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Esperando por Samuel Beckett
Waiting For Godot e a importância da Resistência Francesa na literatura de Beckett
Durante a Segunda Guerra Mundial, o dramaturgo e escritor irlandês Samuel Beckett, famoso principalmente pela obra Waiting For Godot (Esperando Godot), um dos maiores clássicos do teatro do absurdo, foi um importante membro da Resistência Francesa, chegando a receber duas condecorações por serviços prestados em prol da humanidade.
Porém, antes da homenagem e do reconhecimento, Beckett por pouco não foi morto durante a guerra. No outono de 1942, um informante se infiltrou em seu grupo e forneceu valiosas informações aos nazistas, resultando na morte e na captura de muitos dos amigos do partisan irlandês. Percebendo que seu disfarce foi descoberto, Beckett e sua companheira Suzanne Deschevaux-Dumesnil vestiram seus casacos e deixaram o apartamento em Paris como se estivessem apenas saindo para uma caminhada.
Depois de dois meses vivendo em diversos esconderijos, o casal fugiu a pé em direção a uma remota montanha no sudeste da França. À época, eles andavam à noite e dormiam durante o dia. Até que se cansaram e optaram por esperar o final da guerra. Essa experiência marcou tanto a vida de Samuel Beckett que ele a usou como base para criar os dois personagens mais importantes de Waiting For Godot – Vladimir e Estragon.
Sobre a ideia do nome da obra, a hipótese mais aventada é a de que o irlandês um dia estava andando pelas ruas de Paris quando parou e perguntou a uma multidão o que eles estavam fazendo. “Estamos esperando por Godot”, disseram, em referência ao ciclista mais velho da Tour de France, e que ainda não havia passado por ali. “Ele escreveu uma das peças mais intrigantes do Século XX. Beckett nunca explicou o título dela. Ele preferia zombar de todos que tentassem explicar o seu significado”, comenta o escritor canadense e professor de literatura Steve King.
A verdade é que o dramaturgo era um exímio apreciador da privacidade, e não abria mão disso por nada. Também se tornou cético em relação à linguagem literária e passou a vida entre a agonia psicológica e filosófica. Há quem acredite que tentaram transformá-lo em um homem romântico, mas ele não era nada disso. “Não, ele não era um sujeito charmoso, caridoso ou com uma polidez típica do Velho Mundo. Na realidade, ele não fazia questão de saber o que as pessoas achavam de suas palavras ou de sua vida”, revela o escritor canadense.
Waiting for Godot foi uma evasiva na vida de Samuel Beckett. Ele decidiu escrever a peça para se distrair e fugir de uma “horrível prosa” que estava concebendo em 1948. “Samuel Beckett queria criar algo divertido e fácil de produzir, uma obra para pagar as contas. Waiting For Godot não foi apenas uma mudança de ritmo e gênero, mas de linguagem. Ele esperava escrever a peça em francês para tentar desencadear algo novo”, comenta King.
A peça foi um divisor na vida do escritor. Um crítico chegou a dizer que, diante de Waiting For Godot, todas as peças francesas pareciam escritas com espinhos, não com canetas. Próximo da meia-idade, Beckett inovou ao aproximar o público da realidade do teatro do absurdo.
Com uma peça baseada em dois atos, e onde nada acontece duas vezes, os personagens mais parecem foragidos de um teatro de variedades. “É como se trancassem os Irmãos Marx, Charlie Chaplin e um palhaço em um horror tão absurdo que, sem nenhum tipo de antídoto, só restaria ao público as gargalhadas”, avalia Steve King.
Por anos, Suzanne Descheveaux-Dumesnil fez o trabalho que o dramaturgo depreciava. Ou seja, foi ela quem ofereceu a obra para mais de 40 produtores que se mostraram confusos e medrosos em relação à viabilização da peça. Quando realmente conseguiram encontrar alguém interessado no projeto, o desespero veio à tona através do elenco. Os atores sempre perguntavam o que Beckett queria dizer com os diálogos. E ele simplesmente encolhia os ombros, sem dar respostas.
Na noite de abertura, no dia 5 de janeiro de 1953, houve um burburinho sem precedentes no Théâtre de Babylone, em Paris. Os espectadores chegaram a disputar as cadeiras dobráveis de um café que ficava ao lado do teatro. Alguns qualificaram a peça como um embuste, uma fraude. Deixou muita gente confusa. Só que a maioria concordou com as impressões publicadas na primeira resenha: “Uma peça que faz jus ao nosso tempo”, escreveram.
Àquela altura, a pressão sobre Beckett cresceu muito. Todos queriam vê-lo, inclusive a imprensa e o diretor do espetáculo. No entanto, embora o escritor tenha comparecido a todos os ensaios, ele não prestigiou a estreia. Samuel Beckett desapareceu por duas semanas. Com o crescimento das controvérsias e da repercussão de Waiting for Godot, o dramaturgo foi cuidadoso e evitou a fama o máximo que pôde. “Estou cansado de todos esses mal-entendidos. Por que as pessoas têm que complicar uma coisa tão simples?”, lamentou.
Saiba Mais
Samuel Beckett nasceu em Dublin, na Irlanda, em 13 de abril de 1906 e faleceu em Paris em 28 de dezembro de 1989.
Vivendo em Paris em 1937, o escritor sobreviveu por quase uma década traduzindo obras de outros escritores. Durante esse período, publicou alguns poemas, ensaios e seu romance Murphy, lançado em 1938, depois de tantas dificuldades para encontrar um editor que acreditasse em seu trabalho.
