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José Oiticica definia o consumo de carne como um vício social

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Para o escritor e anarquista, a saúde humana deve envolver a alimentação vegetariana

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Oiticica via a doença como consequência da violação das leis biológicas (Acervo: Biblioteca Nacional de Portugal)

“Ele comprovou ser o homem, como primata (pelo seu tubo digestivo, intestinos, glândulas, fórmula dentária, por sua estrutura anatômica, por sua natureza, enfim), animal vegetalivoro, como muitos povos orientais e habitantes de aldeias da Europa, e não carnívoro, como as feras. Compreendeu então que a doença apareceu no homem, como nas plantas, em consequência de um erro de nutrição. A doença é, assim, uma decorrência da violação das leis biológicas, como que uma punição da natureza. Oiticica converte-se então ao vegetarianismo e a abstinência e combate ao álcool e o tabaco, discorrendo em muitas conferências sobre esses vícios sociais”, escreveu o anarquista e vegetariano Roberto das Neves, reproduzindo a visão do amigo anarquista, poeta, filólogo e ativista vegetariano José Oiticica no livro “Ação direta: meio século de pregação libertária”.

Oiticica já era vegetariano em 1912, e desde então assumiu a posição de conciliar sua ideologia política com a defesa do vegetarianismo. De acordo com Neves, ele abandonou o curso de medicina quando conheceu livros sobre evolucionistas e naturalistas que qualificavam a alimentação como a melhor forma de prevenção e combate às doenças.

“Sempre fui meio rebelde. Ainda garoto fui expulso do seminário São José porque recusei a mão à palmatória. Mas acabei indo para a Faculdade de Direito e com tal crença que disputei sempre os primeiros lugares com Levi Carneiro, que foi da minha turma. Pois, assim, com uma crença sagrada no direito, fui ao Fôro levar um alvará para registro. O oficial do registro me cobrou 13$600, quando o Regimento de Custos marcava para o caso apenas 3$600. Protestei. O homenzinho foi peremptório: ‘Não me interessa o que o Regimento diz. Eu preciso viver’. Após isto larguei o direito”, revela José Oiticica em entrevista ao jornalista Mario Camarina em “Confissões de um Anarquista Emérito”, publicada na revista O Cruzeiro de 23 de maio de 1953.

Oiticica defendia que todo anarquista deveria tornar-se vegetariano e trabalhar em prol da extirpação dos vícios. Segundo ele, a saúde do homem, tanto física como mental, deve envolver a alimentação vegetariana e uma nova relação com a natureza, com o corpo e com a mente. “A inteligência e o aprofundamento intelectual, o exercício da vontade associado à moral, a habilidade e a solidariedade, são elementos essenciais para o progresso humano. A forma pela qual os indivíduos usam as suas energias em relação às energias cósmicas como o sol, o ar e a terra chama-se trabalho”, declarou em registro publicado no livro “Nem barbárie Nem Civilização”, de Tereza Ventura.

Entre os anos de 1911 e 1955, José Oiticica lançou 14 livros de poesia, teoria anarquista e filologia. Também escreveu as peças teatrais “Azalan!”, “Pedras que Rolam” e “Quem os Salva”. “Publicou obras de sociologia e linguística, inclusive em jornais populares; difundiu o vegetarianismo entre os trabalhadores; além de ter deixado obras espiritualistas como o opúsculo ‘Os Sete Eu Sou’ e uma tradução dos ‘Versos Áureos’, atribuídos a Pitágoras”, comenta Tereza.

Oiticica vivia um conflito entre o espírito ativo e ativista, portador de conceitos de uma visão política, e o espírito sensível e inspirado de um poeta preocupado com a natureza humana, segundo o artigo “Anarquia nos Sonetos de José Oiticica”, de Maria Aparecida Munhoz de Omena. Considerado pré-modernista, ele produziu muitos sonetos, principalmente nos anos de 1911 e 1919. Ainda assim, passou despercebido pelas publicações que contam a história do modernismo no Brasil – talvez por suas inclinações ideológicas. “Uma primeira leitura do último livro que publicou em vida, ‘Fonte Perene’, de 1954, revela uma poesia vigorosa, à altura dos considerados bons poetas do período”, enfatiza Maria Omena.

