, o autor apresentou argumentos envolvendo saúde e higiene, considerando-os imprescindíveis como ferramentas de convencimento.
Controverso, Carlos Dias Fernandes chamou muita atenção quando publicou na edição de 5 de junho de 1918 do Jornal A União uma matéria em que defendeu fervorosamente a prática da medicina natural, confrontando laboratórios farmacêuticos. Também realizou uma grande conferência sobre feminismo em 1924, justificando que os direitos e deveres das mulheres precisavam estar de acordo com suas aspirações. Muito antes de livros como The Sexual Politics of Meat: A Feminist-Vegetarian Critical Theory, de Carol J. Adams, lançado em 1990, o escritor já argumentava que as mulheres, de forma semelhante aos animais, eram subjugadas, privadas de liberdade.
Para Fernandes, a melhor forma de ampliar a aceitação do vegetarianismo seria incentivando o desenvolvimento intelectual das mulheres e preparando-as para ocuparem grande espaço na vida pública. Ele tinha fé que elas poderiam ser o novo norte de uma educação que mostrava às crianças, logo nos primeiros anos, a importância de uma alimentação isenta de ingredientes de origem animal.
Suas inclinações ideológicas tiveram pouca repercussão no Brasil, mas foram bem recebidas na Europa, tanto que Fernandes aparece com destaque na edição Nº 11 da revista portuguesa O Vegetariano, de 1917. Prolífico, o escritor publicou 38 livros, abordando inclusive temas como feminismo e direitos dos animais. Oscilando principalmente entre o naturalismo e o simbolismo, Dias Fernandes obteve prestígio quando lançou em 1936 o seu romance autobiográfico Fretana, inspirado pelo simbolismo francês.
Sua defesa do vegetarianismo era frequentemente publicada no jornal A União, onde ele tinha total liberdade sobre o que escrever. Exemplos são três matérias veiculadas em agosto de 1916 sob o título O Regime Vegetariano, um desdobramento do que Fernandes já defendia no livro Proteção aos Animais, de 1914. Na obra, Fernandes, que não era religioso, cita religiões e crenças que endossam o papel do ser humano como protetor dos animais e da natureza. Polêmico, chegou a discutir com profissionais de saúde da época que defendiam o consumo de carne. Talvez o maior exemplo tenha sido a sua rixa com o então conceituado médico José Maciel.
A seu favor, o poeta e jornalista tinha o médico higienista Flavio Maroja que publicou no jornal A União de 30 de agosto de 1916 um artigo intitulado Hygiene Alimentar: Regimen Vegetariano e Regimen Carneo, confronto de opiniões, como penso a respeito, que fala dos benefícios do vegetarianismo. Em 26 de janeiro de 1917, Carlos Dias Fernandes comemorou a fundação da Sociedade Vegetariana Brasileira, sediada no Rio de Janeiro, e publicou matéria sobre o assunto. “Vai ganhando surto em todo mundo civilizado o regime vegetariano como solução prática do problema moral, economico e therapeutico dos povos. (…) Vegetarianismo quer dizer vida de accôrdo com a natureza”, registrou.
Segundo a pesquisadora Amanda Sousa Galvíncio, Fernandes reforçava seus argumentos sobre o assunto através de referências internacionais. Algumas delas foram os médicos Dujardin-Beaumetz, do Hôpital Cochin, na França; João Bentes Castel-Branco, autor do livro A Cultura da Vida, e Amilcar de Souza – diretor da revista O Vegetariano, além do biólogo Ernest Haeckel e do químico Eduard Buchner.
Porém, foi a própria literatura que conduziu Carlos Dias Fernandes ao vegetarianismo. Ele deixou de consumir alimentos de origem animal depois de ler Liev Tolstói, Lord Byron e Jean-Jacques Rousseau. Conforme Amanda Galvíncio, Fernandes citava com frequência pensadores como Sócrates, Hipócrates e Plutarco, além do Buda e Jesus Cristo, principalmente em suas palestras.
O que também reafirma a influência do vegetarianismo na vida e na obra do poeta são seus personagens que não raramente eram animais. No geral, a natureza sempre foi um tema recorrente em seus poemas e contos. Nascido em Mamanguape, na região da Mata Paraibana, em 20 de setembro de 1874, Carlos Dias Fernandes faleceu no Hospital da Cruz Vermelha no Rio de Janeiro em 9 de setembro de 1942.