Entre seus melhores trabalhos estão Waiting For Godot, Murphy, Molloy, Malone Dies, The Unnamable e Endgame.
Diálogo da página 23 de Esperando Godot
POZZO – (Cortante) Quem é Godot?
ESTRAGON – Godot?
POZZO – Vocês me tomaram pelo Godot.
VLADIMIR – Oh, não senhor! Nem por um momento, senhor.
POZZO – Quem é?
VLADIMIR – Pois é um …, é um conhecido.
ESTRAGON – Mas, vamos, não o conhecemos quase.
VLADIMIR – Evidentemente…, não lhe conhecemos muito bem…; não obstante…
ESTRAGON – Eu, certamente, não lhe reconheceria.
POZZO – Vocês me confundiram com ele.
ESTRAGON – Bem…, a escuridão…, o cansaço…, a debilidade…. a espera…; reconheço…que por um momento… acreditei…
VLADIMIR – Não leve em conta, senhor, não faça caso!
POZZO – A espera? Então, esperavam-lhe?
VLADIMIR – Quer dizer…
POZZO – Aqui? Em minhas terras?
VLADIMIR – Não pensávamos fazer nada de mau.
ESTRAGON – Tínhamos boas intenções.
POZZO – O caminho é de todos.
VLADIMIR – É o que nós dizíamos.
POZZO – É uma vergonha, mas é assim.
ESTRAGON – Não HÁ NADA A FAZER.
Referências
http://www.todayinliterature.com/
http://www.samuel-beckett.net/speople.html
Bair, Deirdre. Samuel Beckett: A Biography. Vintage. (1978).
Fletcher, John. About Beckett. Faber and Faber, London (2006).
Beckett, Samuel. Waiting for Godot: A Tragicomedy in Two Acts. Grove Press (2011)
Balzac e o seu apetite voraz pela escrita
A morte do escritor foi atribuída a uma parada cardíaca após muito café e tantas noites sem dormir
Os últimos meses de vida do prolífico escritor francês Honoré de Balzac foram tão agitados quanto todos os anos de sua vida, o que diz muito sobre a sua inspiração para criar 17 volumes de La Comédie humaine, além de muitos outros trabalhos. São obras que entraram para a história da literatura mundial e influenciaram autores como Marcel Proust, Émile Zola, Charles Dickens, Fiódor Dostoiévski, Henry James, Italo Calvino, Machado de Assis e Camilo Castelo Branco.
“A condessa polonesa com quem Balzac se correspondeu ao longo de seis anos se comprometeu em se casar com ele assim que ficou viúva. Mas ela preferiu agir com cautela quando soube das dívidas, decepções e apetites do autor”, narra o escritor canadense e professor de literatura Steve King. Ainda assim, faltando cinco meses para o falecimento do francês, a condessa Ewelina Hańska concordou com o casamento, declinando uma proposta também recebida do compositor húngaro Franz Liszt.
Ao saber da boa notícia, Balzac se apressou e a visitou em sua propriedade, onde ele esteve pela primeira vez em 1943 e ficou impressionado ao saber que ela possuía uma área de aproximadamente 21 mil acres, três mil serfs (escravos), 300 empregados, a sua própria orquestra e um hospital. “Ele levou consigo quatro dúzias de pares de luvas para as belas mãos da condessa”, informa King.
Honoré de Balzac passou a maior parte da sua vida adulta oscilando entre os extremos da riqueza e da pobreza. Com peculiar personalidade, um dos motivos que o levou à falência foi sua tentativa em transformar sua casa em Paris numa fazenda de abacaxis. Ele escrevia incessantemente, tanto que seu médico atribuiu sua morte a um coração fraco que parou de funcionar depois de tantas noites sem dormir, consumindo grandes quantidades de café.
Balzac acreditava que todo ser humano tem a seu dispor uma finita reserva do fluido da vitalidade, e ela diminui de acordo com nossas ações e desejos. No caso do escritor francês, foi condenado a morrer precocemente por causa do seu apetite voraz pela escrita.
Mas não sem antes passar os últimos meses de vida buscando a realização pessoal. “Se eu não alcançar a grandeza com La Comédie humaine, vou pelo menos obtê-la de outra forma no fim de minha vida”, comentou Balzac já com a saúde debilitada, em referência ao casamento com a condessa.
A comédia humana ia além das obras de Balzac; era a sua própria vida. Para abordar os aspectos sociais nos seus romances, ele vagava à noite pelas mais famigeradas ruas de Paris, hábito que manteve por anos, assim como fez Dickens em Londres. Ele também gostava de sair de madrugada porque a prisão de devedores era proibida entre o pôr e o nascer do sol, e assim ele não corria riscos.
Como se a vida imitasse a arte, Honoré de Balzac foi enterrado no Cemitério do Père-Lachaise em um túmulo próximo de onde um de seus personagens mais famosos, o jovem Eugène de Rastignac, do romance Le Père Goriot (O Pai Goriot), derramou a última lágrima no velório do velho Goriot.
Trecho de O Pai Goriot (páginas 236-237)
Às seis horas, o corpo do pai Goriot desceu à cova, em torno da qual estavam os criados das filhas, que desapareceram com os religiosos logo que foi pronunciada a curta oração devida ao bom velho através do dinheiro do estudante. Os dois coveiros, depois de atirarem algumas pás de terra em cima do caixão, para ocultá-lo, ergueram-se, e um deles, dirigindo-se a Rastignac, pediu-lhe uma gorjeta. Eugênio revistou os bolsos e, não tendo encontrado nada, foi obrigado a pedir vinte soldos emprestados a Cristóvão.