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“Ele comprovou ser o homem, animal vegetalivoro” (Foto: Reprodução)

Idealista, José Oiticica que se dividia entre a literatura, o magistério e a militância anarquista, escreveu no livro “Princípios e Fins do Programa Anarquista-Comunista”, de 1919, que o fim mais alto do anarquismo é a elevação da plebe, dos verdadeiros produtores, a sentimentos e gostos aristocráticos, substituindo assim a democracia atual, calcada na ignorância e na pobreza, por uma aristocracia geral, humana. E como o poeta era um desdobramento natural do anarquista, suas insatisfações eram comumente transmitidas em seus poemas:

“Essa invisível causa, que eu procuro

nos meus tormentos de meditação,

inda é o mesmo problema ingrato e obscuro

Que atormenta homens bons desde Platão

 

Esse maldito sonho de ser puro

– Apurado na dor – é sonho vão:

E ira semeando dores no futuro…

Pobres sonhadores que virão!”

O falecido professor e filólogo Olmar Guterres da Silveira, membro da Academia Brasileira de Filologia, definia José Oiticica como um sujeito de semblante fechado, sem refinamentos elementares e de sobrecenho carregado. “Eis o exterior de um homem cujo brilho eterno desmentia a primeira impressão: culto, dedicado, agradável naquilo que fazia e suave no trato com os alunos”, assinalou. Oiticica faleceu em decorrência de infarto no Rio de Janeiro em 30 de junho de 1957, aos 74 anos. Após sua morte, o advogado e escritor Levi Carneiro o descreveu em matéria publicada no Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro, como um homem de virtudes físicas, morais e intelectuais que não gostava muito de aparecer. Preferia refugiar-se dentro de si mesmo, dedicando-se aos estudos.

O anarquista e escritor foi qualificado como um homem que nada ambicionava a não ser o saber: “Nada receava, senão errar. (…) Erudito, cada vez mais refugiado no seu pensamento, não deserdava das ideias que afirmava, nem transigia com os interesses criados numa sociedade da qual se considerava parte”, publicou o Correio da Manhã, também do Rio de Janeiro, no dia 2 de julho de 1957. É atribuída a José Oiticica uma frase que parece referenciar criticamente tanto as desigualdades sociais quanto a relação da humanidade com os animais: “Quem vence um fraco, sempre sai vencido.”

Saiba Mais

José Rodrigues Leite e Oiticica nasceu em 22 de julho de 1882 em Oliveira, Minas Gerais. Era o quarto filho do senador e constituinte Francisco Leite e Oiticica.

Referências

Neves, Roberto. José Oiticica: Um anarquista exemplar e uma figura ímpar na história do Brasil – Rio de Janeiro (1970).

Oiticica, José. Ação Direta: meio século de pregação libertária. Introdução e notas de Roberto das Neves. Rio de Janeiro. Editora Germinal (1970).

Ventura, Tereza. Nem Barbárie Nem Civilização! São Paulo. Annablume (2006).

Omena, Maria Aparecida Munhoz. Anarquia nos sonetos de José Oiticica. Revista Litteris (2009).

Junior, Renato Luiz Lauris. José Oiticica: reflexões e vivências de um anarquista. Universidade Estadual Paulista (2009).

Camarina, Mario. Confissões de um Anarquista Emérito. Revista O Cruzeiro, 23/05/1953. Ano XXV. Nº 32.

Silveira, Olmar Guterres. Para um ideário do professor José Oiticica. Revista Idioma. Nº 20 (1998).

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Augusto dos Anjos e a consciência vegetariana

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Na mão dos açougueiros, a escorrer/Fita rubra de sangue muito grosso/A carne que ele havia de comer!

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Augusto dos Anjos: “Cedo à sofreguidão do estômago. É a hora De comer” (Arte: Reprodução)

O paraibano Augusto dos Anjos, por vezes qualificado como simbolista, parnasiano e pré-modernista, era na realidade um poeta solitário que pouco se via no contexto de qualquer corrente literária. Assim como muitos outros artistas, sofria com o anacronismo em relação às suas obras, poemas que fundamentados num tipo peculiar de panteísmo místico já externavam uma conexão entre o homem e a natureza, algo pouco compreendido até o seu falecimento precoce, aos 30 anos. Embora não haja registros sobre os hábitos alimentares de Augusto dos Anjos, não há dúvidas de que ele foi um dos primeiros escritores brasileiros a abordar a consciência vegetariana em suas obras. Ou seja, foi muito além da escatologia, da consciência da morte enquanto tema.