Infelizmente, poucas pessoas compareceram ao seu enterro, um intrigante paradoxo na vida do homem que vivia rodeado de pessoas. Em seus últimos versos, jamais publicados, os animais ainda ocupavam posição de destaque. E apesar de esquecido pela literatura que tanto amou, uma de suas frases mais famosas, sobrevive ao tempo: “Fazer mal aos animais é indício de mau-caráter.”
Briário e Centímano (um dos poemas mais conhecidos de Fernandes)
Solitário coqueiro miserando,
Que as tormentas não deixam sossegar!
E, de contínuo, as palmas agitando
Pareces um vesânico a imprecar.
Desgraçada palmeira, como e quando
Irão teus pobres dias acabar;
E com eles ou teu destino infando
De cativo da Terra ao pé do Mar?
Hemos conformes nossos tristes fados.
Tu, germente Briaréu dos vendavais
Eu, Centímano de cem mil cuidados.
Um retorcido aos ventos outonais
Outro com os seus anelos sossobrados…
Nem sei qual de nós dois braceja mais
Saiba Mais
Carlos Dias Fernandes assumiu a direção do jornal A União em 1913. O convite foi feito em 1912 por Castro Pinto. Em 1928, o governador João Pessoa o demitiu do cargo. Desapontado, ele se mudou para o Rio de Janeiro, onde viveu até falecer.
Referências
Galvíncio, Amanda S. Atuação Educacional de Carlos Dias Fernandes na Parahyba do Norte (1913-1925): jornalismo, literatura e conferências (2013).
Sena, Fabiana. A tradição da civilidade nos livros de leitura no Império e na Primeira República. João Pessoa, PB. Tese de doutorado. PPGL/UFPB (2008).
Sena, Fabiana. A imprensa e Carlos Dias Fernandes: o processo de legitimação como autor de livro didático. Educação Unisinos, vol. 15, núm. 1, enero-abril, 2011, pp. 70-78.
Coutinho, Afrânio; Sousa, J. Galante de. Enciclopédia de literatura brasileira. São Paulo. Editora Global (1995).
O Vegetariano: mensário naturista ilustrado, Volume VIII, Nº 11 (1917).
Rodrigues, Gonzaga. Surgimento de A União. Disponível em http://auniao.pb.gov.br/nossa-historia/a-uniao-uma-viagem-no-tempo/leitura-contextual-do-surgimento-de-a-uniao.
Vegetarianismo. Imprensa Oficial. Parahyba (1916).
Santos, Idelette Fonseca. Antologia Literária da Paraíba. João Pessoa. Grafset (1993).
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Augusto dos Anjos e a consciência vegetariana
Na mão dos açougueiros, a escorrer/Fita rubra de sangue muito grosso/A carne que ele havia de comer!
O paraibano Augusto dos Anjos, por vezes qualificado como simbolista, parnasiano e pré-modernista, era na realidade um poeta solitário que pouco se via no contexto de qualquer corrente literária. Assim como muitos outros artistas, sofria com o anacronismo em relação às suas obras, poemas que fundamentados num tipo peculiar de panteísmo místico já externavam uma conexão entre o homem e a natureza, algo pouco compreendido até o seu falecimento precoce, aos 30 anos. Embora não haja registros sobre os hábitos alimentares de Augusto dos Anjos, não há dúvidas de que ele foi um dos primeiros escritores brasileiros a abordar a consciência vegetariana em suas obras. Ou seja, foi muito além da escatologia, da consciência da morte enquanto tema.
Sofredor é o termo coloquial que melhor define a essência do poeta paraibano que raramente se via livre da cefaleia e do desconforto existencial. Dotado de exímia sensibilidade, Augusto dos Anjos cristalizava suas insatisfações, anseios e observações com a mesma angústia do simbolista francês Arthur Rimbaud. E talvez esse fosse o maior indicativo de que ele era humano, demasiado humano, como no conceito criado e publicado por Nietzsche em 1878.
Educado em casa pelo próprio pai, um profícuo homem das letras, Augusto se identificou na infância com a linguagem das ciências naturais, o que o motivou a criar seus primeiros sonetos aos sete anos. “Desde a mais tenra idade me entreguei exclusivamente aos estudos, relegando por completo tudo quando concerne ao desenvolvimento, numa atmosfera de rigorosíssima moralidade, da chamada vida física”, disse o poeta em entrevista concedida a Licinio Santos em 1912 e publicada no livro A Loucura dos Intelectuais em 1914.