Esse fato, tão insignificante em si mesmo, causou a Rastignac um horrível acesso de tristeza. Caía a tarde. Um crepúsculo úmido irritava os nervos. Eugênio contemplou a sepultura e enterrou nela sua derradeira lágrima de rapaz, aquela lágrima arrancada pelas puras emoções de um coração puro, uma dessas lágrimas que, da terra onde caem, se elevam até o céu. Cruzou os braços e admirou as nuvens. Vendo-o nessa atitude, Cristóvão o deixou.
Ficando só, Rastignac encaminhou-se para a parte alta do cemitério e de lá viu Paris, tortuosamente deitada ao longo das duas margens do Sena, onde as luzes começavam a brilhar. Seus olhos fixaram-se quase avidamente entre a coluna da Place Vendôme e os Invalides, no ponto em que vivia aquela bela sociedade na qual quisera penetrar. Lançou àquela colmeia sussurrante um olhar que parecia sugar-lhe antecipadamente o mel e proferiu esta frase suprema: — Agora, é entre nós dois! E como num primeiro ato de desafio à sociedade, Rastignac foi jantar à casa da sra. de Nucingen.
Saiba Mais
Honoré de Balzac nasceu em 20 de maio de 1799 em Tours, na França, e faleceu em Paris em 18 de agosto de 1850.
Entre suas principais obras estão La Comédie humaine, Eugénie Grandet, La Peau de chagrin, Le Père Goriot, Colonel Chabert, La Rabouilleuse, Le Lys Dans la Vallée, Illusions Perdues e Splendeurs et Misères des Courtisanes.
Referências
http://www.todayinliterature.com/
http://balzac-museum.com/
Graham, Rob. Balzac: A Biography – W. W. Norton & Company; Reprint edition (1996).
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Flaubert e o julgamento que popularizou Madame Bovary
O escritor dividiu a bancada dos réus com “batedores de carteira” e jovens acusados de pederastia
O escritor francês Gustave Flaubert publicou Madame Bovary em 12 de abril de 1857. Mas a obra jamais despertaria tanta atenção na época se não tivesse sido considerada subversiva, o que levou o autor a um dos julgamentos mais famosos da literatura francesa.
Com tanto alarido em torno do livro, Flaubert conseguiu publicidade gratuita e Madame Bovary rapidamente se tornou um sucesso. A primeira novela exigiu cinco anos de dedicação do escritor e um retorno de 800 francos, uma quantia insignificante se levarmos em conta que só o estenógrafo que atuou em seu julgamento cobrou o mesmo valor por duas semanas de trabalho.
Porém, apesar do prejuízo, a novela e o julgamento fizeram a reputação de Gustave Flaubert, mais tarde reconhecido como criador de um novo estilo de escrita, com rítmica versada e precisão que remetia à linguagem científica. Com o veredito a seu favor, o escritor conseguiu assegurar que ninguém comprometesse o retrato detalhista e inédito na literatura francesa de uma realidade considerada “ignóbil” e tão costumeiramente velada em Paris.
Tudo começou quando Flaubert quis publicar sua obra na revista Revue de Paris e recebeu a resposta de que Madame Bovary precisava passar por cortes. “Você enterrou seu romance sob uma pilha de detalhes supérfluos. Ele não é claro o suficiente, porém é uma tarefa fácil que daremos a alguém experiente e inteligente. O trabalho vai custar 100 francos”, informaram.
A revista acabou publicando o livro em partes e fez alterações que não foram aprovadas pelo escritor. Quando soube, Flaubert exigiu que a Revue de Paris divulgasse uma nota em que ele deixava clara a sua reprovação. Logo que a crítica foi publicada, as autoridades francesas acusaram todos os envolvidos de ofensa à moral pública.
No dia do julgamento, Flaubert dividiu a bancada dos réus com “batedores de carteira” e jovens acusados de pederastia. Durante a sessão, o escritor foi obrigado a ouvir como o seu trabalho era de “mau gosto”, um tipo desprezível de “poesia do adultério”. Ainda assim conseguiu a absolvição e sua obra acabou eternizada na história da literatura mundial.
De acordo com o escritor canadense e professor de literatura Steve King, dentro de um ano, mais uma vez a vida imitou a arte. Em Hamburgo, na Alemanha, os veículos que transportavam as prostitutas começaram a ser chamados de Bovaries.
Madame Bovary
Saiba Mais
Gustave Flaubert nasceu em 12 de dezembro de 1821 e faleceu em 8 de maio de 1880 em decorrência de uma hemorragia cerebral.
Além de Madame Bovary, outras obras que fizeram a fama de Flaubert são Salambô e A Educação Sentimental.
O livro Madame Bovary foi adaptado para o cinema pela primeira vez em um filme de Albert Ray, lançado em 1932. Porém, aquela que ficou conhecida como a melhor versão surgiu em 1949 com o cineasta Vincente Minnelli. Em 2014, e sob direção de Sophie Barthes, a obra foi relançada no cinema com um elenco composto por Mia Wasikowska, Henry Lloyd-Hughes, Paul Giamatti e Ezra Miller.
Referências
http://www.todayinliterature.com/
Laurence M. Porter, Eugène F. Gray. Gustave Flaubert’s Madame Bovary: a reference guide. Greenwood Publishing Group (2002).
Gustave Flaubert’s Life, Madame Bovary, Alma Classics edition (2010).
Gustave Flaubert, Francis Steegmüller (1980). The Letters of Gustave Flaubert: 1830–1857. Harvard University.