Sofredor é o termo coloquial que melhor define a essência do poeta paraibano que raramente se via livre da cefaleia e do desconforto existencial. Dotado de exímia sensibilidade, Augusto dos Anjos cristalizava suas insatisfações, anseios e observações com a mesma angústia do simbolista francês Arthur Rimbaud. E talvez esse fosse o maior indicativo de que ele era humano, demasiado humano, como no conceito criado e publicado por Nietzsche em 1878.

Educado em casa pelo próprio pai, um profícuo homem das letras, Augusto se identificou na infância com a linguagem das ciências naturais, o que o motivou a criar seus primeiros sonetos aos sete anos. “Desde a mais tenra idade me entreguei exclusivamente aos estudos, relegando por completo tudo quando concerne ao desenvolvimento, numa atmosfera de rigorosíssima moralidade, da chamada vida física”, disse o poeta em entrevista concedida a Licinio Santos em 1912 e publicada no livro A Loucura dos Intelectuais em 1914.

E o rigor moral realmente acompanhou o escritor ao longo de toda a sua vida. A maior prova são seus poemas publicados na obra póstuma Eu e Outras Poesias, lançada por iniciativa da Imprensa Oficial do Estado da Paraíba em 1920. No livro, sua consciência da relação dissonante da humanidade com a natureza é apresentada de forma ácida e veemente. Em À Mesa, a mórbida ironia revela a leviandade e a consciente cumplicidade humana no ato de se alimentar de animais:

Cedo à sofreguidão do estômago. É a hora
De comer. Coisa hedionda! Corro. E agora,
Antegozando a ensanguentada presa,
Rodeado pelas moscas repugnantes,
Para comer meus próprios semelhantes
Eis-me sentado à mesa!

Como porções de carne morta… Ai! Como
Os que, como eu, têm carne, com este assomo
Que a espécie humana em comer carne tem!…
Como! E pois que a razão me não reprime,
Possa a terra vingar-se do meu crime
Comendo-me também.

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“Quando a faca rangeu no teu pescoço, ao monstro que espremeu teu sangue grosso” (Imagem: Reprodução)

No bucólico Engenho do Pau D’Arco, em Sapé, sua cidade natal, Augusto dos Anjos chegou a conduzir sessões de mediunidade. Ainda assim, ele jamais se viu como um religioso. Muito pelo contrário. Suas obras sempre abordaram de forma satírica as mais pertinentes contradições que permeiam o cristianismo. No entanto, isso nunca o impediu de se identificar com o panteísmo, assim como o célebre e também incompreendido poeta inglês William Blake.

Quem sabe o escritor paraibano tenha sido atraído pelo fato de que a doutrina se baseia no reconhecimento de Deus em tudo que compõe a natureza. E a partir dessa influência, Augusto fez cabais associações entre a tradição mística do ocidente, o cientificismo que o acompanhou por toda a vida e a cultura oriental fundamentada em religiões védicas da Índia. Esse hibridismo e a constante busca pela sabedoria provavelmente tinham relação com a sua ânsia por entender o mundo, os seres humanos e sua relação com todas as formas de vida.

Exemplos de sua aspiração transcendental são os poemas O Meu Nirvana e Budismo Moderno, publicados no livro Eu, de 1912. Extremamente sensível, Augusto dos Anjos se empenhou em encontrar em fontes orientais um amenizador para a inquietude que o atormentava. “Sinto uma série indescritível de fenômenos nervosos, acompanhados muitas vezes de uma vontade de chorar”, confidenciou em entrevista a Licinio Santos. E foi essa emotividade à flor da pele que o motivou a escrever A Um Carneiro Morto, de 1909, que fala da desproporcionalidade entre a empatia animal e a truculência humana.

Quando a faca rangeu no teu pescoço,

Ao monstro que espremeu teu sangue grosso

Teus olhos — fontes de perdão — perdoaram!

Oh! tu que no Perdão eu simbolizo,

Se fosses Deus, no Dia de Juízo,

Talvez perdoasses os que te mataram!