E o rigor moral realmente acompanhou o escritor ao longo de toda a sua vida. A maior prova são seus poemas publicados na obra póstuma Eu e Outras Poesias, lançada por iniciativa da Imprensa Oficial do Estado da Paraíba em 1920. No livro, sua consciência da relação dissonante da humanidade com a natureza é apresentada de forma ácida e veemente. Em À Mesa, a mórbida ironia revela a leviandade e a consciente cumplicidade humana no ato de se alimentar de animais:
Cedo à sofreguidão do estômago. É a hora
De comer. Coisa hedionda! Corro. E agora,
Antegozando a ensanguentada presa,
Rodeado pelas moscas repugnantes,
Para comer meus próprios semelhantes
Eis-me sentado à mesa!
Como porções de carne morta… Ai! Como
Os que, como eu, têm carne, com este assomo
Que a espécie humana em comer carne tem!…
Como! E pois que a razão me não reprime,
Possa a terra vingar-se do meu crime
Comendo-me também.
No bucólico Engenho do Pau D’Arco, em Sapé, sua cidade natal, Augusto dos Anjos chegou a conduzir sessões de mediunidade. Ainda assim, ele jamais se viu como um religioso. Muito pelo contrário. Suas obras sempre abordaram de forma satírica as mais pertinentes contradições que permeiam o cristianismo. No entanto, isso nunca o impediu de se identificar com o panteísmo, assim como o célebre e também incompreendido poeta inglês William Blake.
Quem sabe o escritor paraibano tenha sido atraído pelo fato de que a doutrina se baseia no reconhecimento de Deus em tudo que compõe a natureza. E a partir dessa influência, Augusto fez cabais associações entre a tradição mística do ocidente, o cientificismo que o acompanhou por toda a vida e a cultura oriental fundamentada em religiões védicas da Índia. Esse hibridismo e a constante busca pela sabedoria provavelmente tinham relação com a sua ânsia por entender o mundo, os seres humanos e sua relação com todas as formas de vida.
Exemplos de sua aspiração transcendental são os poemas O Meu Nirvana e Budismo Moderno, publicados no livro Eu, de 1912. Extremamente sensível, Augusto dos Anjos se empenhou em encontrar em fontes orientais um amenizador para a inquietude que o atormentava. “Sinto uma série indescritível de fenômenos nervosos, acompanhados muitas vezes de uma vontade de chorar”, confidenciou em entrevista a Licinio Santos. E foi essa emotividade à flor da pele que o motivou a escrever A Um Carneiro Morto, de 1909, que fala da desproporcionalidade entre a empatia animal e a truculência humana.
Quando a faca rangeu no teu pescoço,
Ao monstro que espremeu teu sangue grosso
Teus olhos — fontes de perdão — perdoaram!
Oh! tu que no Perdão eu simbolizo,
Se fosses Deus, no Dia de Juízo,
Talvez perdoasses os que te mataram!
Alimentado com leite de escrava na infância, Augusto dos Anjos não se orgulhava de sua herança fundamentada no patriarcalismo rural. Cresceu desinteressado pela socialização, o que lhe garantiu o apelido de “O homem ausente”. Importantes nomes da literatura brasileira, como Orris Soares e José Américo de Almeida, o descreviam como um sujeito de tez pálida e morena, mais alto do que baixo, franzino e recurvo, de fronte alongada e grandes olhos sem mobilidade. Suas mãos eram moles e denunciavam timidez. Andava como se estivesse sempre na ponta dos pés, e de longe sua magreza excessiva chamava atenção pelo aspecto insalubre. E nada disso parecia-lhe relevante, talvez até insignificante, já que para além do trabalho ele vivia imerso em si mesmo e na própria poesia. Em A Obsessão do Sangue, Augusto dos Anjos discorre sobre a barbárie consentida entre o açougueiro e o consumidor que se excita diante da carne a ser servida.
Levantou-se. E, eis que viu, antes do almoço,
Na mão dos açougueiros, a escorrer
Fita rubra de sangue muito grosso,
A carne que ele havia de comer!
No inferno da visão alucinada,
Viu montanhas de sangue enchendo a estrada,
Viu vísceras vermelhas pelo chão…
E amou, com um berro bárbaro de gozo,
O monocromatismo monstruoso
Daquela universal vermelhidão!