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Charlie Hebdo, Siné e liberdade de expressão
Dizem que o jornal francês Charlie Hebdo defende a liberdade de expressão acima de tudo. Tudo bem. Então por que demitiram o cartunista Siné em 2009? O demitiram porque ele fazia críticas ao semitismo. Ou seja, assim como muitos veículos de comunicação, o Charlie Hebdo também tem seus interesses bem definidos, e não se trata apenas de liberdade de imprensa.
É algo mais subjetivo, embora muita gente prefira encarar a situação sob uma perspectiva simplista e radicalmente maniqueísta. Há pessoas até divagando e comparando os cartunistas ao Carlos Martel, o tal herói que livrou a Europa da expansão islâmica na Idade Média. O que chama atenção também é que o jornal lançou três milhões de exemplares em 16 idiomas na edição seguinte ao atentado em Paris, no dia 7 de janeiro de 2015. Uma enorme discrepância com a edição anterior, limitada a 60 mil cópias.
Mesmo sediado em Paris, o Charlie Hebdo sempre foi considerado um veículo com um orçamento modesto, tanto que enfrentou inúmeras crises financeiras para não fechar as suas portas. Sendo assim, quem financiou isso tudo? E com qual interesse?
A mídia tradicional não funciona sem geração de lucros e muito menos com dívidas. Visibilidade e comunicação se constituem em formas de poder, logo é difícil crer que o foco do semanário satírico seja apenas a liberdade de expressão. Torço apenas para que a tragédia do ano passado não tenha sido usada para alimentar interesses escusos.
Miodrag Petrović e a arte que nasce da guerra
Quando a poesia humanista de um sérvio é capaz de eternizar soldados
Não faz muito tempo que a Biblioteca Nacional da Sérvia (Народна библиотека Србије) lançou um projeto da Coleções Europeana baseado na obra de Miodrag Petrović, um artista que acompanhou todos os passos do Exército Sérvio na Primeira Guerra Mundial (1914-1918).
Pouco conhecido no mundo todo, com exceção da Sérvia, parte do trabalho de Petrović só se tornou público após mais de 90 anos. Seus desenhos e pinturas são acompanhados de poemas e textos alusivos em que amplifica interpretações pessoais, recria metáforas e enigmas. Vez ou outra detalhava o que acontecia no momento de criação de cada imagem, como se reconhecesse a importância de confundir e ao mesmo tempo situar o espectador no contexto da guerra – em situações de conflito ou bastidores.
Para entender a pluralidade do trabalho de Miodrag Petrović é preciso primeiro saber um pouco sobre o seu passado. Nascido em 1888, começou a estudar arte ainda na infância. Mais tarde, migrou para a Alemanha, onde se aperfeiçoou na Academia de Belas Artes de Munique. Com a animosidade do pré-guerra, retornou para a Sérvia e se alistou no Exército. As boas qualificações lhe garantiram um raro reconhecimento como artista militar.
Petrović participou de várias batalhas ao redor de Belgrado em 1914, até que no inverno de 1915 o enviaram para Montenegro, Albânia e ilha grega de Corfu. Antes da guerra chegar ao fim, o artista tinha documentado muitas impressões e criado inúmeras obras das experiências em Tessalônica, na Grécia, e também nos hospitais das campanhas acirradas na Tunísia e Argélia.
Em 1919, Miodrag retomou os estudos de arte em Paris, onde trabalhou e conviveu com alguns dos mais importantes nomes da pintura francesa da época. Apaixonado pelas artes visuais, prosa e poesia, o artista que faleceu em Belgrado em 1950 desenhou, pintou e escreveu até os últimos meses de vida.
Uma de suas obras de maior repercussão é O Funeral no Navio-Hospital Divona, sobre a embarcação para onde eram transportados os soldados e oficiais sérvios e franceses – doentes e feridos na Primeira Guerra Mundial. Em um de seus trabalhos disponíveis na Biblioteca Nacional da Sérvia, Miodrag explica que em 1915 participou de uma missão no Divona para enviar a Bizerta, na Tunísia, os impossibilitados de lutar. “Dois de nossos soldados morreram durante a nossa viagem pelo Mar Mediterrâneo. Um estava ferido e o outro doente. Testemunhei seus corpos sendo lançados ao mar sob a noite enluarada”, contou.
No relato, diz que às 20h a lua cheia engrandecia o céu límpido. Os dois jovens mortos eram mantidos com a cabeça voltada às bordas do navio enquanto os pés miravam o mar. “Incrível como aqueles cadáveres estavam mentindo, cobertos com a bandeira francesa. Claro, a cor vermelha mais próxima do mar e o branco e o azul disperso, ao longe”, comentou. Para Miodrag, o mar estava especialmente azul-esverdeado, assim como o céu, com o acréscimo do brilho do luar que refletia na água com certa magia.
As lâmpadas da parte de trás do navio continuavam desligadas. Apenas uma pequena luz parcial do lado direito iluminava a cerimônia fúnebre capitaneada por um sacerdote. O homem vestido de preto e usando uma estola se voltou para os corpos e o mar quando começou a ler a bíblia em voz baixa, quase em silêncio. Logo atrás estava o capitão do navio, também trajando roupa preta e, pela primeira vez em toda a viagem, com a cabeça descoberta.
À esquerda do capitão, havia um oficial francês ferido e dois sérvios. Os corpos estavam ladeados por dois marinheiros à esquerda e dois à direita. “Era possível ver de longe o azul ao redor de suas cabeças, a cabeleira branca e o topete vermelho. Nossos soldados feridos e doentes vinham logo atrás, acompanhados por duas enfermeiras de branco com a cruz vermelha em torno de seus braços”, detalhou.