Augusto dos Anjos

“E o animal inferior que urra nos bosque/É com certeza meu irmão mais velho!” (Arte: Reprodução)

Alimentado com leite de escrava na infância, Augusto dos Anjos não se orgulhava de sua herança fundamentada no patriarcalismo rural. Cresceu desinteressado pela socialização, o que lhe garantiu o apelido de “O homem ausente”. Importantes nomes da literatura brasileira, como Orris Soares e José Américo de Almeida, o descreviam como um sujeito de tez pálida e morena, mais alto do que baixo, franzino e recurvo, de fronte alongada e grandes olhos sem mobilidade. Suas mãos eram moles e denunciavam timidez. Andava como se estivesse sempre na ponta dos pés, e de longe sua magreza excessiva chamava atenção pelo aspecto insalubre. E nada disso parecia-lhe relevante, talvez até insignificante, já que para além do trabalho ele vivia imerso em si mesmo e na própria poesia. Em A Obsessão do Sangue, Augusto dos Anjos discorre sobre a barbárie consentida entre o açougueiro e o consumidor que se excita diante da carne a ser servida.

Levantou-se. E, eis que viu, antes do almoço,

Na mão dos açougueiros, a escorrer

Fita rubra de sangue muito grosso,

A carne que ele havia de comer!

No inferno da visão alucinada,

Viu montanhas de sangue enchendo a estrada,

Viu vísceras vermelhas pelo chão…

E amou, com um berro bárbaro de gozo,

O monocromatismo monstruoso

Daquela universal vermelhidão!

Graduado em direito, o poeta jamais atuou como advogado. Preferiu o magistério e se tornou professor no Liceu Paraibano. Se casou em 1910 e logo se mudou para o Rio de Janeiro, onde lecionou na Escola Normal e Ginásio Nacional. O salário era tão modesto que ele mal conseguia sustentar a família. Ainda assim, prosseguia escrevendo, dando vazão à sua vocação. No poema Monólogo de Uma Sobra, Augusto dos Anjos reafirma sua crença na relação entre a solidariedade, o cosmo e o misticismo. Em um excerto, ele escreveu:

E o animal inferior que urra nos bosques

É com certeza meu irmão mais velho!

Depois de quatro anos, e atendendo à recomendação médica, o poeta migrou para Leopoldina, em Minas Gerais, com a esposa Ester Fialho e os dois filhos. Lá, ele exerceu o cargo de diretor do Grupo Escolar até que faleceu em 12 de novembro de 1914 em decorrência de pneumonia.

Na área em que estou, ao matinal assomo,

Passa um rebanho de carneiros dóceis…

E o Sol arranca as minhas crenças como

Boucher de Perthes arrancava fósseis,

Escreveu Augusto dos Anjos em Estrofes Sentidas, poema que na minha opinião sintetiza sua empatia por todos os seres vivos, mesmo diante da própria finitude extemporânea.

Saiba Mais

Augusto dos Anjos nasceu em 20 de abril de 1884 em Engenho do Pau D’Arco, em Sapé, na Paraíba.

Eu, seu único livro de poesia publicado em vida, foi lançado no Rio de Janeiro em 1912.

Os escritores preferidos do poeta eram William Shakespeare e Edgar Allan Poe.

Referências

Dos Anjos, Augusto. Eu e Outras Poesias. Bertrand SP (2001).

Santos, Licinio. A Loucura dos Intelectuais (1914).

Figueiredo, José Maria Pinto. A invenção do Expressionismo em Augusto dos Anjos. Universidade Federal do Amazonas (2012).

Paes, José Paulo. Augusto dos Anjos ou o evolucionismo às avessas. Novos Estudos (2008).

Viana, Chico. Autobiografia e lirismo em Augusto dos Anjos (2007). Disponível em chicoviana.com.

Erickson, Sandra, S. F. Augusto dos Anjos: Budismo Moderno. XVII Anais: Semana de Humanidades. UFRN (2010). Disponível em http://www.cchla.ufrn.br/shXVIII/artigos/G T05/Sandra%20S.F.%20Erickson.pdf.

Nóbrega, Humberto. Augusto dos Anjos e sua época. João Pessoa, Edição da Universidade da Paraíba (1962).

Sabino, Márcia Peters. A questão da religiosidade em Augusto dos Anjos. Disponível em http://www.seer.ufu.br/index.php/letraseletras/article/viewFile/25201/14017.

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