Graduado em direito, o poeta jamais atuou como advogado. Preferiu o magistério e se tornou professor no Liceu Paraibano. Se casou em 1910 e logo se mudou para o Rio de Janeiro, onde lecionou na Escola Normal e Ginásio Nacional. O salário era tão modesto que ele mal conseguia sustentar a família. Ainda assim, prosseguia escrevendo, dando vazão à sua vocação. No poema Monólogo de Uma Sobra, Augusto dos Anjos reafirma sua crença na relação entre a solidariedade, o cosmo e o misticismo. Em um excerto, ele escreveu:
E o animal inferior que urra nos bosques
É com certeza meu irmão mais velho!
Depois de quatro anos, e atendendo à recomendação médica, o poeta migrou para Leopoldina, em Minas Gerais, com a esposa Ester Fialho e os dois filhos. Lá, ele exerceu o cargo de diretor do Grupo Escolar até que faleceu em 12 de novembro de 1914 em decorrência de pneumonia.
Na área em que estou, ao matinal assomo,
Passa um rebanho de carneiros dóceis…
E o Sol arranca as minhas crenças como
Boucher de Perthes arrancava fósseis,
Escreveu Augusto dos Anjos em Estrofes Sentidas, poema que na minha opinião sintetiza sua empatia por todos os seres vivos, mesmo diante da própria finitude extemporânea.
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Augusto dos Anjos nasceu em 20 de abril de 1884 em Engenho do Pau D’Arco, em Sapé, na Paraíba.
Eu, seu único livro de poesia publicado em vida, foi lançado no Rio de Janeiro em 1912.
Os escritores preferidos do poeta eram William Shakespeare e Edgar Allan Poe.
Referências
Dos Anjos, Augusto. Eu e Outras Poesias. Bertrand SP (2001).
Santos, Licinio. A Loucura dos Intelectuais (1914).
Figueiredo, José Maria Pinto. A invenção do Expressionismo em Augusto dos Anjos. Universidade Federal do Amazonas (2012).
Paes, José Paulo. Augusto dos Anjos ou o evolucionismo às avessas. Novos Estudos (2008).
Viana, Chico. Autobiografia e lirismo em Augusto dos Anjos (2007). Disponível em chicoviana.com.
Erickson, Sandra, S. F. Augusto dos Anjos: Budismo Moderno. XVII Anais: Semana de Humanidades. UFRN (2010). Disponível em http://www.cchla.ufrn.br/shXVIII/artigos/G T05/Sandra%20S.F.%20Erickson.pdf.
Nóbrega, Humberto. Augusto dos Anjos e sua época. João Pessoa, Edição da Universidade da Paraíba (1962).
Sabino, Márcia Peters. A questão da religiosidade em Augusto dos Anjos. Disponível em http://www.seer.ufu.br/index.php/letraseletras/article/viewFile/25201/14017.
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Uma vez punk, sempre punk
João Henrique Andrade, das noitadas de anarquia em João Pessoa para a advocacia no Noroeste do Paraná
Nos anos 1980, João Henrique Andrade percorria as ruas de João Pessoa, na Paraíba, usando calças jeans rasgadas, jaqueta de couro com patches, rebites e frases, além do tradicional tênis converse ou coturno. “Andar com calça rasgada em 1986 tinha dois significados para a maioria da pessoas: você estava pedindo dinheiro ou era maluco. Então era difícil”, admite.
Integrante do movimento punk de João Pessoa, João Henrique, que começou a trabalhar com 13 anos, sempre marcava presença no Gueto, um lugar conhecido como o submundo da noitada punk. No local eram realizados muitos shows, discussões e estudos sobre anarquismo e ações do Grupo de Ação Libertária (GAL), aliado da Confederação Operária Brasileira (COB). Participante das panfletagens, Andrade era o vocalista e guitarrista da banda Mercenários da Anarquia (M.E.R.D.A.) que chegou a compor mais de 30 músicas até o final da década de 1980.
Naquele tempo, os eventos de punk-rock também chegavam ao centro, levando uma legião de anarquistas para o Teatro Lima Penante. “O público sempre lotava as festas punks em que tocávamos, até porque era um estilo de vida. Só não chegamos a gravar nada porque na época era muito caro e não tínhamos acesso a nenhum estúdio, uma realidade bem diferente da atual”, explica João Henrique, lembrando que a tecnologia era precária e os instrumentos musicais de boa qualidade eram praticamente inacessíveis.