Enquanto a cerimônia era iluminada por uma trêmula e pálida luz amarela-esverdeada, os rostos de todos os presentes tinham o mesmo aspecto – de tristeza e solenidade. Assim que o padre terminou a oração, as enfermeiras sussurraram a Oração do Senhor. “Me recordo do padre dando alguns passos para trás, fechando a bíblia, virando-se para o capitão e falando: ‘Terminei’. Em seguida, o comandante fez um rápido sinal e se aproximou dos corpos”, confidenciou Petrović.
No discurso arquivado há quase cem anos, e muito bem preservado pela Biblioteca Nacional da Sérvia, o capitão disse o seguinte: “Camaradas, longe de sua terra natal, vocês deram o último suspiro neste fraternal barco francês. Vão para o outro mundo, confiantes de que seus filhos, esposas e pais muito em breve viverão a liberdade que vocês não puderam desfrutar. Adeus, camaradas. Adeus…Adeus…”
Ao final, o capitão deu um sinal e dois marinheiros levantaram uma parte do tabuleiro e os deslizaram em direção ao mar, onde os corpos afundaram com 30 quilos de ferro presos aos pés. Logo que os cadáveres se chocaram contra a água, um marinheiro soprou bem alto um apito. O ato foi seguido por cinco minutos de silêncio. “Mesmo que tenhamos enterrado tantos companheiros e visto milhares de defuntos, ainda assim era algo que tinha um impacto muito grande sobre todos, a ponto de ninguém ser capaz de dizer uma palavra”, revelou o artista militar.
Prosa, Poesia e a Nova Odisseia (Ulisses)
Em outra de suas obras, intitulada Prosa e Poesia, Miodrag Petrović apresenta um retrato peculiar e bucólico da guerra, baseado na imagem de um soldado sentado debaixo de uma bela laranjeira, abundante em frutos, tentando remover os piolhos que o incomodavam. “O percebi intoxicado pelo cheiro da laranja. As cascas se deitavam ao seu lado. Ele estava encantado com o céu azul e a superfície azul-esverdeada do mar por onde um barco colorido deslizava. Do outro lado da água, podia-se ver a costa da Albânia com as docas cobertas em neve. O rapaz gentilmente retirou o casaco e interrompeu os incômodos insetos aninhados. Tudo para não se distrair da poesia daquele momento”, escreveu Petrović.
Já a obra Nova Odisseia (Ulisses) nasceu de um episódio envolvendo o bombardeamento de um navio por submarinos alemães. A embarcação partia de Bizerta, na Tunísia, para a cidade grega de Tessalônica. Na tragédia, apenas um soldado sérvio, um senegalês e dois franceses – um soldado e um marinheiro – sobreviveram. Os quatro se salvaram graças a uma jangada feita de tábuas grossas, um recurso salva-vidas muito comum nos barcos da Primeira Guerra Mundial.
Chegaram a uma costa rochosa vestindo apenas trapos, morrendo de fome, sede e quase “azuis de frio”. “Só lhe restaram as túnicas de verão. Apesar da exaustão, ficaram muito felizes por sobreviverem depois de remarem tanto com as pernas”, enfatizou. Segundo a obra de Miodrag, o mar ficou extremamente agitado e os quatro só não morreram porque surgiram as nereidas.
Enquanto riam histericamente, as ninfas do mar os rodearam e puxaram a jangada em direção à costa, percorrendo pelo menos cem metros. Os sobreviventes estavam pálidos, assustados e confusos. Sentado sobre uma pedra, o soldado sérvio ficou com o olhar vagando em direção à pátria. Logo atrás, uma nereida em pé tocava uma harpa feita de madeira e cantarolava melodias expansivas, na tentativa de animá-lo. “O mar já estava calmo e o dia claro, mas perto das rochas havia apenas uma caverna”, narra o artista, deixando a interpretação livre.
A fábula de Amélie Poulain
Jeunet e a beleza embutida de simplicidade
Lançado em 2001, O Fabuloso Destino de Amélie Poulain, é um filme popular de estética leve e colorida do cineasta francês Jean-Pierre Jeunet que aborda a beleza da natureza humana a partir de uma jovem que tenta se distanciar das complexidades da vida.
O Fabuloso Destino de Amélie Poulain é um contraponto no universo de criações sombrias de Jeunet. O filme transmite beleza e uma peculiar pureza do início ao fim, tendo como elemento central da história a graciosa Amélie Poulain (Audrey Tautou), uma jovem que após a morte da mãe se muda sozinha para o boêmio Montmartre, em Paris, onde consegue um trabalho como garçonete.
O maior hobby de Amélie é observar pessoas; a ela, seres tão desconhecidos, mas ao mesmo tempo fantásticos. O passatempo surge a partir de um episódio vivido na infância. O pai, Raphael Poulain (Rufus), após realizar alguns exames com a filha, a diagnosticou com um problema cardíaco crônico, a privando de ir ao colégio, ter amigos e até mesmo sair de casa. Poulain nunca soube que o coração de Amélie sempre acelerava justamente pela sua presença, um contato tão raro.
Amélie poderia ter se tornado alguém com graves distúrbios psicológicos e emocionais. Mas nada disso acontece. Já adulta, deixa de ser uma espectadora para se tornar protagonista da própria vida. A cena em que entrega um relicário com brinquedos ao ex-proprietário do apartamento onde mora é uma das mais memoráveis. A satisfação do homem é transcendental.