Antes de formar a primeira banda, Andrade começou a fazer aulas de violão clássico. Entediado, agitado e motivado pelos ideais de contestação que conquistavam os jovens da época, decidiu comprar uma guitarra. “Eu queria fazer barulho. Então montei a M.E.R.D.A. em 1986 e escrevemos as canções ‘Ônibus” e ‘A Balada do Vagabundo’. Entendíamos pouca coisa de música, mas o nosso estilo não exigia mais que três ou quatro notas e uma boa batida. Era coisa simples e que ajudava a dar voz para as insatisfações da época”, enfatiza.
Amigo de Williard Fragoso, realizador do programa Jardim Elétrico, transmitido pela Rádio Universitária de João Pessoa, João Henrique conta que a programação era baseada em muito rock e também na divulgação das atividades e eventos do movimento punk. “O Jardim Elétrico deu a oportunidade para que muita gente conhecesse os grandes clássicos do gênero. Também estimulava e ajudava as bandas locais”, garante.
Quem levava informações e novidades sobre o que acontecia no cenário punk mundial eram os membros da banda Restos Mortais que viajavam com frequência para São Paulo. Outro destaque da época era a banda Disunidos que realizou três edições do show “União de Forças”. “A cena não vingou muito porque era difícil articular o movimento. Só que tínhamos muitos fanzines [revistas pequenas feitas pelos próprios fãs] e aquela coisa boa da sujeira, do selvagem, do bruto. Isso era legal! Lembro até hoje de Urubus Leprosos, uma banda que o pessoal curtia muito em João Pessoa. Eram punks que faziam releituras de músicas de Reginaldo Rossi, Odair José, entre outros”, relata.
No mesmo período, Andrade conheceu a banda de rock carioca Hojerizah que emplacou sucessos como “Que Horror” e “Pros Que Estão em Casa” e tinha como vocalista o célebre Toni Platão. “Outro dia conversei com o Clemente, dos Inocentes. Um cara muito pra frente. Comentei com ele sobre as Mercenárias, um grupo pós-punk que o Edgard Escandurra [do Ira!] produziu no início dos anos 1980. Elas estão coroas e continuam na ativa, cantando”, revela, sem deixar de mencionar que a banda punk Cólera, fundada em 1979 em São Paulo foi uma grande referência para os Mercenários da Anarquia.
Influenciado pelo livro “As Cinco Lições de Psicanálise”, de Sigmund Freud, João Henrique compôs músicas norteadas pelo conteúdo introspectivo e sonoridade psicodélica. “A base eram os níveis da personalidade humana, o estado de consciência e inconsciência que Freud divide em id, ego e superego”, confessa.
Em 1988, escreveu “Quarta-Feira Cinzenta” na quarta-feira de cinzas, música que integrou o repertório da segunda banda, a ID. “Tinha lido muito o apocalipse da Bíblia. Então sentei na cama com a minha velha Gianini branca e assim saiu a letra e a música numa pancada só. Chegamos a nos apresentar depois no Espaço Cultural José Lins do Rego e na Praça do Povo em João Pessoa”, narra.
Quando se mudou para o Paraná em 1991, Andrade se afastou um pouco da cultura punk para tocar em barzinhos. Em Cruzeiro do Sul, a pouco mais de 60 quilômetros de Paranavaí, no Noroeste do Paraná, ajudou a reorganizar a banda MDC, nome extraído da música “Tu És o MDC da Minha Vida”, de Raul Seixas. “Parei de cantar minhas composições nessa época. Só retomei quando vim pra Paranavaí em 1997. Voltei a compor em frequência menor e me aproximando mais do pop, de algo ainda mais simples”, diz.
Em Paranavaí, João Henrique retomou os estudos e se casou com Luzimar Ciríaco Andrade. Por incentivo de um tio, e contrariando todas as expectativas, ingressou no curso de direito. “Eu queria ser jornalista e isso era o que todo mundo da minha família costumava achar que eu seria. Acabei me formando na área e comecei a advogar”, confidencia.
Embora seja reconhecido como músico, Andrade prefere se definir apenas como punk, numa perspectiva bem pessoal. Justifica que carrega na essência o apego ao minimalismo e ao improviso, sem se preocupar muito com técnica. “Embora eu toque outros estilos hoje, ainda gosto muito do punk. Acho que é o som mais extravasante que existe. Não é difícil de tocar e alegra bastante. Tenho muitas coisas na cabeça, então acho que consigo fazer um disco numa tarde”, reitera sorrindo.
Em parceria com a esposa Luzimar, João Henrique realiza shows beneficentes para ajudar pessoas doentes ou que estão enfrentando grandes crises financeiras. “Também fazemos parte do grupo ‘Doutores da Tapioca’, formado por advogados e amigos. Tudo que arrecadamos é doado”, assinala. Como palestrante, ministra cursos de oratória com duração de 15 a 20 horas, além de oficinas de empregabilidade para jovens que estão em busca do primeiro emprego.
“É um trabalho que fazemos de graça e com muito prazer para entidades que não visam lucro”, afirma. Atual presidente da Associação Negritude de Promoção da Igualdade Racial de Paranavaí (Anpir), João Henrique está se empenhando em firmar parcerias para a realização de oficinas de percussão na periferia de Paranavaí. O objetivo é ensinar crianças e adolescentes a produzirem e a tocarem os instrumentos.
O retorno ao punk-rock
Atualmente João Henrique Andrade tem uma grande parceria com o poeta e letrista João Zaia, de Prudentópolis, no sudeste paranaense, com quem já produziu mais de dez composições. “Hoje o que mais me inspira são as coisas do coração e da vida. O ódio generalizado, o poder da grande mídia e a mudança de temperamento das pessoas na internet também me estimulam a escrever e fazer o bem”, admite.
Andrade começou a gostar de música ouvindo Secos & Molhados e os britânicos do Queen. Mais tarde, quando conheceu a banda inglesa The Smiths se redescobriu musicalmente, principalmente pela complexidade lírica do pós-punk. “Aquele estilo deprê do Morrissey logo chamou a minha atenção. Foi a minha banda preferida por muito tempo. Também curti bastante O Terço, uma banda carioca das antigas que chamam de lado B, alternativo”, frisa e ressalta que até hoje curte clássicos do punk-rock como Sex Pistols, Dead Kennedys, Ramones, The Clash, Misfits e Black Flag.
Relembrando os velhos tempos, recentemente João Henrique localizou o radialista Williard que produzia o programa Jardim Elétrico em João Pessoa, na Paraíba. “Aquele cara que deu tanta força pro movimento punk continua trabalhando com música e também se tornou filósofo. Conversamos muito sobre aquele período”, destaca.
Com a experiência de quem vive em Paranavaí há 18 anos, avalia o movimento musical local como maravilhoso. “Temos o grande Festival de Música e Poesia de Paranavaí [Femup], além de um movimento em ascensão capitaneado pelo Hugo Ubaldo da banda Sub-Versão e o Quintal Mágico, projeto do multiartista Sérgio Torrente que abre espaço para músicas autorais. Outro ponto alto é o Estúdio Garagem, dos irmãos Bellanda. Temos muita coisa coletiva e legal”, argumenta.
Andrade planeja retomar um antigo projeto que é a formação de uma banda de punk-rock voltada para a sonoridade dos anos 1980 e com letras que abordam temas atuais. “Vou voltar a falar um pouco de id, ego e superego, conceitos da psicanálise. Na realidade, já estou abrindo um pouco de espaço para a autoralidade, tanto que nos shows que faço atualmente em barzinhos já incluo alguma música minha. É uma forma de abrir caminho para que os outros também façam isso”, justifica.
Homenagens e premiações no Femup
A primeira vez que João Henrique Andrade se inscreveu em um festival foi em 2003. Sem pretensão, enviou uma música com produção caseira para o Festival de Música e Poesia de Paranavaí (Femup), mas não se classificou. “Era só voz e violão. Não desisti e continuei compondo. Só que optei por voltar a concorrer só em 2013, quando entrei em estúdio para gravar a música ‘Pra Sempre Vou Te Amar’ em homenagem ao meu filho Bruno. Daí veio a minha primeira premiação”, lembra.
No ano seguinte, o músico foi premiado no Femup pela autoria de “Mandela”, um reggae que escreveu quando ainda morava em João Pessoa e ficou sabendo da soltura do sul-africano Nelson Mandela em 11 de fevereiro de 1990. “Tenho escrito mais músicas em homenagens aos familiares e amigos de antigamente. Também estou resgatando canções antigas que não gravei, como é o caso de ‘Quasar’ que fala um pouco do que vivi na Paraíba até 1992”, pontua. Na região de Paranavaí, João Henrique também conquistou muita popularidade após fundar e se apresentar muitas vezes com a banda Tio João.
Saiba Mais
João Henrique Andrade também tem formação em teatro pela Fundação José Lins do Rego, de João Pessoa, na Paraíba.
Clemente, da banda Os Inocentes, com quem João Henrique teve um breve contato, é um dos expoentes da cultura punk no Brasil e um dos principais membros da banda brasiliense Plebe Rude.