Amélie percebe algo que conjugado a sua sensibilidade não é comumente notado pela maioria das pessoas: pequenas coisas tornam a vida mais rica e a inflam de sentido não pelo que são, mas pelo que representam. A partir daí, o mundo da personagem se materializa num espectro de ações altruístas.
Sobre a estética usada por Jeunet, é destacável o uso e abuso de cores nos planos de filmagens, o que proporciona vivacidade surreal e representa a exteriorização da beleza interior de Amélie. Em cor pastel, os tons leves da fotografia remetem à pureza existencial da garçonete. Além disso, a presença de um narrador em off garante um caráter didático e descritivo.
Há também muitas cenas de cortes rápidos, flertando com a edição objetiva usada em videoclipes, além de outras em plano-sequência; tudo contribuindo para tornar a obra mais dinâmica. No mais, O Fabuloso Destino de Amélie Poulain é um filme humanista com características de fábula que cria uma ponte entre a realidade física e a fantasia psicológica.
Trilha Sonora
Após o lançamento do filme, a trilha sonora do compositor francês Yann Tiersen ganhou projeção mundial, sendo regravada por centenas de artistas e usada como background de milhares de espetáculos por todo o mundo, além de programas televisivos. Sem dúvida, a canção mais popular da soundtrack é Comptine d’Un Autre Été que recebeu várias versões do próprio Tiersen.
Uma garota de programa em paradoxo
Godard e a perspectiva humanista sobre uma personagem marginalizada
Vivre Sa Vie, Lançado no Brasil como Viver a Vida, é um clássico da Nouvelle Vague de 1962, do controverso cineasta francês Jean-Luc Godard. O filme conta a história de Nana, uma garota de programa que sonha em ser atriz e vive o paradoxo de preservar a própria integridade.
Viver a vida é protagonizado por Anna Karina que empresta beleza a personagem Nana. Por si só, o rosto angelical e expressivo da atriz propõe um paradoxo ao encarnar uma meretriz. Sem cenas tórridas de lascívia, exibicionismo, exaltação da sexualidade ou até mesmo beijos quentes, o filme é uma perspectiva humanista sobre uma personagem marginalizada. Na obra, a garota de programa assume uma notoriedade idiossincrásica em que citações literárias e filosóficas determinam o cotidiano.
Embora depreciada pela sociedade, Nana é uma caricatura expressionista vivendo sob um prisma de valores criados por ela mesma, totalmente desvinculada do caráter maternal imposto às mulheres. O contexto, quando imaterial, se resume a um universo reflexivo, onde a objetividade e o concreto só existem em razão da subjetividade. Tudo é transmitido no filme por etapas, já que Viver a Vida se divide em doze atos.
Do início ao fim, é permitido invadir a intimidade de Nana, representante de um ideal de liberdade que tenta ignorar tudo a sua volta. Mas nem sempre consegue. A protagonista se mostra frágil ao entregar o corpo por exigência do ofício. Sente que algum tipo de emoção e sentimento nasce ou morre antes de cada relação sexual.
O espectador, que assume os olhos de Godard, presencia muitas das cenas como testemunha; alguém o tempo todo ao alcance de Nana. A primeira cena em que a câmera, de uma posição privilegiada, destaca as costas e os ombros da personagem, mantendo o rosto oculto enquanto conversa em um café, é o exemplo primordial.
A natureza de Nana ratifica a ideia de que o humanismo está em crise há muito tempo. Como sobrevivente do submundo parisiense, ela assiste ao enlace entre a modernidade e a decadência. Na capital francesa, surgem cinemas, cafés e máquinas de fliperama enquanto morrem pessoas, sonhos e ideais.
O cão que foi promovido a sargento
Stubby participou de 17 batalhas na Primeira Guerra Mundial
O estadunidense Stubby, nascido em 1916 e falecido em 16 de março de 1926, foi o cão de guerra mais condecorado na Primeira Guerra Mundial, inclusive o único promovido a sargento. Encontrado no campus da Universidade Yale em 1917 pelo soldado John Robert Conroy, Stubby era de raça desconhecida. Alguns diziam que era uma mistura de Boston Terrier e Pit Bull. Já outras fontes afirmavam que era um puro Olde Boston Bulldog.
Em seu obituário consta “Bull Dog”, o que nos EUA significava o mesmo que Bull Terrier Americano ou Pit Bull Terrier. Quando a unidade de Conroy foi enviada à França, Stubby foi junto a bordo do navio SS Minnesota. O cão serviu na Infantaria 102, Divisão Yankee 26, nas trincheiras francesas ao longo de 18 meses. Participou de quatro ofensivas e 17 batalhas. Entrou em combate pela primeira vez no dia 5 de fevereiro de 1918 em Chemin des Dames, ao norte de Soissons. Por mais de um mês, esteve sob fogo constante, dia e noite. Stubby foi atingido pela primeira vez em abril de 1918, quando estilhaços de uma granada arremessada pelos alemães lhe feriram o antebraço.
Assim que se recuperou, voltou às trincheiras. Stubby aprendeu a avisar as unidades de ataque sobre a presença de gás venenoso, além de localizar soldados feridos nas terras de ninguém. Ouvia o som de entrada de cada artilharia inimiga antes de qualquer soldado. Stubby foi o responsável pela captura de um espião alemão na Floresta de Argonne. Quando os estadunidenses retomaram a área de Château-Thierry, as mulheres da cidade o agradeceram confeccionando um casaco de camurça adornado por medalhas. Dizem que o cão chegou a evitar que um garoto fosse atropelado por um carro em Paris.
Ao final da guerra, quando retornaram para casa, Stubby se tornou uma celebridade e marchou em muitos desfiles por todo o país. Se reuniu com presidentes como Woodrow Wilson, Calvin Coolidge e Warren G. Harding. Em 1921, Conroy foi para a Georgetown University Law Center e Stubby se tornou o mascote do time de futebol Georgetown Hoyas. Divertiu muitos torcedores empurrando a bola ao redor do campo.
O cão faleceu nos braços de John Robert Conroy em 1926. Após 80 anos, em 11 de novembro de 2006, Stubby foi homenageado com um tijolo na Calçada da Honra do Liberty Memorial, em Kansas City, onde há o maior monumento em lembrança aos heróis da Primeira Guerra Mundial.
Fontes: History Wired. Stubby, World War I Canine Hero 1921. Smithsonian Institution.
The Price of Freedom: Americans at War – Stubby. Smithsonian Institution.
Stubby the Military Dog. Connecticut Military Department. July 16, 2003.
O Velho Barbanço
Português se passou por francês para acompanhar amigo na Primeira Guerra Mundial
É raro encontrar alguém que já tenha ouvido falar no Velho Barbanço, um misterioso imigrante português que viveu muitos anos em uma recôndita fazenda entre Paranavaí e Alto Paraná, no Noroeste do Paraná. Barbanço se passou por francês para acompanhar um amigo na Primeira Guerra Mundial e anos depois partilhou a maior parte da herança com os mais humildes.
A infância
Manuel da Silva Barbanço nasceu na Freguesia de Barcelos, em Portugal, no ano de 1896. Aos 12 anos, fugiu de casa por causa dos maus tratos do pai que tinha a conivência da mãe subserviente. Em Lisboa, o então jovem Manuel, inebriado pelos cartazes que exaltavam as belezas de Paris, decidiu partir para a França. Na Estação de Trem de Santa Apolónia tentou convencer dezenas de passageiros a levá-lo junto, porém só um concordou. Era um caixeiro-viajante de menos de 30 anos que percorria a Europa comercializando cigarreiras e perfumes. “O sujeito estava com duas malas grandes. Uma cheia e a outra vazia. Com um forte sotaque francês, falou que o levaria, mas o garoto teria que se esconder dentro da mala vazia”, contou o aposentado Amácio da Costa que durante anos trabalhou como “faz-tudo” para Barbanço.
Franzino, Manuel entrou na mala e permitiu que o homem a fechasse. A viagem levou horas e mesmo assim o garoto se manteve calado, respirando por um pequeno vão. “O Velho Barbanço me contou que estava tão frio que conforme respirava pela boca o ar que saía da mala criava forma”, disse Costa. Quando chegou a Paris, Manuel agradeceu e os dois se despediram. Na Avenida Champs-Élysées, não muito distante do Arco do Triunfo, Barbanço conheceu um português que vivia num cubículo no Montmartre e explorava o trabalho infantil de dezenas de crianças, colocando-as para engraxar os sapatos dos turistas que visitavam a Torre Eiffel. “Eles trabalhavam em troca de comida e moradia”, relatou o aposentado.
A amizade com Bulle
Ingênuo, Manuel foi coagido e trabalhou para o homem por vários meses, até que um dia fugiu de madrugada. Por questão de sobrevivência, Barbanço aprendeu a falar francês. Naquele tempo, não fluentemente, mas o suficiente para se virar. Fez bicos para turistas até os 16 anos, quando conheceu Bulle, um órfão francês que trabalhava de auxiliar de limpeza num restaurante de culinária mediterrânea na região do Jardim de Luxemburgo. “Era um rapaz mais velho, de 21 anos, que se tornou o irmão que Barbanço nunca teve”, comentou Amácio da Costa.
Em 1914, Bulle e Manuel estavam trabalhando juntos como carregadores de malas de um hotel situado no Montparnasse quando souberam da convocação para a Primeira Guerra Mundial. Bulle, que se chamava Pierre Livereaux, foi obrigado a se apresentar ao serviço militar. Com receio de ficar sozinho novamente, Barbanço implorou para que Bulle o ajudasse a conseguir documentos falsos para acompanhá-lo. Livereaux resistiu, mas acabou cedendo e ajudou o amigo que à época tinha 17 anos. “Sei disso porque o Velho Barbanço tinha um diário em que anotava tudo. Era muito preciso e detalhista sempre que relatava algo”, afirmou o aposentado que viu os falsos documentos franceses do português.
Na guerra, Manuel da Silva Barbanço era Jean Marceau Bonnet, um soldado do 5º Exército Francês que participou da Batalha de Charleroi em 21 de agosto de 1914, quando os alemães invadiram a Bélgica. Questionado sobre a experiência na guerra, Barbanço disse o seguinte a Amácio da Costa no início dos anos 1960: “Nunca tinha segurado uma arma na vida e tudo que eu sentia era medo, tremia mais que vara verde. Quem passava por mim nem percebia, pois estávamos todos na mesma situação. Éramos crianças e o temor era tão absurdo que ao longe os alemães sentiram o cheiro do nosso pavor”, confidenciou Manuel da Silva Barbanço, referindo-se à derrota francesa na Batalha de Sambre.
O horror da Primeira Guerra Mundial
Algumas lembranças do episódio vivido pelo português foram reproduzidas em grandes folhas de papel já amarelecidas e deterioradas pelo tempo que Costa ganhou do ex-soldado em 1962. “Anos depois, pedi pra minha neta copiar o conteúdo, mas deu pra recuperar pouca coisa”, garantiu Costa, mostrando as informações registradas. No relato, Barbanço revelou que quando a ofensiva alemã, que estava em maior número, os atacou, só ouviu um companheiro gritar algo como: “soins, soins, sont mis à nous tirer dessus” que significa “cuidado, cuidado, começaram a atirar em nós”. O jovem soldado deitou rapidamente no chão. Quando se levantou, olhou para trás e viu o amigo Bulle caído no chão, morto, com o corpo cravejado de balas de aproximadamente oito milímetros.
Barbanço conteve o desespero enquanto observou a multidão de cadáveres que se amontoaram diante de seus olhos, além de dezenas de jovens ainda vivos, mas caídos, implorando por ajuda. “A situação era horrível. Aqueles que estavam em estado muito grave foram deixados para trás. Quando me contou, também mostrou fotos da guerra e seus lábios tremeram até que levou a mão à boca para conter o choro. Disse que jamais na vida dormiu sequer uma noite sem pensar na guerra”, enfatizou o aposentado, lembrando que mais tarde Barbanço se retirou da zona de conflito, sem ter usado qualquer arma. Horas depois, se afastou da infantaria francesa e voltou para o local onde foi deixado o corpo do amigo.
Mesmo sabendo que a área estava dominada pelos germânicos, seguiu em frente. Quando viu um soldado alemão morto o despiu e trocou a farda francesa pela alemã. Logo que os alemães se dispersaram, o português carregou Bulle até as margens do Rio Sambre. Lá, Barbanço lavou o corpo do amigo, o abraçou e em seguida o enterrou. Da Bélgica, Manuel Barbanço retornou à França, onde morou até os 32 anos.
O reencontro com o avô
Mais tarde, imigrou para a Espanha e para a Itália, até que retornou a Portugal, onde soube que o avô, um aristocrata lusitano com quem perdeu contato no princípio da infância, o procurava há anos. Com a saúde debilitada, o homem convidou Manuel para morar numa propriedade em Funchal, na Ilha da Madeira. Barbanço viveu com o avô até 1945, quando o aristocrata faleceu, vítima de pneumonia. Com a morte do único familiar com quem teve uma profunda relação de afeto, Manuel da Silva Barbanço decidiu partir novamente. Antes, aguardou a execução do testamento do avô que lhe destinou uma herança que hoje equivaleria a pelo menos R$ 3 milhões.
Após o fim da Segunda Guerra Mundial, em outubro de 1945, Barbanço se juntou a centenas de imigrantes portugueses em um navio para o Brasil. Escolheu uma embarcação que reuniu somente pessoas de origem humilde que buscavam melhores condições de vida em terras tupiniquins. “Ele levou uma pequena mala com roupas e, como não sabia qual era a moeda brasileira, carregou uma enorme com mais da metade da herança em dólares”, salientou Costa. Numa madrugada, enquanto muitos estavam dormindo, Barbanço distribuiu boa parte do dinheiro entre as malas, bolsas, sacos e sacolas dos passageiros. No dia seguinte, ninguém entendeu o que tinha acontecido, mas as expressões nos rostos dos imigrantes eram tão cheias de esperança e alegria que o anônimo Manuel da Silva se sentiu parte de algo maior que a vida, segundo palavras de Amácio da Costa.
A partilha da herança com os mais humildes
Quando a embarcação atracou em Santos, Barbanço desceu pelas ruas do porto, onde foi abordado por um garoto de aproximadamente 12 anos que ofereceu-lhe ajuda em troca de algumas moedas. O português aceitou e pediu auxílio para pegar um trem com destino a São Paulo. Antes de embarcar, Manuel sugeriu que o garoto fechasse os olhos. “Barbanço colocou um saco de dinheiro na mão daquela criança e desapareceu dentro do trem”, assegurou. Da capital paulista, o português contratou os serviços de um motorista que o levou até Presidente Prudente, onde Barbanço quase comprou uma fazenda. Mudou de ideia quando conheceu um engenheiro agrônomo que falou-lhe sobre as terras virgens do Noroeste do Paraná.
Manuel adquiriu um jipe e se aventurou pelo Paraná. Depois de dias de viagem, chegou a Paranavaí, onde comprou uma fazenda a treze quilômetros do perímetro urbano. “Ele tinha um estilo de vida eremita, não ia pra cidade. Gostou muito daqui porque lembrava a calmaria e o sossego da terra do avô, na Ilha da Madeira”, ressaltou o homem que conheceu o português em 1955, quando deixou Londrina e se mudou para Paranavaí. O caminhão que trouxe os pertences do aposentado quebrou em frente à propriedade de Barbanço. Costa foi pedir ajuda e recebeu uma proposta de emprego.
Amácio da Costa trabalhou como “faz-tudo” para o português a quem considerava um pai até 1972, ano em que Manuel Barbanço transferiu-lhe a escritura de uma propriedade vizinha. “Num domingo chegou um homem na minha casa, me trouxe um título de terras acompanhado de uma carta de agradecimento pelos serviços que prestei ao longo de 16 anos. Não entendi direito e fui até a fazenda do português. Quando cheguei lá, o homem tinha sumido, ninguém nunca soube o que aconteceu. É possível que tenha partido para algum lugar onde outras pessoas precisavam de ajuda”, cogitou o aposentado com um sorriso e um olhar disperso no tempo.
Curiosidades
O apelido Velho Barbanço foi dado pelo próprio Amácio da Costa, pois o português tinha a barba, os cabelos e pelos das sobrancelhas brancos.
Para ser aceito pelo Exército Francês e justificar o sotaque, Manuel da Silva Barbanço falou que era francês, mas que foi criado pelo avô em Portugal.
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